Os leitores de Tungsténio e de
Talco de Vidro encontrarão neste novo pequeno volume um
exercício de contenção em termos de diegese, mas não de
intensidade. Os anteriores livros estariam próximos do género
literário da novela, ou do romance até, sobretudo pela sofisticação
e complexa rede que estabeleciam
entre as linhas temporais e a as percepções, sensações e vida
íntima das personagens. Hinário Nacional apresenta
seis histórias, quase todas curtas (apenas uma passando largamente
das 20 páginas), logo, necessariamente reduzidas em termos de
eventos relatados, número de personagens, intervalo temporal,
espaços, etc. Mas nada disso significa que muitas das outras
características que tornam o trabalho de Quintanilha intenso estejam
ausentes. Aliás, há antes uma espécie de transformação maximal
dessas mesmas características em tão curtas histórias. (Mais)
Se houver algum traço comum entre
todas elas, será a da obliquidade, do centro deslocado. Algumas das
histórias, como “Hinário Nacional” ou “Pai Doce”,
estruturam-se em torno de eventos dramáticos que não estão
presentes. Não os testemunhamos, estamos mesmo no campo das suas
consequências, mas eles continuam a exercer a sua terrível
gravidade sobre os momentos a que temos acesso de facto. Por outro
lado, todas elas, com a excepção discutível de “Pai Doce”,
apresentam-se a partir de perspectivas individuais, a partir de
monólogos interiores, sejam eles mais ou menos dirigidos a
interlocutores identificáveis, por vezes outras personagens na mesma
história, por vezes o próprio leitor. “Ave Maria, cheia de graça,
o Senhor é convosco” tece-se em torno da infelicidade conjugal de
uma mulher, que não é porém revelada jamais a quem de direito, e é
apenas o leitor que vai compreendendo a textura das pequenas
humilhações a que a protagonista é sujeita. Cabe-lhe também a
ele, leitor ou leitora, compreender em que medida é que essa mulher
consegue conquistar um espaço de fuga dessas sensações.
“Hinário Nacional” é possível
que possa ser interpretado com informações mais concretas sobre a
realidade brasileira. Apenas isso justificaria o título e
provavelmente tornaria o assunto ainda mais pesado do que já é. a
esmagadora maioria das imagens mostra uma sequência em torno da
parasitagem de vespas sobre uma lagarta, que dará origem aos seus
ovos no dorso. Todo este livro de Quintanilha, até pelo seu formato
de pequeno livro, apresenta estratégias de composição muito
simples, com duas a três vinhetas flutuando nas páginas. É como se
se suspendesse um trabalho mais sofisticado, aturado e significativo
de mise en page para se concentrar na “escrita”, se bem
que essa é sempre uma interpretação fraca, já que toda a
composição ganha um significado particular. Ora essa simplicidade
ganha nesta história essa patina mais vincada. Das 38 imagens que
compõem “Hinário Nacional”, apenas 6 não mostram essa cena da
vida na natureza, mostrando antes quadros, desconjuntos e soltos
entre si, de cenas numa escola (preparatória? Secundária?), que são
na verdade a base de onde parte a voz narradora de toda a cadeia de
ideias. A cena “natural” acaba por funcionar como metáfora,
ilustração e explicação daquilo que pertence à “realidade”
mas nunca é jamais explicitado. Porém, esse “segredo” é muito
claro, chocante, violento, e trará uma reinterepretação à cena
dos insectos que a torna ainda mais dolorosa.
“Batalha das flores” é, talvez,
como se isso fosse possível, a mais elíptica das histórias
elípticas de Quintanilha (a menos que se deva à nossa ignorância
em torno de uma informação que desconhecemos). Mas os jovens
palhaços carnavelescos que brevemente acompanhamos escondem um
(pequeno?, é lícito apequenar o sofrimento dos outros?) crime,
sendo o maior crime (ainda teremos direito de o dizer?, provavelmente
não) o modo como o protagonista, Agripino, vai contra a sua própria
vontade.
“Olhai pro céu” é uma brevíssima
“cantada”, mas ao mesmo tempo uma comovente e nostálgica
recordação inocente do passado. Quer dizer, mais uma vez esta
história dependerá sempre da perspectiva: uma vez que estamos perto
(dentro) das memórias e intenções do protagonista, os elementos da
história contribuem para que sintamos simpatia por ele, mas não nos
podemos esquecer que “do outro lado”, as coisas podem ser
interpretadas de modo bem distinto.
“”Eu era o fenômeno da minha
classe” é a peça mais experimental, apenas apresentando texto na
página à esquerda, em composições “gramatextuais” (cf.
Lapacherie, em que o arranjo, disposição e marcas tipográficas
criam camadas de significado para além das do signo verbal), e na à
direita, uma sequência de uma acrobata circense. É a relação
entre essas duas camadas, a um nível superficial sem ligação, que
se torna o grande motor da peça
Finalmente, “Pai Doce”, a mais
longa e clara das histórias, remete a muitos dos “crimes
familiares” que haviam sido explorados nos anteriores livros do
autor, a falta de diálogo e compreensão no seio da família,
alargados, esses sofrimentos, pelas questões que a doença e velhice
agravam. Uma alucinação e breve comédia de enganos faz com que, em
poucas páginas, possamos vasculhar toda uma vida de um homem, cheia
de humilhações, preconceitos, complexos de inferioridade, enfim,
uma bateria psicológica que em nada necessita de explicitações
verbais.
E talvez seja essa mesmo a assinatura
de Quintanilha, a de uma escrita que ronda, que se aproxima das
raias, mas nunca toca, aquilo que nunca é dito.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do livro.
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