Esta é uma antologia de várias
histórias curtas que foram criadas ao longo dos últimos anos da
década de 1970, no Brasil, numa série de revistas mais ou menos
irmanadas num mesmo selo editorial (a Grafipar, de Curitiba), e que
haviam sido criadas por ímpeto e trabalho da dupla de argumentistas
que se encontram na capa. Quer Ruiz e Leminski são respeitáveis
escritores, poetas e agentes da cena intelectual brasileira do tempo
da ditadura e, como oficiais da palavra, lavraram-na para as mais
diversas disciplinas. Ora, é no seio da vida diária e alimentícia,
digamos assim, que Ruiz se viu envolvida em algumas das novas
revistas que pretendiam abrir novos caminhos feministas por entre as
publicações da época. Por instância do autor Cláudio Seto, ogrande “samurai” dos quadrinhos brasileiros, Ruiz começou a
escrever roteiros (eróticos e de terror para diversos projectos)
para pequenas bandas desenhadas, sendo seguida pelo seu companheiro e
vida e letras, Leminski, nessa tarefa. (Mais)
É portanto em títulos como Rose,
Maria Erótica, Neuros, e Aventuras de Quadrinhos
que vão surgindo pequenas histórias de 3, 4 ou por vezes mesmo 7
páginas, das mais diversas naturezas. Esta colecção, prefaciada
pela própria Alice Ruiz, explicando em larga medida o contexto
assinalado acima, foca sobretudo em todo aquele material que pode
ser, como o é, descrito como “erótico”. Esta última palavra
não pode ser entendida somente como pretendendo dar conta de
histórias titilantes cujo objectivo seria a excitação carnal do
leitor, se bem que esse factor está sempre presente, ora por
representações de sexo, ora pelos belos corpos desnudos de algumas
personagens, mas por vezes também por colocar o sexo e a nudez ao
serviço de outros efeitos ulteriores, ao se cruzaram com outros
géneros literários, nomeadamente o do terror, da ficção
científica, e sempre, ou quase sempre, roçando outros temas mais
abrangentes, desde a ecologia, o feminismo e a crueldade humana.
Com efeito, algumas das histórias
pouco teriam de erótico, já que terminam em choques inesperados,
quase sempre mostrando dever algo de estrutural às fórmulas
destiladas até à perfeição pela EC Comics na década de 1950 e
que pautariam quase toda a produção de “shockers” nas décadas
vindouras um pouco por todo o lado.
Apesar de haver uma maior prestação
de Ruiz do que de Leminski, estas 24 histórias revelam, a um só
tempo, as afinidades entre ambos os autores mas também as suas
diferenças. Leminski talvez demontre um maior humor negro nas suas
histórias, quase sempre deixando as figuras femininas na mó de
cima. A preocupação ecológica, por exemplo, é patente em duas
histórias, uma delas com uns contornos filosóficos e poéticos que
são particularmente comparáveis com o celebrado episódio “The
Rite of Spring”, da saga de Swamp Thing de Alan Moore et
al., a outra adiantando em muito certas fantasias em torno dos
nativos do Amazonas e cruzando-os com uma ficção científica
libertária muito em voga naquela década, quer nos Estados Unidos,
França como Portugal e Brasil. Já Ruiz sublinha várias vezes o seu
interesse numa espécie de pedagogia lúdica-erótica, ao introduzir
muitas das figuras da mitologia greco-romana através de pequenas
biografias em que os papéis dos deuses são sublinhados pelas suas
qualidades eróticas, remetendo, sem dúvida, para o valor que esse
conceito teria na filosofia platónica, por exemplo.
Sendo trabalhos de colaboração, não
será surpreendente ver aqui uma verdadeira procissão de muitos
artistas, alguns dos quais particularmente celebrados, como o já
citado Seto, mas também Flávio Colin, Julio Shimamoto, ou o
ilustrador Rodval Matias. Vemos também o que poderão ser os
primeiros trabalhos de um Mozart Couto, a caminho da sua veemente
arte à la Buscema. Infelizmente, existem algumas prestações menos
felizes mesmo de alguns destes artistas, ou participações de outros
artistas mais medíocres. No entanto, seria interessante analisar com
cuidado as estratégias visuais e compositvas de cada qual, uma vez
que existem vários momentos que “datando” o trabalho, não lhe
retiram qualquer rigor ou maravilha.
Uma vez que a fonte das imagens não é,
muito provavelmente (ou sempre) a arte original dos artistas, e
tampouco os fotolitos empregues nas publicações da época, algumas
das histórias sofrem uma reprodução menos sólida de fac-símile.
Seto é um autor que tira partido da dupla página e, trabalhando num
formato mais barato que permitia às pranchas “sangrarem” nas
margens interiores, a sua transposição para um formato mais nobre,
do livro, cria uma barreira visual mais alargada que não estaria
prevista, mostrando, uma vez mais, como muitas vezes os formatos são
parte intrínseca do acto criativo.
Dito isto, como sempre, os actos de
recuperação de material visto como “secundário” para o novo
modo de circulação “respeitável” da banda desenhada, são mais
que bem-vindos, nem que seja para aumentar os conhecimentos dos
leitores interessados e repor justiças históricas.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do livro.
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