Quando a edição de Sandman, pela Devir, se viu interrompida
por problemas de cariz legal e internacional, que não era imputável à editora,
tecemos algumas considerações gerais sobre a série. A elas remetemos, pois
apesar da distância de dez anos, algumas dessas notas são ainda pertinentes. É
verdade que a leitura desta série, no início dos anos 1990, se fez numa
paisagem mediática e de produção de banda desenhada profundamente distinta
daquela que é possível nos nossos dias, já para não falar da própria recepção
pessoal, que tem de ser diferente por razões tão várias quanto óbvias. (Mais)
A influência da série é inegável, e seria um rol imenso a sua descendência. É natural que, numa paisagem mais alargada de referências à história da banda desenhada, não é Sandman a estrear certas práticas (por exemplo, a de explorar a “vida real” de personagens fictícias, ou a de colocar autores reais em vivências ficcionais/alternativas, ou a de pensar a própria escrita pela ficção), se tomarmos em conta a obra de um Masereel, um Oesterheld, uma Kominsky, um Pratt, Forest e Tardi ou um Baudoin, mas mais do que de “banda desenhada matura”, deveríamos falar da “abertura do mainstream a temas mais maduros”, o que é uma diferença substancial. Mas ao mesmo tempo, verificar-se-ia um outro lado da equação, para bem ou para mal, que foi o da crescente aceitabilidade do género de fantasia (adjectivável como “alta”, “urbana”, “negra”, etc.) por públicos cada vez mais alargados e com uma substancial recepção mediática fora dos canais especializados. Talvez seja hoje complicado apercebermo-nos, no seio das torrentes criadas por Harry Potter, O senhor dos Anéis (em filme), Game of Thrones, etc. que esse tipo de histórias estavam relegadas a “nichos” e não ao prime-time, e, sem querer criar mono-causas ou hiperbolizar importâncias de valor, Sandman esteve na origem desse movimento (se bem que nem todos esses produtos se aparentem à saga de banda desenhada no que diz respeito à sofisticação da escrita, à subtileza de emoções e estrutura, à validade intergeracional).
Ao longo dos seus dez
volumes, os leitores atravessarão histórias da mais diversa natureza. Se no
absoluto início poderemos ter a sensação de estar num território relativamente
familiar, misturando a fantasia negra com o horror, com algumas veleidades de
super-heróis, e num estilo visual algo atabalhoado, à medida que se avança
compreender-se-á que a direcção se vai alterando para se tornar numa espécie de
reflexão meta-textual sobre a própria condição da imaginação, da criatividade,
dos sonhos e do acto artístico. Não apenas as suas possibilidades, mas o seu
preço. Gaiman não deita a água do banho fora com o bebé, isto é, não abandona
totalmente as convenções genéricas (pense-se como é possível identificar
histórias individuais como de terror, policial, de navegação, drama
psicológico, romance de amor, e, claro, “conto de fadas” ou “tradicionais”) ou
até as ideias-feitas sobre determinados territórios literários e de banda
desenhada, mas explora-os nas suas implicações mecânicas e éticas. Basta pensar
nas vezes em que se cita a noção de que “era tudo um sonho” para, em vez de
retirar importância ao que foi relatado por essa razão, se reforça o seu valor
e função actancial em toda a trama.
Se Alan Moore havia iniciado a
ideia da “desconstrução” do género, Gaiman aumenta o grau de metalepsia, das distorções
internas, da capacidade de auto-reflexão, de pensamento crítico, mas sempre no
intuito de reforçar as fronteiras e a importância da ficção. Ele não é um autor
que deseja rasgar o poder da fantasia para revelar o quão vazio é esse
escapismo, ao mesmo tempo que o mundo real se mantém vivo “lá fora”. Bem pelo
contrário, reforça a potência dessa mesma fantasia e ficção como forma de
compreensão desse tal real, aliando-se dessa forma a autores tão distintos como
Shirley Jackson, Terry Pratchett, Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Kurt
Vonnegut ou China Miéville.
A escrita de Gaiman, nesta série (a nosso ver, menos
concentrada do que nos seus livros anteriores, mais alternativos, mas mais
burilada que nos romances, mais leves), atravessa os mais diversos humores, e é
possível encontrar os sentimentos mais comoventes no seio da mais terrível e
odiosa das tempestades, sentirmos a mais forte simpatia por um vilão ao cometer
o seu crime, e rirmo-nos momentaneamente durante a mais prolongada das
tragédias.
Se testemunhamos o modo como o
protagonista, Morfeu, se vai alterando no seu âmago e desabrocha para emoções
que ele não suspeitava poder sentir, na verdade não exercerá jamais a
capacidade de se tornar simpático para com os leitores. Ele é, apesar de tudo,
a personagem mais arisca nesse sentido. Todavia, a procissão de personagens
inteligentes, vivas e completas que vão atravessando todas as histórias
compensa esse estranho equilíbrio. E a leitura atenta e seguida dos volumes, ou
até mesmo a sua re-leitura informada, demonstrará como há uma elegância de
reflexos, pistas, simetrias, expectativas e revelações que torna toda a saga
numa jóia una e coesa, de várias facetas, e que é responsabilidade do leitor
descobri-las (roubamos aqui uma metáfora que o próprio Sandman emprega sobre a
sua pessoa).
Não deixa de ser um cliché afirmar
que Sandman nos apresenta toda uma
mitologia, mas o mais importante é recordarmo-nos que, tal qual as mitologias
na sua acepção mais antiga e verdadeira, são histórias de entidades que, apesar
de poderosas, se movem por vontades tão passionais, falhas e patéticas quanto
os seres humanos que regem (e isto é verdade nas Metamorfoses e no Génesis,
nos Vedas e no Edda). E é isso o que se mantém em Sandman. Mais importante do que elogiar o seu contributo para um
novo imaginário – um efeito de superfície que, sempre que imitado por outros
autores, usualmente falhou -, a valência de Gaiman está em revelar o que de
mais humano nos move, comove e incomoda. E ao mesmo tempo que nos redime enquanto humanos.
Para mais, a palavra “mythos”
remete para a ideia de histórias, que se contam (se “tecem”!, como as Erínias
ou as Euménides tão bem explicam e personificam na última verdadeira história, As Benevolentes), e que esta série
também ilustra e ilumina. São tantas as “histórias sobre histórias” em Sandman, e ela própria não o deixa de
ser na sua estrutura maior. Seria bem possível colher dezenas de afirmações,
ditas pelas personagens, principais ou outras, autores eles-mesmos ou menores,
que poderiam passar por uma espécie de “confissão de arte” da própria obra. Não
é impossível pensar na possibilidade de empregar as histórias (os episódios, os
contos, os “arcos”, toda a saga) como pontos de partida para o estudo do
desenvolvimento da própria ideia de narrativa, fosse de um ponto de vista
narratológico, criativo ou de ontologia literária.
Em termos visuais, talvez a série
não prime pela coerência ou a constância, ou sequer, em alguns volumes, pela
beleza. Teremos as nossas preferências, mas em termos gerais Sandman não é tanto memorável pela sua
prestação visual e estrutural – que se mantem na generalidade pala “competência
suficiente”, e apenas com excepções se torna mais feliz (com Jill Thompson,
Marc Hempel, Bryan Talbot, Jon J. Muth e George Pratt) – do que pela sua
completude literária.
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