Este parece ser o maior livro do autor,
terceiro a solo. Ye é um volume que quer abraçar de forma
directa e concisa um género determinado, que englobará a fantasia,
a aventura clássica (no sentido de movimento do herói), todo um
percorrer por paisagens mais ou menos familiares por territórios
consabidos da banda desenhada, a fábula antiga e, quem sabe, um
entendimento contemporâneo de que não é sempre necessária a maior
gravidade para conseguir tecer uma narrativa com um contorno de
grande lição a um público mais jovem. Apesar da sua leveza,
mesmo no sentido de Italo Calvino, no sentido em que opõe ao peso da
vida a possibilidade de reflectir através de elementos oníricos e
imaginativos, Ye é um livro que dispõe das suas estratégias
expressivas da forma mais determinada e pensada possível. (Mais)
Uma sinopse revelaria a linearidade da
intriga, que é uma condição sine qua non da aventura.
Apesar de começarmos, como desejam a epopeias, mesmo pequenas, in
media res, acompanhamos o jovem mudo Ye (apenas diz a sílaba que
perfaz o seu nome) na sua senda em busca de uma bruxa, Miranda, que
vive na longínqua cidade de Esperanza. A razão dessa busca deve-se
ao facto de o menino, de um vilarejo rural, ter sido “visitado”
por pássaros de mau agoiro, representantes de um suposto “Rei sem
cor”, que deixa a sua marca indelével nas suas vítimas. É essa
viagem longa que faz a parte de leão do livro, com pequenos
episódios divididos em partes que o fazem passar por piratas, um dos
círculos polares, um circo, uma viagem de balão e, finalmente, como
deseja a tipologia de J. Campbell, a “descida à barriga da
baleia”, a sua “noite mais negra” em que, previsivelmente, Ye
se defronta com os seus mais temíveis fantasmas internos.
A razão do interesse nesta história
não está, todavia, nessa estrutura, que parte como uma célere e
fixa seta, mas antes nos pormenores com que Petreca vai encastrando
essa viagem. As personagens ricamente construídas com que Ye se
cruza, a forma como o autor pensa a estabelece os espaços vários
visitados, os diálogos que se encontram à volta de Ye (a sua
participação é sempre limitada, mas constante e intensa) e os
elementos que constroem este “mundo diegético” são de uma
clareza e estímulo fortes. Mais surpreendente é ainda o facto
acrescido de que Petreca trabalha a linha a perto-e-branco,
recordando toda uma série de outros autores contemporâneos que une
este trabalho plástico à temática, a de “desenhos negros para
histórias claras” de um Tony Millionaire ou um Jeremy Bastian. Em
muitos outros aspectos também, e não de somenos um certo imaginário
popular, irmanará o autor brasileiro com a obra de banda desenhada e
ilustração de Susa Monteiro.
Petreca oscila entre páginas barrocas,
cheias de pormenores, objectos, marcas, num aturado trabalho cuja
base parece ser o aparo, mas acompanhado de pincel, aguadas, talvez
grafite e outras técnicas de manchas, e as pranchas quase
despojadas, sobretudo nas partes “simbólicas” e “oníricas”
que pautam a obra, usualmente ancorada na sua própria realidade.
A ancoragem, com efeito, não é feita
de forma alguma em informações localizadas, nacionais, especificas,
podendo ser algo que se passaria em qualquer parte do mundo, tirando
partido das tais fórmulas clássicas e transversais. Mesmo as
referências em espanhol, o galeão, a tenda de circo, as cartas de
Tarot, etc., que é natural remeterem a quadros culturais
específicos, parecem ser tratados antes numa sua dimensão mais
universalista (ou pelo menos aquela forma com que circulam no mundo,
o que não deixa, claro está, de ser sinal de um certo imperialismo
mesmo no campo da imaginação), ambígua e transversal do que
valendo pelo seu peso histórico. É nesse sentido que Ye se
torna uma espécie de fábula ou conto folclórico hodierno.
Nota final: agradecimentos à editora
pela oferta do livro.
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