Nota
de intenções: tendo traduzido dois volumes desta colecção, assim
como escrito o prólogo de dois outros, temos uma associação
profissional a esta colecção.
Tendo
terminado esta colecção, e não tendo tido oportunidade antes de
falar sobre ela, esperamos que ainda sejam pertinentes estes
comentários, uma vez que a colecção continuará disponível quer
através da rede do Público quer, mais tarde, no mercado
livreiro. As ideias apresentadas a propósito da primeira colecção
são ainda válidas para esta segunda. Compreendendo-se que o mundo
editorial em Portugal, no que diz respeito à banda desenhada, ainda
não se encontra num estado óptimo, sobretudo no que diz respeito à
sua recepção e circulação, a aposta em apresentar de rompão toda
uma série de títulos é uma estratégia válida. De certa forma, é
mesmo uma maneira de revalidar alguma da sua história, aumentar
exponencialmente os títulos disponíveis de entre os “clássicos”,
os “desconhecidos” e os “contemporâneos”, e, de resto,
trazer algum grau de diversidade à sua maneira. Não sendo possível
esquecermos os gestos, tão diferentes mas sustentados e
programáticos, de editoras como a Polvo, a Chili Com Carne e a
Kingpin Books, selos mais pequenos mas também buscando coerências
várias, como a El Pep, o Clube do Inferno, a Libri Impressi, os
projectos comerciais sólidos da Devir, da Goody e da G.Floy, os
gestos mais ou menos isolados de editoras generalistas com apostas na
banda desenhada nacional e internacional (Bertrand, Parceria A. M.
Pereira, Tinta da China, Teorema, Gradiva, etc.), a paisagem é
suficientemente variada para albergar e acomodar os propósitos
destes projectos da Levoir. (Mais)
Por
comparação à primeira colecção, poder-se-á dizer que há um
peso menor no que diz respeito à impressão de conjunto, já que na
colecção anterior, apenas um volume, dos doze, parecia escapar à
ideia de “autores famosos e historicamente importantes” (o de
Beyruth, que remetia até para um universo de referências ausente em
Portugal que a Polvo tem tentado corrigir com a sua colecção de
autores brasileiros). Mas a configuração desta segunda colecção
pauta-se por outras linhas. Dos quinze volumes desta segunda leva,
temos uma distribuição distinta. Se definirmos “clássicos”
como livros que já apresentam uma distância histórica considerável
e tiveram um papel fundamental e influente no que se seguiria no seu
campo, restrito ou não, temos acesso a X livros dessa natureza: V
de Vingança, as histórias de Valentina, a Garagem
Hermética, Fogos e Murmúrio e Exércitos do
Conquistador. Se considerarmos que esta colecção pode também
providenciar-nos acesso a livros muito recentes, estreando-os no
mercado nacional, então A asa quebrada e Presas fáceis
são bem-vindas. Um outro papel que poderá desempenhar é o de dar a
conhecer autores ou obras que não são particularmente conhecidas
entre o público português. É nesse campo que os livros de Zeina
Abirached, de Baker e Zezelj, de Barreiro e Risso são algo
surpreendentes. E há depois um esforço em dar a conhecer livros com
algum sucesso internacional, nos seus vários momentos históricos, e
que seguramente encontrarão o seu alargado e variado público,
acrescentando-se assim as referências aos veteranos Joe Kubert e
Bryan Talbot, o celebrado autor espanhol Paco Roca, os gémeos
brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá e o repetente Jiro Taniguchi.
Se a diversidade de género não é ainda a desejável, em termos
geográficos temos alguma diversidade, assim como termos geracionais
e seguramente que em termos de género e de humor e estilo.
Sobre
os processos de escolha e a forma como esta é balizada quer por
limitações físicas, financeiras e legais quer por parâmetros
editoriais, falámos alargadamente, pelo que reiteramos a ideia de
que nos parece um exercício algo fútil em exercer fantasias de
selecções hipotéticas ou alternativas. É certo que olhando para
esta selecção, poderá até surgir uma certa ideia de “conforto”
em termos físicos e temáticos, mas não convém deixar de ter em
mente os princípios materialistas necessários, sejam os que têm a
ver com a materialidade dos livros (e a possibilidade de não
ultrapassarem um preço médio e a de serem distribuídos com um
diário) sejam os que têm a ver com o retorno financeiro.
Gostaríamos de ver A saga de Xam publicada entre nós? Claro
que sim. Neste veículo? Seria ridículo.
Dito
isto, e sendo-nos difícil escrever alargadamente sobre cada título,
repetiremos o exercício de pequenas notas sobre cada volume,
esperando ser o suficiente para os nossos leitores, mas remetendo
para textos mais alargados, tecidos quando das publicações
originais. A ordem é meramente alfabética dos autores.
V
de Vingança. Alan Moore e David Lloyd. Tal qual a
colecção anterior, ela é iniciada com um livro que, não sendo
consensual na sua recepção, teve um papel indubitavelmente
fundamental na forma como alteraria o entendimento das
potencialidades temáticas da banda desenhada a uma escala alargada.
Com uma forma de produção algo atabalhoada, iniciada na revista
Warrior no auge do Thatcherismo, V for Vendetta poderá
ser descrito como uma fantasia anarco-romântica de vingança contra
os maiores abusos político-económicos do regime liberalista
britânico da sua época, que lançara uma grande parte da população
para situações desesperantes. Alan Moore, que começava os seus
primeiros passos como um escritor capaz de entrosar os princípios
genéricos da banda desenhada juvenil escapista com preocupações
realistas e associadas de modo directo ao mundo que o rodeava, vai
avançando, não sem titubeações, na sua exploração do que se
consegue fazer com a banda desenhada fantasiosa em relação a essa
mesma realidade. Se toda e qualquer produção de cultura, popular ou
erudita, está imbuída em ideologia, e para mais, a popular gosta
muitas vezes de disfarçar a sua ideologia afirmando estar fora dela,
Moore pura e simplesmente torna a ideologia de V o mais clara
possível (patente nas longas tiradas, discursos e maiêutica com
Evey), de forma a explicitar o caminho para a destruição da
distopia do seu mundo diegético. Com efeito, essa destruição
chega, mas sem que se apresente o reverso utópico, ou se enraíze
qualquer “solução”, o que torna este livro numa espécie de
espelho que os leitores da sua época deveriam levantar aos seus
próprios rostos. Como todos os espelhos, porém, ele funciona
igualmente para os tempos futuros. Para mais comentários nossos
sobre a obra, ver aqui. (A tradução deste livro foi feita por nós).
A
asa quebrada. Antonio Altarriba. Tendo escrito o
prólogo para este livro, é nele que elaboramos uma mais densa rede
de considerações sobre a relação entre o acto de memória do
escritor, Altarriba, e a forma como um livro pode servir a um só
tempo de exercício de recuperação, homenagem e redenção de uma
culpa. Se A arte de voar era “o livro do pai”, também
acrescentamos, Altarriba perfaz um gesto idêntico ao de Bechdel em
Fun Home – Are You My Mother? ao criar consequentemente “o livro
da mãe”, que até certo ponto complementa, corrige e fecha o
anterior. São livros que têm de ser lidos em conjunto, por mais
diversa que seja a natureza de ambos, não somente por criar uma
malha de uma mesma família, mas porque revelam facetas diferentes da
mesma (?) História de Espanha. É curioso notar igualmente como, não
se tendo alterado os instrumentos estruturais, visuais e figurativos
de Kim, como não se alterou o lavrar da palavra de Altarriba, o seu
propósito se altere profundamente pelo humor e espírito da obra, em
A asa quebrada de um modo apenas à superfície tranquilo mas mal
contendo a tormenta psicológica que moldou a vida da mãe do autor.
A
história de um rato mau. Bryan Talbot. À distância
de mais de vinte anos, e depois da publicação, posterior, de obras
por autoras tais como Lynda Barry, Phoebe Gloeckner e Debbie
Dreschler, que abordam o mesmo tema de forma autobiográfica,
directa, crua e subtil, poderá parecer algo deslocado que um autor
britânico, homem, crie uma história sobre uma vítima de abusos
contínuos sexuais incestuosos, e numa narrativa algo concentrada em
que a resolução esteja acessível e acabada. O trauma surge
perfeitamente identificado, de contornos mais ou menos domesticados,
e a protagonista, Helen, consegue conquistar a sua ultrapassagem. À
luz dos estudos do trauma, e até mesmo a ficções ou projectos
autobiográficos na banda desenhada consequentes, poderá parece-nos
então que a ficção de Talbot é demasiado arrumada e elegante em
termos narrativos e dramáticos. Mas como o próprio autor recorda no
posfácio, estávamos ainda longe de um panorama em que a banda
desenhada mainstream tratasse precisamente destes temas de uma
maneira que não criasse uma distância tremenda em relação ao que
“deveria ser” a banda desenhada. O entrosamento da ficção em
torno da vida e obra de Beatrix Potter torna todo o projecto num
exercício intertextual digno de nota, e o próprio processo de
construção da intriga e da matéria visual, se poderá apresentar
algum ou outro desequilíbrio, é ainda assim notável pela sua
tentativa ética de ancorar a sua existência na mais palpável das
realidades. Um livro que, apesar da sua elegância de resolução,
apresenta aspectos difíceis, A história de um rato mau não
deixa de confirmar um princípio psicológico profundo, a de que
fantasia não é tão-somente um escapismo e defesa negativo, mas
antes uma plataforma que reforça a personalidade e permite a esta
enfrentar e construir a própria realidade. (A tradução deste livro
foi feita por nós).
Daytripper.
Gabriel Bá e Fábio Moon. Tendo escrito sobejamente sobre este
livro quando da sua edição original, a esse texto remetemos. Apesar
da qualidade sentimentalista algo desusada do volume, que o torna
aparentado a um desses romances contemporâneos nos escaparates, ele
tem lugar nessa circulação que pretende ver a “novela gráfica”
ou o “romance gráfico” como a confirmação dos mesmos
problemáticos patamares confortáveis.
Valentina.
Guido Crepax. Um volume que coleccionasse todas as histórias
desta personagem seria incomportável, além de que teria de englobar
igualmente material narrativo que não a tinha como protagonista mas
lhe havia dado origem. Assim sendo, e no seguimento dos esforços,
que contaram com a colaboração de Manuel Espírito Santo, que
levariam à edição em curso pela Fantagraphics, este volume reúne
um conjunto de histórias que poderá servir de excelente introdução
a novos autores daquela personagem que mais colocaria Guido Crepax
num mapa de inovadores da banda desenhada europeia no final dos anos
1960. Uma das vantagens deste volume estar integrado neste grupo de
títulos é a forma como evita, tal como experiências anteriores da
publicação do autor italiano em Portugal, de o subsumir ou reduzir
a um “autor erótico”. Não se pode negar essa dimensão,
naturalmente, mas se Milo Manara ou Magnus, para nos atermos à banda
desenhada moderna italiana, são autores que têm excepções
magníficas e celebradas na sua obra mas poderão ser descritos como
nomes que criaram a sua fama pelo erótico, ou se Serpieri e
quejandos não escaparam jamais de uma mediocridade a ela reduzida,
Crepax deve ser pautado pela sua inventabilidade gráfica, a sua
capacidade de reestruturar as formas de pensar a organização de uma
página e do tempo da narrativa, enfim, como alguém que pensou de
forma intensa a própria labuta da banda desenhada. Além do mais, o
erotismo de Crepax, ao contrário de todos esses autores, está na
senda intelectual, libertina e politicamente progressiva de um
Bataille ou Klossowski, mesmo que a matéria narrativa se atenha a
clássicos do libertinismo como Sade, Sacher-Masoch ou Desclos. Se
não perde a qualidade de “um objecto de desejo”, Valentina
reforça esse papel pela sua capacidade máxima de “sujeito”.
Exércitos
do conquistador.
Jean-Pierre Dionnet e Jean-Claude Gal. No início de 1975 tinha
início em França uma das revistas fundamentais da modernidade da
banda desenhada naquele país, mas também além-fronteiras, a Métal
Hurlant. Fundada por Jean-Pierre Dionnet, argumentista e crítico
de banda desenhada, e logo apoiado pelos artistas Moebius e Druillet,
este pequeno grupo editorial que faria o primeiro corpo da Les
Humanoïdes Associés tinha acima de tudo o desejo de explorar o
género da ficção científica, mas como ele estava a ser entendido
naquela década, quer em termos literários (Ballard, Herbert,
Moorcock) quer cinematográficos (Kubrick, Godard, Marker, Rilla)
quer mesmo na banda desenhada, na era pós-Losfeld (Barbarella,
A Saga de Xam, Pravda, etc.). De uma
forma livre de limitações de tamanho, instrumentos expressivos ou
abordagens estilísticas, a revista pretendia trazer temas “maduros”
(leia-se, muitas vezes, sexo e drogas), mas também a possibilidade
de fazer outros cruzamentos. É precisamente nesse sentido que este
volume, que mais tarde faria parte da série Epopeias Fantásticas,
se alia ao género conhecido por sword and sorcery, mas para
explorar contornos bem distintos daqueles de um Conan ou Kull.
De facto, o mundo diegético em torno do herói Arn é uma espécie
de mundo primitivo à la Ciméria do famoso personagem de Howard, em
que as espadas, os cavalos, as altas torres de pedra, as ocultas
cavernas sombrias e a magia negra são os ingredientes que o povoam.
Mas alimentado por toda o conhecimento da literatura contemporânea
da sua época, o desencanto e cinismo europeu tintam esses mundos de
fantasia com uma melancolia e pessimismo que impede compulsar estas
páginas somente na busca de uma saga épica e heróica. Os desenhos
de Gal, mais devedores à escola dos grandes ilustradores
naturalistas norte-americanos que as linhas estilizadas dos seus
colegas franceses, são de uma aturada e rendilhada obsessão pelo
pormenor (mais salientada pelo preto-e-branco original que as cores
que suavizam os contrastes), criando densas texturas de sombras e
objectualidade nas suas imagens, capazes de ombrear as fantasias de
um Buscema, com os quais partilharia o gosto pelas posições
dinâmicas, teatrais e anatomicamente correctas e pela fantasia de
capa e espada.
Terra
de Sonho. Jiro Taniguchi.
Antologia de relatos curtos, os quatro primeiros relacionáveis
até certo ponto pela coincidência de personagens, também havíamos
escrito sobre este livro na sua edição francesa, assim como o
prólogo para este volume. Se bem que mais disperso, como é de
esperar, em termos temáticos ou de acção, Taniguchi revela aqui a
sua conhecida capacidade de observação daqueles aspectos quase
inócuos e invisíveis à visão mais distraída. Mais, é aqui mesmo
que ele treinou essa observação e prática, de uma mangá que
coloca quase em suspenso a ideia de intriga e caminho para a
resolução narrativa, do que a ambientação e o crescimento interno
das personagens (emotivo, cognitivo, intelectual, religioso até),
providenciado pela rede interrelacional que estabelecem. Irmanando-o
com autores como Cosey ou Comès, em que os não-ditos acabam por
ganhar um peso considerável nesse crescimento, reiterar o nome de
Taniguchi não pode ser visto como uma “repetição”, mas antes
como um acesso coerente a um autor importante.
Fax
de
Sarajevo.
Joe Kubert. Kubert
é um autor celebrado, entre outros géneros, pelas suas bandas
desenhadas de guerra, com Sgt.
Rock
à cabeça. Mas estamos longe de um autor que, como Harvey Kurtzman
ou Oesterheld e Breccia, décadas antes, haviam explorado o lado
humano, falho, fraco e até mesquinho dos envolvidos na guerra, sejam
eles descritíveis como “agressores” ou “agredidos”. Bem pelo
contrário, foi sempre seu território a heroicidade dos seus
protagonistas, mesmo quando quis revelar facetas menos positivas.
Este volume é uma sua tentativa em criar uma espécie de abordagem
realista e até de reportagem, ao “traduzir” em imagens os
relatos que o seu agente Ervin
Rustemagic lhe enviava via fax, preso na cidade acossada pelo
exército sérvio. Mas num panorama em que existia já o trabalho de
Joe Sacco, e o próprio género do jornalismo em banda desenhada, em
retrospectiva, se começava a formar, Kubert demonstra neste livro
uma das vias pelas quais o desenvolvimento encontra imediatamente as
suas limitações: afinal de contas, não se pode falar aqui de
deontologia ou de verdade, uma vez que as distorções narrativas,
figurativas e estilísticas de Kubert não fazem parte do
instrumentário expectável e inevitável, mas antes das suas
próprias fórmulas utorais, que nos lançam a géneros mais
convencionais (pense-se no que faria posteriormente em Yossel).
Relato
por procuração, quase também nos poderia recordar o projecto de E.
Guibert sobre as memórias e vivências de Alan Cope, mas onde a obra
do autor francês suspendia o melodrama em nome de uma compreensão
poética de um quotidiano, Kubert, como não pode deixar de ser,
coloca o drama no centro do palco, por vezes mesmo quase até ao
limite da suportabilidade da painxploitation.
Luna
Park. Kevin Baker e
Danijel Zezelj. Fãs de séries como Boardwalk
Empire, Deadwood, The Sopranos encontrarão
sobejas razões para apreciar a forma como Baker estrutura este
romance. Por um lado, poder-se-ia dizer que Luna Park
se constitui enquanto uma ficção historiográfica entrosada
num denso thriller mas também um romance de amor melancólico
e quase desesperado entre Alik Strelnikok e Marina. Por outro, há
uma atenção particular para com um quotidiano quase trivial da
classe criminosa de Coney Island, a máfia russa, e uma preocupação
em assegurar que compreendemos a rede social que a sustenta e move.
Mas estas duas faces – a espectacular e de género e a trivial –
vai ser derrotada por uma outra ordem de realidade. Alik é visitado
por traumas da guerra, ou diríamos antes, pelos crimes de guerra
perpetrados por Alik na Chechénia, os quais se tornam uma camada que
o vai cobrindo como um fantasma na consciência, e o vai colocando em
territórios cada vez mais afastados da realidade. Através da droga,
do álcool ou mesmo das fugas providenciadas pelos sonhos, Alik acede
a uma espécie de memórias de outra vida, lançando a intriga para
revisitações a vários momentos da história da humanidade, ora
mais associado à cultura russa ora criando elos à ideia da eterna
guerra. Lentamente, então, aquilo que parecia uma narrativa realista
e gritty do crime urbano, em torno de questões como as da
honra e lealdade, paixão nacional e amor carnal, responsabilidade e
desejo, entra num campo de contornos em maior fluxo, entre a fantasia
negra, o sobrenatural e o onírico. Uma comparação possível seria
com a série Zero, escrita por Ales Kot e desenhada por uma
pequena companhia de artistas. Tal como esta série, Luna Park
tem um início que parece perfeitamente ancorado num género
literário conciso, balizado e linear, para lenta mas seguramente
penetrar territórios bem mais desarrumados, oníricos e livres, e
que nem sempre mostram preocupações de re-naturalizar as suas fugas
de sentido. Naturalmente, a arte entre o diáfano e o esfumado de
Zezelj encontra-se aqui como o veículo perfeito para esta estrutura
de fronteiras móveis e dúbias, quase opiácea. Na edição original, as cores
ocres e plúmbeas de Dave Stewart eram raramente visitadas por um débil azul
eléctrico ou o vermelho do sangue, que assinalavam os choques da memória assaltada do protagonista. Aqui, estando apenas a preto-e-branco, sublinham a qualidade de aço do artista croata.
Fogos
e Murmúrio. Mattotti e
Kramsky. Este volume reúne dois livros que, quando foram
publicados, foram de um impacto significativo. Graças
à revista brasileira Animal, muitos dos leitores portugueses tiveram
acesso a toda uma geração de autores italianos dos anos 1980,
inclusive este autor que se parecia abandonar a fabulosos devaneios
cromáticos e abordagens pictóricas a pastel e pincel, quase sem
preocupações em fomentar uma consolidação naturalista. Há
claramente um trabalho que tira partido da deambulação gráfica,
mais do que da planificação narrativa. Aliado ao seu companheiro e
escritor Kramsky, com quem formara toda uma série de relatos curtos
tão absurdos e oníricos quanto intrigantes, tece em Murmúrio
uma história maior, mas pautada pelos mesmos elos desobrigados e num
processo próximo àquela da Garagem
Hermética de Moebius.
Falar de história de amor é uma possibilidade, mas de exploração
fantasmagórica é outra, em que personagens mágicas, misteriosas e
simbólicas criam, como sempre, uma mais-valia que, mesmo que a
leitura linear não pareça revelar um
sentido, trará uma forma holística final. Já Fogos,
trabalho a solo e anterior, e possivelmente o
título que construiu o nome do autor italiano, apresenta-se como uma
novela mais coesa, e até linear, em torno de um oficial militar que
“goes native” numa misteriosa ilha, parente daquela de Próspero,
“cheia de ruídos”. Dizemos linear se nos atermos, claro, aos
“eventos” recontáveis numa sinopse. Mas Fogos não pede isso,
antes quer que tenhamos atenção às formas sinuosas como esses tais
ruídos, vozes, reflexos, brilhos, e trevas se insinuam no espírito
do marinheiro Absinthe e lho abrem para uma outra realidade que não
a da vigília. Novela iniciática tanto para o personagem quanto para
o leitor, esta é uma oportunidade única para conhecer um dos ditos
mestres da cor directa (se bem que não nos devemos esquecer do seu
barroco trabalho de linhas finas, como O
homem à janela,
que por cá saiu pela Fenda no final dos anos 1990).
Presas
Fáceis. Miguelanxo Prado.
O título é estimulante porque é desde logo paradoxal. Tratando-se
de uma novela policial com vítimas e vilões, a primeira pergunta
que se nos coloca é quem serão as “presas”? Se num primeiro
momento se responderia se tratarem das vítimas dos assassinatos,
rapidamente os papéis invertem-se e passamos a reconsiderar a que
tipo de “facilidade” diz respeito o título. Ainda que afastado
do humor cáustico do primeiro absurdo que deu nome a Prado, mas
igualmente distante de um certo ambiente delicodoce das suas últimas obras – portanto fortalecido por um uso sóbrio de uma figuração
sólida e um preto e branco discreto - , o autor galego cria aqui
talvez a sua obra mais realista, no sentido de criar efeitos de
referencialidade directa com o seu contexto nacional e contemporâneo,
tecendo uma história em torno dos muitos idosos que perderam as
economias de uma vida, inclusive as pensões, em nome das negociatas
dos bancos em aplicações tóxicas (algo comum em Portugal ao
conhecido caso dos “lesados do BES”). Não deixando de ser uma
moralista novela de vingança, o autor coloca no palco uma fantasia
que muitas vezes, provavelmente, alimentamos nas horas de vigília ou
em comentários inpensados e passionais quando somos confrontados com
essas notícias. Quase totalmente relatado da perspectiva dos dois
policiais que estão a tratar do caso das misteriosas mortes de
vários funcionários de bancos espanhóis, mas com pequenas
desarrumações, Presas
fáceis acaba por ser
menos um “whodunnit” do que uma interrogação do nosso
posicionamento moral face à situação, ao crime e à pena. Por
isso, em relação a esta última, a irresolução é a única
resposta.
A
Garagem Hermética.
Moebius. Iniciada nas páginas dos primeiros números da mítica
revista Métal Hurlant, um autor que por esta altura
procurava desfazer-se da sua pele de “desenhador de westerns”, a
de “Jean Giraud”, encontrava numa ficção científica livre e
psicadélica (Arzach) o caminho para a sua reinvenção
autoral, enquanto Moebius. Ora “A garagem hermética” começou o
seu caminho como um mero exercício de descompressão, de escrita ao
acaso, com o autor a criar uma nova página sem ideia do que havia
feito no mês anterior e deixando a responsabilidade da criação de
uma teleologia narrativa ao leitor. Todavia, rapidamente nos
apercebemos que o autor começa a domesticar as personagens lançadas
para o movimento meramente mecânico da trama, e começam a surgir
muitos dos ingredientes que vão compor a carreira futura do autor,
quer a solo quer em companhia de escritores (acima de tudo a saga do
Incal, com Jodorowsky). Um número quase incomportável de
personagens, alterações das inscrições das personagens nos campos
dos “heróis” ou dos “antagonistas”, substratos
simbólico-religiosos sob uma patina de tecnologias avançadas,
conceitos místicos alucinados, ligações secretas ao nosso
mundo real, e citações a outros universos diegéticos (como a
apropriação de Jerry Cornelius). Surpreendentemente, é
precisamente a descoberta de que o “herói” é o Major Grubert
que faz girar todo o valor da narrativa, muito tempo antes dos
exercícios que, mais tarde, no cinema, “revelam” que toda a
história que testemunháramos era um truque ou distorção de
percepção. A garagem torna-se assim, em termo
históricos, uma espécie de espelho que demonstrava a possibilidade
aos autores de se libertarem de propostas narrativas lineares ou
lógicas, ainda que seja ela mesma algo domesticada.
Inverno
do Desenhador. Paco Roca.
Tendo escrito igualmente de forma alargada sobre este livro na
sua edição espanhola, remetemos os leitores a essas considerações.
Acrescentemos apenas que, haja sucesso com os autores espanhóis
desta colecção, que isto possa ser um incentivo à tradução e
entrada da produção de banda desenhada contemporânea (ou moderna)
espanhola (e galega, e catalã, e valenciana, etc.) entre nós, um
pouco à semelhança da Polvo em relação à produção brasileira.
Parque
Chas. Ricardo Barreiro e Eduardo Risso. Este
livro terá sido eleito seguramente por ser um das primeiras
prestações que colocariam o nome de Eduardo Risso no radar da
atenção dos leitores de banda desenhada. Se bem que ele tenha
assegurada uma comunidade de fãs pelo seu mais contemporâneo estilo
de uma abordagem em altos contrastes expressivos (recordemos Eu,
Vampiro, publicado em Portugal) mas a nosso ver
significativamente inferiores aos dos seus mestres),é curioso vê-lo
aqui a trabalhar num registo mais naturalista, vincado pelo uso de
gradientes fotorealistas com a grafite para esculpir corpos entre o
anatomicamente correctas e já uma pequena fuga por uma estilização
melodramática. Em larga medida, recordará também um primeiro
Liberatore, ou até um Manara do tempo de Giuseppe Bergman, ou até
de um Solano López. Se citamos Manara e López, não é por acaso,
já que o Eternauta, Bergman e ainda Corto Maltese surgem em cameos
fantásticos, que justificam a própria teia criada pela narrativa (e
que influi uma camada metatextual digna de um Gaiman ou Morrison).
Parque Chas é o nome de um bairro real de Buenos Aires, o qual,
pelas suas características urbanísticas, lhe tem criado a fama de
labiríntico. Ora, o protagonista é uma espécie de armchair
detective, e habita estes contos curtos agregados entre si pela
demanda central, de uma forma quase sempre delegada. Interessado
pelas histórias estranhas, à la Quinta Dimensão, mas
tocando outras esferas genéricas também, que passaram e se passam
no bairro, vai escutando várias pessoas num café local, dando-nos a
nós acesso visual a esses relatos. Todos os quais permitem sempre,
como é expectável, uma leitura de cariz sócio-político. Mas aos
poucos vamos compreendendo a existências de personagens recorrentes,
que vão criando a ideia de uma teia mais centralizada, e na qual o
protagonista se torna com efeito o personagem principal em termos de
acção. A intriga principal tem uma espécie de fim suspenso que
funcionaria melhor para aumentar a ambivalência, sustentada, de
todas as histórias, mas é seguida por uma coda, um episódio maior,
que tenta criar um fecho absoluto, e que muito sinceramente piora a
qualidade da escrita e da natureza do resto do livro. Quase
apeteceria (como tantos outros projectos “revisitados” mais tarde
pelos seus autores, como ocorre igualmente em “glórias antigas”
da música, talvez) que não tivesse existido essa revisitação.
Ainda assim, nesse primeiro sentido, a estrutura narrativa recorda
aquela que o próprio Risso seguiria em 100 Bullets: histórias
aparentemente singulares revelar-se-iam depois parte de uma trama
como um todo. Uma estrutura algo clássica em alguns casos da cultura
popular, uma fórmula quase sempre empolgante e recompensadora aos
leitores aturados, e que não deixa de tornar este volume numa adição
excelente à biblioteca acessível em português.
A
Dança das Andorinhas.
Zeina Abirached. É bem possível que possamos descrever desta
autora como uma pálida imitação da força política de Satrapi,
como já havíamos aventado a propósito do seu último livro emfrancês. Não sendo o primeiro, este é, porém, o livro que a
colocou no mapa. E se terá sido colocado a circular na esteira do
espaço estreado pela famosa autora iraniana, como se tivesse aberto
uma categoria que agora importava preencher comercialmente (e isso
não é de todo descabido), não quer isso significar que as
especificidades expressivas e temáticas de Abirached devam ser
sistemática e totalmente pautadas à sombra de Satrapi. Enquanto
autobiografia, é natural que se revista de traços idiossincráticos,
que importa descobrir, quer na voz quer na prestação gráfica (um
tanto ou quanto mais assinalada por decorativismos). Como já
havíamos dito nessa outra ocasião, há uma maior candura, decerto,
neste livro do que em Persepolis, evitando-se os contornos
políticos de forma mais directa. Se bem que falar da Guerra do
Líbano não poderá jamais ser inocentado de um posicionamento
político. Mas A Dança das Andorinhas é um livro
concentrado, afinal: um só dia, um só edifício. À la A vida,
modo de usar, mas sem a densidade oulipiana, trata-se de um
passeio por perspectivas e consciências que burilam uma imagem
multifacetada face aos mesmos acontecimentos, e demonstram como as
alianças quotidianas podem servir de antídoto ao desespero, em que
a solidariedade das emoções servem de escudo efectivo à impressão
da criança protagonista.
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