Este novo projecto de Juscelino Neco
partilha muitos elementos comuns com o seu anterior Parafusos,zumbis e monstros do espaço, na medida em que a acção se
desenvolve em torno de princípios de abandono em episódios de uma
grande violência física, mortandade e cinismo, mas de tal forma
exagerado que não é propriamente o terror o efeito que se
desenvolve no leitor. Todavia, estamos algo afastados da leveza e
humor desse outro livro, encontrando-se em Matadouro de unicórnios
um tom mais grave. Não nos enganemos, o cinismo está lá, e em
grande medida todo o livro é uma espécie de gozo directo com várias
modas e tendências de alguma cultura popular, mas ao mesmo
tempo busca-se seriedade nesse tratamento. (Mais)
A premissa em si não é
particularmente original, com um escritor, Gonçalo, a tentar
batalhar as suas crises de não conseguir avançar num novo projecto
literário, ou mais, de encontrar nessa vida uma satisfação
financeira e anímica. As circunstâncias obrigam-no, portanto, a
procurar várias soluções, que se entrosam na sua vida pessoal, que
também não está de grande saúde no que diz respeito aos amores,
amizades e até outros circuitos. Parte dessas soluções está no
apoio que dará a um escritor medíocre, fã de serial killers,
a escrever a biografia de um assassino conhecido como “Maníaco do
Shopping”, que se encontra preso, mas está disposto a contar a sua
vida e acções para sua própria glória. Gonçalo, que praticamente
adopta o processo do Actor's Studio, acredita que apenas uma
experiência real de assassinar uma mulher o poderá “entrar na
cabeça” do sujeito desse livro. E quando descobre que a acção em
si é simples, não a largará mais, sempre na ideia de que é um
processo de descoberta, pesquisa mas ao mesmo tempo de libertação
do seu verdadeiro ser.
Neco parece aqui fazer pouco da
admiração que muitos nutrem por estes seres desprezíveis e sem
qualquer capacidade de redenção humana que são os assassinos em
série, cujo móbil nada tem a ver com objectivos ulteriores, mas um
prazer quase objectual na própria acção de aniquilação. Em
vários graus representados pelas personagens – o assassino
original, o seu fã e o escritor-que-imita – deparamo-nos com os
matizes da pobreza espiritual de que o ser humano é capaz. Por isso
o autor mostra não apenas a descoberta da acção de assassinar pela
parte de Gonçalo, mas igualmente a suave mas costumeira “espiral”
com que vai descobrindo as suas idiossincracias não apenas nos
processos de matança como de disposição dos corpos de uma forma
quase tranquila. Não deixa de haver a espectacularidade necessária
– as nuvens ou chuva anárquica de sangue espirrando, que até
atinge a própria capa do livro, a fixidez do rosto do protagonista
no centro da sua loucura, os desarranjos sobre o tempo da própria
trama da história (em que o autor aproveita para desenhar com uma linha menos estilizada, sem gradações de cinzentos e com um pontilhismo sumário), etc. - mas ela surge sempre subsumida a
estruturas clássicas e bem-comportadas de composição de página.
Até a maneira como Juscelino Neco
emprega os seus modos de legendagem, com uma letra sempre mecânica,
sem serifas, traz uma qualidade de apatia ou homogeneidade a
Matadouro de unicórnios, como se desejasse diluir a
passionalidade imaginada num tom neutro. Apatia que, de resto, se
nota igualmente noutras personagens, seja “o público geral”
(representados de forma claríssima pelos compradores no final do
livro) ou a mãe chocada. Ou seja, o livro acaba por ser uma forma de
criticar toda uma série de comportamentos atávicos na sociedade
humana, que elege assassinos em série em modelos heróicos (basta
pensar as bastas vezes com que a ficção os trata como pessoas com
inteligências superiores à media, cultos, educados, etc.) e se
espoja em produtos sub-culturais ou middlebrow como se fosse a
maior conquista de que fosse capazes intelectualmente. Não haverá
melhor? Possivelmente. Mas Neco esfrega-nos na cara esse facto.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do livro.
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