Em mais do que uma
dimensão, Tempestade em Galveston é uma mais tipificada aventura de western
do que Patagónia, de que faláramos antes. Se ambas estarão subsumias a
uma economia de produção bem mais vasta, a saber, os livros maiores da casa
Bonelli e, ainda mais, toda o historial de Tex Willer, é inevitável que façamos
aqui uma leitura bem mais limitada entre estes dois textos, o que provavelmente
incorrerá numa injustiça interpretativa, assim como uma capacidade limitada da
apreciação de elementos específicos à obra assinada por Rujo e Rotundo. Seja
como for, pensamos que essa via é não só inevitável como necessária no interior
do nosso contexto, e haver uma vontade da parte da Polvo em, ao abrir-se esta
oferta particular, fazer chegar estes livros a um público que não o
especializado texiano. Basta ponderar na diferença abissal entre o tratamento
original, mais inclinado para assinalar a presença e continuidade da
personagem-marca registada, do que este caso, em que é o título específico,
individualizado, que ganha proeminência. (Mais)
Dizíamos, então,
da tipificação de Tempestade, que agrega toda uma série de ingredientes usuais
na ficção mais normativa deste género. Os “vilões” são rapidamente
identificados, assim como a injustiça central, que se vai acumulando com
outras, alimentando junto ao leitor o desejo pela sua reparação, que
acreditamos, desde sempre, que será cumprida pelos heróis. Não achamos que a
escolha de um juiz corrupto, um boss do algodão na América postbellum,
e as leis que permitiam o trabalho forçado a suprir as faltas de mão-de-obra
barata depois da abolição da escravatura, uma carismática, bela, inteligente e
independente dona de saloon, um xerife com boa vontade mas algo cego à
autoridade, um jovem enganado pelas vicissitudes a uma vida de crime quando tem
um bom coração, um forte e autónomo negro apanhado nas malhas da injustiça
indicada acima, e uma dedicada mãe pronta a sacrificar-se pelo filho sejam
elementos desinteressantes, mas integram-se com demasiado conforto em imagens
sobejamente conhecidas e revisitadas bastas vezes pelo género para se tornarem
surpreendentes. A complicação através de um quase mágico baralho de cartas que
faz as vezes de mapa de tesouro perdido traz uma camada adiciona de aventura
recombolesca, mas a gestão desse segredo é algo directa demais para a tornar
disruptiva da economia que se promete desde o início.
Em muitos
aspectos, portanto, o convencionalismo desta aventura é, por vezes, mais pesado
do que a possibilidade dos prazeres admissíveis neste material de escapismo,
algo que sublinhámos a propósito de Patagónia. Nada há de problemático
ou errado em si mesmo de termos esses elementos alinhavados de forma clara e
clássica numa estrutura narrativa. Grande parte da cultura popular estará menos
na descoberta de variações e súbitas diferenciações culturais ou profundas
crises de conhecimento social, do que na manipulação pela variedade de coisas
já expectáveis. O problema está quando essa capacidade de diferenciação, de
variação, que traria a felicidade musical ao tema, está algo enfraquecida, o
que nos parece ser o caso de Tempestade.
Os ingredientes do
herói infalível, por exemplo, são de tal forma sublinhados que se rompe a
possibilidade de alguma verosimilhança. Tex aqui, não tem jamais falhas. Nem
dorme. A utilização do pard Kit como contraponto mais atreito às pulsões
humanas (pela comida, pelo descanso, até pela atracção sexual) por vezes apenas
serve para acumular as capacidades sobrehumanas de Tex. Isso, a nosso ver,
porém, empobrece a personagem em si, tornada pura cifra do “herói”. Até a
questão de o imaginarmos de camisa amarela a tentar esconder-se num bayou
se torna quase anedótica...
Com mais de
duzentas páginas, é inevitável que a intriga ganhe alguma densidade, até por se
tornar possível jogar com desarranjos da ordem cronológica, integrar
recordações parciais de personagens,
gerir atenções intercaladas, e providenciar grandes elipses que aumentam
a tensão ou suspense de várias cenas, ou da resolução final da história. No
entanto, sentimos que, se houvesse uma gestão mais sumária de uma das linhas,
teria sido possível construir uma história mais intensa, como a do mistério das
cartas de jogar (as quais nunca são visualmente exploradas de forma
satisfatória para o leitor se aperceber, por ele ou ela mesma, de que
correspondem ao que vai sendo dito pelas personagens).
Dito isto, os
diálogos burilados por Rujo são dignos da herança cinematográfica de John Ford
ou Howard Hawks, nas quais todas as tiras e one-liners são certeiras e
mortíferas. Essa é uma das partes que torna a leitura de Tempestade, a
um só tempo, agressiva mas fonte de um prazer másculo, directo, alimentando
todas as fantasias de ser-se rápido não apenas no gatilho mas na língua.
As capacidades
expressivas de Rotundo são relativamente menos interessantes que as de outros
artistas que já lavraram trabalho para a série. Há algo de animalesco e
hiperbólico no rosto de todas as personagens (e quanto mais “vilões”, mais
“simiescos”, havendo aqui basto pasto para interpretações de estereotipificação
e reforço de ideias etnicamente informadas, logo, ética e politicamente
problemáticas), que se torna ainda mais exagerado quando há emoções mais fortes
a transmitir que retiram alguma da elegância possível mesmo a um trabalho mainstream
desta natureza. Nalguns momentos, lembra um François Boucq menos consistente,
em que há como que um excesso de carne ou pele no rosto das personagens, que as
afasta de uma acalmia humana. Uma vez que todo o trabalho é de linha, nem
sempre a diferenciação dos planos principais e secundários, ou da meteorologia,
contribui para uma ambivalência expressiva.
Tudo é legível e claro, até mesmo
onde não o deveria ser (as cenas nos pântanos, o auge da tempestade os cantos
mais soturnos e obscuros da pequena cidade de Galveston). Até mesmo as
transições entre vinhetas e gestão dos eventos a mostrar são algo
desinspirados, como se houvesse tão-somente a preocupação em tornar legível a
amostragem da acção, e não a sua transformação numa acção (visual e estrutural)
em si mesma, algo que outros autores o conseguem, inclusive no interior da
produção de Tex. Acomodado à composição semi-regular expectável neste
exemplo da indústria, toda a estrutura visual é a de um mecanismo que
transporta o seu conteúdo sem grandes desvios.
Repetimos a ideia,
já dita várias vezes neste espaço, que todo e qualquer western é sempre
vendido, pelos seus defensores, como sendo “diferente” e “atípico” de um
suposto centro nevrálgico de mesmidade ou representação clássica dele mesmo.
Mas por vezes é bom regressarmos a representações basilares desse mesmo género
para compreendermos em que medida é que a variação é feliz. Tempestade sobre
Galveston parece querer cumprir o papel de “exemplo central”. Nesse
sentido, toca quase todos os instrumentos centrais (apesar da ausência total de
“peles-vermelhas”). Mas o resultado é um concerto anódino e pouco afoito.
Nota final: agradecimentos à
editora, pela oferta do livro.
1 comentário:
Caro JC Francisco,
Estranhamente, não consigo ler o seu comentário aqui no blog, mas respondo à mesma, claro. Eu é que agradeço a atenção, e aproveito para dar os parabéns (não que alguma vez duvidasse) da tradução, que achei particularmente enxuta a estas frases curtas e bombásticas do Ruju. Português germano e de pêlo na venta.
Com efeito, fiquei menos entusiasmado com este volume, mas isso não significa, de maneira alguma, que não deseje que a Polvo não prossiga com esta produção. Até porque há muitos outros livros a descobrir - colocaria já na "lista de desejos" os volumes desenhados por Guido Buzelli, José Ortiz e Magnus (não cito argumentistas, pois não estou "por dentro" como devria estar).
Obrigado e está à vontade, agradecendo mesmo, a utilização do texto.
Pedro Moura
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