A adolescência é uma fase da vida dos
seres humanos (pelo menos no “primeiro” mundo “ocidental”)
caracterizada pela total turbulência. Não é mais a inocência da
infância, pautada por um qualquer grau de protecção, mas também
de maravilha, encantamento e potencialidade total do mundo, mas não
é ainda a segurança e acalmia que a vida adulta poderá
eventualmente permitir, com maior ou menor encantamento. É uma fase
em que o medo do futuro, que surge como um peso inexorável e uma
inconstante incerteza, vem traficar medos, ímpetos, vontades em
formação, conturbadas insatisfações, e ensejos contraditórios.
Mas é ao mesmo tempo um momento de potencialidade de desenvolvimento
incrível. “Energia em estado bruto”, como explica uma das
personagens. Um acesso a poderes especiais. (Mais)
Rafael Coutinho reimagina a
adolescência como (e esperamos que esta descrição não seja
redutora demais ou perca um elemento fundamental) uma espécie de
aplicação e rede social a que os recém-adolescentes acedem aos 12
anos através de um beijo, desenvolvendo e libertando capacidades
supra-humanas, as quais são passíveis de comodificação imediata,
transformando este ou aquele adolescente num ícone da cultura
popular e comercial, até que atinja os 18 anos, após o que essas
capacidades se dissipam e o lançam numa vida adulta cinzenta e
acomodada. A adolescência é, aqui, então, uma oportunidade de
vogar ao máximo a onda do fetichismo material desejado e produzido
por si mesmo, mas também é o objecto de desejo de várias frentes,
de companhias a entidades, nem sempre claras nos seus propósitos. E
por detrás disto tudo, uma intriga semi-policial pelo controle
desses programas e, consequentemente, dos adolescentes eles mesmos e
da sua potencialidade. Há monstros, companhias, pirataria
informática, tribos urbanas, novas linguagens modas, tendências
musicais, e por aí fora, metástases, afinal, de uma cultura de
gestão de identidades.
O beijo adolescente parece
inscrever-se nesse género contemporâneo a que se dá o nome de
slipstream, em que elementos da ficção científica, da
fantasia, da ficção sociológica e política, se vêm misturar para
criar ambientes mágicos que não deixam de ser reflexões directas
sobre o estado das nossas próprias sociedades. Nesse aspecto, O
beijo adolescente encontrar-se-ia numa família bem alargada, que
incluiria a escrita de China Mieville e a banda desenhada de André
Pereira. Tal qual Safe Place, por exemplo, é claríssima a
forma como Coutinho re-integra elementos provindo dos jogos de
computador num quotidiano mais trivial, como forma de criação de identidade das personagens, e como todo e qualquer gesto
desse mesmo quotidiano é passível de ser aproveitado
comercialmente. Por outro lado, as questões de identidade e até a
exuberância visual dessas identidades recorda-nos, mesmo que de modo
tangencial, Private Eye. No entanto, apesar de ser possível,
quem sabe, identificar alguns pontos mais específicos com a
realidade brasileira, há um certo grau de desprendimento dessa
realidade social para se criar uma tessitura um pouco mais alargada e
aplicável a outros contextos distintos, ou pelo menos que aceite
esta “redução cultural”. No entanto, a bateria e estratégia de
escrita, pela sua qualidade de ambivalência e navegação em
variadíssimas camadas de informação recordarão, ainda que de modo
superficial, algum Morrison ou Ales Kot.
Esta trilogia de livros cria uma
autêntica saga, a qual se estrutura em torno de um grupo mais ou
menos coeso e concentrado de personagens que atravessam esta
adolescência muito particular, as dinâmicas de grupos entre elas,
envolvendo aspectos desde a rivalidade empresarial a elos amorosos,
passando por alianças culturais e dúvidas existenciais. É difícil
fazer uma sinopse, uma vez que as linhas de divisão de intrigas e
sub-intrigas é complexa, e a organização temporal e de acções
não é de forma alguma linear. Uma última parte, por exemplo, laça
a atenção em torno de apenas uma personagem, uma espécie de pastor
evangélico batalhando contra toda a cultura do “beijo
adolescente”, e que parece acelerar e expor um futuro, mas que não
é totalmente desempacotado.
Cada página corresponde a uma unidade
a mais do que um nível. A sua pré-publicação em páginas soltas
levou à sua criação em stacatto, não apenas assinaladas
pela repetição do título da série das mais diversas maneiras,
mais ou menos integradas no contexto diegético da história (à la
logotectura de Eisner) mas pela própria estrutura da escrita.
Não apenas são construídas individualmente em termos estruturais e
visuais, como narrativamente também se concentram num momento ou
etapa de toda a narrativa, ora focando-se num acontecimento, num
grupo determinado das muitas personagens da saga, ou no
desenvolvimento de um qualquer passo da história. Não há
propriamente uma navegação fluida de página a página, mas antes
um avanço por supetões e fragmentos que apenas em retrospectiva se
coalescem num corpo maior. Existem mesmo partes que parecem revelar
momentos anteriores em termos cronológicos ao “presente”
seguido, e há saltos elípticos significativos, o que obriga a uma
gestão da memória e releitura que, de certa forma, está em
perfeita consonância com o tema de O beijo adolescente.
Os protagonistas atravessam todo um rol
de crises e construções de identidade, e o leitor acompanha essas
tempestades de negociações complexas, tremendas e irresolutas entre
aquilo que a um momento parece ser a maior das conquistas do
individualismo inconformista para se revelar tão-somente a total
integração num papel expectável e, mais importante, aproveitável
no jogo dos valores comerciáveis. Parece estarmos a observar um
estranho xadrez de interesse, mas nem sempre nos será claro quem
move as peças, ou sequer que movimentos foram cumpridos, se nos for
mesmo possível compreender que peças afinal foram movidas. Grande
parte do prazer da leitura de O beijo adolescente
encontrar-se-á menos na reconstrução de um puzzle de elementos
variados num padrão totalmente compreensível e subsumível a
explicações claras do que à própria natureza fluida, fragmentária
e movediça desse puzzle. O que não deixa de ser uma metáfora ideal
à passagem pela adolescência, construída mais por troços aqui
brilhantes e ali negros do que de uma fiada coerente e unívoca.
A publicação é próxima do tablóide,
muito ao alto. Coutinho tira partido desse formato criando
composições variadas, a maior parte das quais relativamente
regulares, mas por vezes abdicando da diagramação convencional para
oferecer estruturas em cascata ou imagens mais livres, e que obrigam
a protocolos de leitura mais particulares. A cor (que tem um papel
integrado na narrativa, uma vez que apenas os adolescentes são
coloridos, ao passo que os adultos surgem a preto-e-branco e
cinzentos, desde variações apenas a linha até gradações mais
complexas; e uma das crises é a “perda de cor” pela parte dos
ex-adolescentes) é explorada de maneira expressiva, espectacular e
psicadélica, criando várias camadas de realidade. Apesar do seu
imenso lavrar da arte da linha que já havíamos confirmado com
Cachalote, há uma notória apuração do traço desde o
primeiro ao último volume, com a estilização das personagens a
tornar-se cada vez mais fluida e caligráfica, a solidez das
propostas de composição a aumentar, e a valência dos pormenores e
cor a ganhar cada vez mais terreno.
Nota final: agradecimentos ao autor,
pela oferta das publicações, e P. F., por sofrer o transporte.
Sem comentários:
Enviar um comentário