Com
mais de 300 páginas, é tentador encontrar em Bulldogma um
objecto descritível como “romance gráfico”, no sentido que se
lhe atribui uma importância, a um só tempo, de tamanho, gravidade e
sofisticação narrativa, diferenciado-a de outras prestações no
mesmo território criativo. Não queremos de forma alguma negar a
presença de todas essas características no livro, mas antes
especificar, desde logo, que talvez estejamos menos em presença de
um “romance” do que de um densíssima, mas livre, novela centrada
na vida interior da protagonista, Deisy Mantovani, ilustradora (e
grafiteira secreta) que se encontra numa encruzilhada profissional,
mas igualmente nos destroços da sua vida amorosa, e no início da
habitação de um novo apartamento e de projectos criativos. Todas
essas linhas concorrem para criar um substrato da experiência que
criam as condições do que testemunharemos da sua vida, quer aquela
diária do mundo da vigília, quer aquela que é alimentada por ela
nas esferas da fantasia diurna, os medos nocturnos e os sonhos a
qualquer hora. (Mais)
Desta
maneira, ser-nos-ia permissível descrever Bulldogma como todo
um fluxo de consciência. Estamos perante um caso próximo de
focalização interna, em que o mundo diegético que se nos forma à
frente dos olhos, na superfície do papel, parte da consciência da
própria Deisy, mas em larga medida como se tivéssemos acesso mesmo
a imagens e relampejos contrafactuais que não são de forma alguma
controlados pela vontade e logicidade e razão da protagonista. Temos
acesso a toda uma camada de acontecimentos que, apenas mais tarde,
vamos perceber serem contrafactuais. Mas eles estão lá para
complicar a própria leitura das aventuras “reais” da jovem
mulher. Descrever, aliás, os eventos que compõem a trama de
Bulldogma incorreria na impressão de estarmos perante um rol
de episódios triviais, o que não é mentira, mas impediria de
percebermos como o autor explora precisamente essas trivialidades
através de métodos “mágicos”, quer pelas formas
estruturais-visuais que apresenta, elevando uma mais-valia a cada um
deles, quer através dessas tais interrupções.
Não
seguimos, contudo, apenas Deisy. Na esfera do seu bairro,
existem outras personagens, que apesar de jamais ganharem uma
importância em termos actanciais ou que contribuam de forma decisiva
para a história – o vizinho sofredor, um homem que se parece com o
protagonista do filme Her, de Spike Jonze, os caçadores
britânicos de raposas -, abrem brechas nessa linha concentrada em
Deisy. Naturalmente que podemos vê-los como mises en abyme do
que sucede à protagonista, reflexos distorcidos, complementos
temáticos, desvios de um padrão, ou outras configurações que
permitiriam a naturalidade desses arranjos, mas há uma parte
significativa dessas relações que se mantém irresoluta.
Willian
é, seguramente, um autor conhecedor das práticas contemporâneas da
banda desenhada, com as suas preocupações de pós-géneros
literários, de contaminações de várias disciplinas gráficas e
artísticas, passando pelas formas multilineares permitidas pelas
novas tecnologias e que influenciam as formas de distribuição dos
diálogos em múltiplas ocasiões, da inevitável densidade
intertextual (a ela voltaremos) que se verifica em vários circuitos,
e à de elevação da banda desenhada a uma linguagem livre (mas não
desprovida) das suas características clássicas. E Bulldogma
é um caso maior de uma conquista nessa direcção.
Por
exemplo, seria curioso fazer uma leitura comparada deste livro com
The Sculptor de Scott McCloud. A obra do autor
norte-americano, como se sabe, tira partido de uma forma quase
sistemática e constante de toda as capacidades expressivas e
estruturais da banda desenhada para criar “significado”. É
perfeitamente possível ler de uma forma constante a utilização do
formato das vinhetas, os ângulos de perspectiva, a composição de
página, a comicana, etc. e
compreender a significância
de todo e qualquer gesto. Mas como havíamos visto na leitura desse
livro, o seu emprego é tão gritante e em desespero da causa (de
forma literal) que rompe a pertinência estética do gesto, torna-o
um exercício árido, pesado e importuno. Por seu lado, não queremos
dizer que Wagner Willian não tira partido de todo o instrumentário
estrutural e expressivo possível à banda desenhada, mas fá-lo com
uma abordagem mais próxima de um processo estocástico e de
descoberta gestual, artística, próxima ao desenho. Bem pelo
contrário, se atentarmos à composição de páginas, muito variada,
à exploração de relação entre matéria verbal e de imagem em
termos de ancoramento e de tempo do discurso, aos vários níveis de
realidade (diegética, naturalmente)/fantasia, à navegação dúbia
entre as focalizações das várias personagens, veremos que o
controle de Willian não é de forma alguma displicente, ao acaso.
Todavia, há marcas de feitura física, manual, gestual, que apontam
para algumas possibilidades expressivas que nascem de uma abordagem
mais livre. Começando pelos próprios traços da dita graphiation,
o conceito de Philippe Marion que dá conta do labor artístico do
desenho. Wagner Willian, para criar densidades e sombras e volume nos
seus desenhos, cria nuvens de cinzento, possivelmente de modo
digital, mas imitando efeitos de vaporização da tinta, como
ocorrerá no pochoir ou stencil ou mesmo o grafitti, uma disciplina
bastas vezes citada ao longo da intriga. A nível da representação,
a forma como se fazem flutuações entre registos, episódios que
poderiam ser descritos como oníricos, fantasiosos, extra-textuais
(as “falsas” capas que vão surgindo sistematicamente como uma
espécie de meta-comentário sobre a trama narrativa), etc., também
criam uma camada de significação extra, que não apenas acresce à
responsabilidade interpretativa do leitor, como até a complica.
Com
efeito, não será sem algum esforço, e provavelmente de forma
irresoluta no final, que os leitores conseguirão “encaixar”
todos os acontecimentos testemunhados ou experienciados na leitura
uns nos outros numa linha fechada, causal e ontologicamente clara.
Haverá certamente troços que, como se costuma dizer em inglês, se
“explain away”, isto é, se eliminam através da explicação.
Quando Deisy fantasia com vários parceiros na cama (inclusive o
artista Ai Weiwei), isso demonstra-se de facto como uma fantasia
momentânea. Quando se vinga do escritor Mauro, matando-o à la
Charles “Death Wish” Bronson (logo após uma conversa com um
cameo de Marcelo D'Salete), percebemos pertencer à esfera da fantasia alimentada à
força de jogos vídeo. E haverá um punhado de “sonhos” que
poderão ser interpretados como tal, mesmo que não sejam enquadrados
por cenas de adormecimento ou despertares. Mas toda a trama, digamos,
“realista” de Bulldogma
é entrecortada por cenas que não pertencem a essa esfera, e em
retrospectiva, haverá mesmo objectos em presença dessa linha que
poderão não ser interpretáveis como realistas. Perguntar “esta
parte acontece mesmo?”, ou “que relação tem este episódio/cena
com o resto da história?”, ou até um “afinal o que aconteceu no
fim?” poderão revelar-se perguntas vexatórias para aqueles
leitores que desejariam uma resolução linear e simplista dos
eventos narrativos e até da construção anímica da protagonista.
Mas
é isso o que permite ler este volume munido de várias estratégias
bem distintas entre si mas sem que com isso se criem contradições
que o minem. Esta imagem surge quando Deisy resolve explorar o
interior de um buraco que reparadores deixaram no canto superior da
sua sala de estar. Uma mancha de humidade que se alastrava tornou-se
um buraco inexplicável e que, em vez de dar acesso ao andar
superior, se abria para um espaço sempre maior. A própria Deisey
entra nele e descobrimos ser o interior de uma caverna interminável
e obscura... Depois ela regressa à sala, e não mais regressaremos a
essa estranha dimensão. Mas a imagem em si, como poderão ver,
poderá ser lida de uma maneira alargada, havendo nas formas das
formações rochosas, as partes iluminadas e os vazios algo que é
reminiscente de uma meia-caveira. Propositado? Acaso? Que relação
entre essas possibilidades todas? É esse tipo de abertura entre o
narrativo, o onírico, o estrutural e o visual que é explorado
constantemente no livro.
Até
certo ponto, Bulldogma
poderia ser inscrito num grupo temático a que havíamos feito menção
quando da leitura de Shoplifter.
A eleição de uma protagonista feminina “em busca de si mesma”,
através de pequenas aventuras domésticas, profissionais e amorosas,
pejadas de referências às mais diversas culturas populares
contemporâneas, implicariam isso, mas estamos em crer que há uma
maior gravidade no livro brasileiro. Os momentos dos “passeios”
(oníricos? De memória? Projectados? Fora do programa narrativo,
através de estratégias metalépticas?) remetem a algum ambiente que
Aidan Koch explorara em várias das suas obras, mas encontram-se aqui
subsumidos a esta maior estrutura narrativa, se bem que a nudez de
Deisy, a sua insistência em mergulhar em águas, as plantas em seu
torno, permitissem uma leitura psicanalítica e feminista
(possivelmente com resultados previsíveis, mas ainda assim
merecedores da nossa atenção).
Efectivamente,
há uma questão importante que é a do intertexto em
Bulldogma. O autor torna de
forma explícita os seus exercícios de citação, como quando, por
exemplo, mostrando um poster de um filme num quarto ou num bar ou
permitindo “escutar” uma composição musical que atravessa o
livro nos premeia com notas de rodapé informativas. Mas não apenas
nisso que cria essas redes. Elas surgem em relação a toda e
qualquer forma criativa e muitas vezes fazem parte até do discurso
das personagens. Há um momento, por exemplo, em que Deisy se refere
a Playground, de
Berliac, que se torna uma espécie de modelo para ela mesma no
projecto de banda desenhada a que se entrega (sendo claro, pelo menos
até certo ponto, que não deixa de ser um reflexo metatextual ao
próprio livro de Wagner Willian
que estamos a ler, mesmo que existam distâncias biográficas
distintas, mas pouco importantes para a nossa
leitura). É mesmo difícil evitar criar redes de citações mais ou
menos indirectas... a implicação de que Deisy criará a sua própria
“novela gráfica” recorda alguns dos argumentos em torno do caso
Judith Forest; as citações de filmes e outros produtos de
sub-culturas cria um fenómeno idêntico à de muitas referências da
banda desenhada alternativa dos anos 1990; a indecisão, ou bem pelo
contrário a abertura, sexual de Deisy remete à literatura
confessional de autoras tais como Bechdel, Gloeckner ou Bell, cada
qual a seu modo...
Essas
referências tanto podem servir para aumentar uma textura cultural da
qual Bulldogma se
eleva ou na qual medra, como se podem tornar formas de criar uma rede
de diálogos interpretativos, com implicações não apenas na trama
narrativa como no seu juízo político e social. A título de
exemplo, a forma como vamos lendo os axiomas grafitados nas paredes
das ruas pelas quais a protagonista de move vai ganhando importância,
à medida que as articulamos com as acções ou o que aprendemos
sobre a vida dela. A nossa capacidade de leitura de pormenores também
pode ganhar uma função de adensamento dessas referências (uma lata
na prateleira de um supermercado, a corruptela sobre uma marca, um
balão referencial para denotar um termo onomatopeico, um brinquedo
sobre a secretária), que criam não apenas essa sensação de
realidade partilhável, como de estrutura cultural à qual a vivência
de Deisy responder. Veja-se também a contínua forma como o trabalho
profissional de Deisy, enquanto ilustradora inscrita numa agência,
trabalhando para marcas comerciais, depois para um autor literário
conhecido, etc., pode ser lido como um comentário sobre a situação
financeira, política, ética, em que todos
os autores trabalham, inclusive as do próprio autor. Não sendo uma
obra autobiográfica, e sendo até possível que uma leitura dessa
natureza pudesse ser abusiva para com Willian, não deixa de
transparecer essa possibilidade, mesmo que remota.
Porém,
não é essa a direcção que tornaria a leitura de Bulldogma
mais forte, mais relevante nem estimulante. Essa deve ser aquela que
desliza de forma, a um só tempo, descomprometida e comprometida com
a superfície do livro. Descomprometida porque Bulldogma
pede que seja lido de uma assentada, tal qual a vida se vive, num
fluxo ininterrupto e onde os seus vários componentes não são
vistos como incompatíveis por questões de estilo, modo ou humor,
mas pura e simplesmente parte intrínseca da vida. Comprometida pois
é preciso ter-se em atenção como as aparentes formas livres com
que o autor tece os episódios e as páginas, mesmo sendo fruto de
abordagens descontraídas, são fortalecedoras desses significados
mais ocultos mas “sem segredo” (isto é, sem um enigma último
que possa ser decifrado, mas tão-somente vivido). A teórica da
narratologia Marie-Laure Ryan considera
o seguinte: “A narrativa não é apenas uma intriga reduzida a um
arame capturável por sumários, mas a expansão desse arame numa
experiência imaginativa total num mundo espácio-temporal ao qual
reagimos intelectual, emocional e por vezes esteticamente”. Se
procurarmos esse arame somente, é possível que se instalasse uma
insatisfação, mas que se nutriria pela distração e ignorância.
Pode até ser discutível se a camada emocional de Bulldogma
não é um tanto ou quanto menos desenvolvida, já que não se trata
aqui de uma concentração nessa dimensão humana. Mas já esfera da
intensidade intelectual e estética, não poderá haver dúvida de
que este livro de Wagner Willian atinge um plano superior.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. O autor tem um blog em que desdobra muitas informações e referências, aqui.
Sem comentários:
Enviar um comentário