8 de setembro de 2016

Hinário Nacional. Marcello Quintanilha (Veneta)

Os leitores de Tungsténio e de Talco de Vidro encontrarão neste novo pequeno volume um exercício de contenção em termos de diegese, mas não de intensidade. Os anteriores livros estariam próximos do género literário da novela, ou do romance até, sobretudo pela sofisticação e complexa rede que estabeleciam entre as linhas temporais e a as percepções, sensações e vida íntima das personagens. Hinário Nacional apresenta seis histórias, quase todas curtas (apenas uma passando largamente das 20 páginas), logo, necessariamente reduzidas em termos de eventos relatados, número de personagens, intervalo temporal, espaços, etc. Mas nada disso significa que muitas das outras características que tornam o trabalho de Quintanilha intenso estejam ausentes. Aliás, há antes uma espécie de transformação maximal dessas mesmas características em tão curtas histórias. (Mais)

Se houver algum traço comum entre todas elas, será a da obliquidade, do centro deslocado. Algumas das histórias, como “Hinário Nacional” ou “Pai Doce”, estruturam-se em torno de eventos dramáticos que não estão presentes. Não os testemunhamos, estamos mesmo no campo das suas consequências, mas eles continuam a exercer a sua terrível gravidade sobre os momentos a que temos acesso de facto. Por outro lado, todas elas, com a excepção discutível de “Pai Doce”, apresentam-se a partir de perspectivas individuais, a partir de monólogos interiores, sejam eles mais ou menos dirigidos a interlocutores identificáveis, por vezes outras personagens na mesma história, por vezes o próprio leitor. “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco” tece-se em torno da infelicidade conjugal de uma mulher, que não é porém revelada jamais a quem de direito, e é apenas o leitor que vai compreendendo a textura das pequenas humilhações a que a protagonista é sujeita. Cabe-lhe também a ele, leitor ou leitora, compreender em que medida é que essa mulher consegue conquistar um espaço de fuga dessas sensações.

“Hinário Nacional” é possível que possa ser interpretado com informações mais concretas sobre a realidade brasileira. Apenas isso justificaria o título e provavelmente tornaria o assunto ainda mais pesado do que já é. a esmagadora maioria das imagens mostra uma sequência em torno da parasitagem de vespas sobre uma lagarta, que dará origem aos seus ovos no dorso. Todo este livro de Quintanilha, até pelo seu formato de pequeno livro, apresenta estratégias de composição muito simples, com duas a três vinhetas flutuando nas páginas. É como se se suspendesse um trabalho mais sofisticado, aturado e significativo de mise en page para se concentrar na “escrita”, se bem que essa é sempre uma interpretação fraca, já que toda a composição ganha um significado particular. Ora essa simplicidade ganha nesta história essa patina mais vincada. Das 38 imagens que compõem “Hinário Nacional”, apenas 6 não mostram essa cena da vida na natureza, mostrando antes quadros, desconjuntos e soltos entre si, de cenas numa escola (preparatória? Secundária?), que são na verdade a base de onde parte a voz narradora de toda a cadeia de ideias. A cena “natural” acaba por funcionar como metáfora, ilustração e explicação daquilo que pertence à “realidade” mas nunca é jamais explicitado. Porém, esse “segredo” é muito claro, chocante, violento, e trará uma reinterepretação à cena dos insectos que a torna ainda mais dolorosa.

“Batalha das flores” é, talvez, como se isso fosse possível, a mais elíptica das histórias elípticas de Quintanilha (a menos que se deva à nossa ignorância em torno de uma informação que desconhecemos). Mas os jovens palhaços carnavelescos que brevemente acompanhamos escondem um (pequeno?, é lícito apequenar o sofrimento dos outros?) crime, sendo o maior crime (ainda teremos direito de o dizer?, provavelmente não) o modo como o protagonista, Agripino, vai contra a sua própria vontade.

“Olhai pro céu” é uma brevíssima “cantada”, mas ao mesmo tempo uma comovente e nostálgica recordação inocente do passado. Quer dizer, mais uma vez esta história dependerá sempre da perspectiva: uma vez que estamos perto (dentro) das memórias e intenções do protagonista, os elementos da história contribuem para que sintamos simpatia por ele, mas não nos podemos esquecer que “do outro lado”, as coisas podem ser interpretadas de modo bem distinto.


“”Eu era o fenômeno da minha classe” é a peça mais experimental, apenas apresentando texto na página à esquerda, em composições “gramatextuais” (cf. Lapacherie, em que o arranjo, disposição e marcas tipográficas criam camadas de significado para além das do signo verbal), e na à direita, uma sequência de uma acrobata circense. É a relação entre essas duas camadas, a um nível superficial sem ligação, que se torna o grande motor da peça

Finalmente, “Pai Doce”, a mais longa e clara das histórias, remete a muitos dos “crimes familiares” que haviam sido explorados nos anteriores livros do autor, a falta de diálogo e compreensão no seio da família, alargados, esses sofrimentos, pelas questões que a doença e velhice agravam. Uma alucinação e breve comédia de enganos faz com que, em poucas páginas, possamos vasculhar toda uma vida de um homem, cheia de humilhações, preconceitos, complexos de inferioridade, enfim, uma bateria psicológica que em nada necessita de explicitações verbais.


E talvez seja essa mesmo a assinatura de Quintanilha, a de uma escrita que ronda, que se aproxima das raias, mas nunca toca, aquilo que nunca é dito.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.  

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