Quando
escrevemos sobre Caminhando com Samuel, fizemo-lo no
interior de um enquadramento não apenas comparatista – lendo-o em
conjunto com outros dois livros – como sob um foco muito
particular, que tinha a ver com a pesquisa possível sobre a natureza
do divino pela banda desenhada. Com efeito, se podemos dizer que
Musturi transforma as suas pesquisas formais num exercício não
apenas metatextual sobre a criação da própria banda desenhada, ou
outras disciplinas, mas até sobre a própria existência humana,
quase de uma forma goethiana (devido à citação transversal que há àquele "mundo das madres" onde as formas ainda se encontram por formar...), existirão vários graus ou até
naturezas dessa mesma tarefa conforme o propósito ou programa
narrativo a que se entrega. Caminhando
com Samuel
transformava o que parecia um inflexível mecanismo de causalidade e
movimento numa incessante interrogação. Simplesmente Samuel, quer
pelo título quer pelas acções, parece “diminuir” a intensidade
dessa inflexibilidade, mas a constância mantém-se. (Mais)
Este
livro não é feito apenas de uma “história”. A utilização
deste termo é complicada, porque Musturi apresenta à mesma toda uma
série de acções sequenciadas que podem ser descritas como eventos,
autónomos e independentes entre si, e que poderiam ser vistos como
anedotas ou gags. Por vezes, é apenas um spread
apresentando um cartoon
enorme, por outras uma mini-história em duas páginas lado a lado.
De quando em vez existem “episódios” mais alargados, e até
certo ponto é mesmo possível associar uma cadeia de eventos ao
próximo, por algum elo. Seja como for, não haverá a mesma
continuidade e coesão de que Caminhando,
parecendo este volume coleccionar várias ideias e formas de
re-apresentar a mesma personagem, essa cifra simplificada que é
Samuel.
As
circunstâncias dos episódios de Samuel não inúmeras. Se na maior
parte das histórias, ele surge na sua versão mais simples, e em
cenários abstractos onde somente se encontra com outras personagens
igualmente simplificadas, ou em jogos formais de variações e
exercícios visuais complexos, que vão apontando para um enormíssimo
quadro de referências à banda desenhada, cultura popular, artes
plásticas, etc., também há momentos em que ele parece ganhar uma
espécie de densidade narrativa, ora aparecendo como um motoqueiro
dos anos 1970, ora como um sem-abrigo gentleman,
ou ainda como um intrépido aventureiro em selvas abomináveis e
cheias de segredos. Mas independentemente dessas inscrições, o que
vemos é sempre Samuel a marchar, da esquerda para a direita, haja ou
não obstáculos. E também o seu corpo a atravessar toda a espécie
de distorções, algumas violentas e outras suaves, mas quase todas
demonstrando a aparente infinitude de formas que Samuel pode assumir,
para depois regressar ao ponto de partida.
A
comparação com o mundo da animação é quase inevitável,
sobretudo com o dito “cinema de autor”. O filme “Da esquerdapara a direita”, de Ivan Maximov, é-nos aqui recordado pela forma
como se elege a ideia somente de um movimento, e de paisagens
cambiantes e personagens diversas, como forma suficiente para criar
significados múltiplos, mesmo que não se instaure uma “intriga”
clássica. As metamorfoses são o próprio princípio da animação,
naturalmente, e as referências seriam demasiadas para elencar, mas o
aspecto mais importante de sublinhar é que, tal como ocorre na
animação mais experimental ou autoral, também em Musturi as
metamorfoses não ocorrem subsumidas a um programa narrativa
ulterior, mas tão-somente como pesquisa das associações possíveis
entre essas formas. Há todo um trecho que pode ser lido como sendo
contínuo, apesar das diferenças e “intervalos” das acções
mais claras. Dois episódios separados mostram personagens a terem
relações sexuais: num caso, claramente Samuel o homem com uma
personagem feminina, noutro mais à frente, Samuel consigo mesmo, um
duplo que nascera de uma cisão monstruosa provocada por uma
pastilha, e com a quase se funde no acto sexual. Pelo meio,
observámos elefantes a fornicar num zoo e cenas de pancadaria e
exercício físico (sexo e violência?). O resultado é a abertura de
uma garrafa de champanhe que dá lugar a um útero cheio que nos
permite ver uma enxurrada de espermatozóides com vários rostos,
inclusive o de Samuel, que correm até fecundar um óvulo, e o qual
dá lugar, sucessivamente a uma estrutura atómica, de poius uma
estrutura molecular, seguida de uma bola de futebol, um rosto à la
Tintin, o planeta Terra, o Sol, uma galáxia em turbilhão e um
calendário solar azteca. Vemos aqui essa última página. Depois
segue-se uma paisagem idílica de uma espécie de cena do Génesis
(o que permitiria de novo fazer associações religiosas), e
retoma-se a “aventura” de Samuel... Estas últimas variações
nascem eventualmente mais de uma alucinação formal e superficial do
que um entendimento metafórico e/ou simbólico, como Jens Harder
tenta fazer no seu projecto enciclopédico, parece-nos, mas ao mesmo
tempo entrega-nos instrumentos de interpretação que poderiam
permitir-nos ler Simplesmente
Samuel
como uma imagem de algo para além da aparente simplicidade
prometida.
O
livro é, portanto, uma pequena máquina que tanto permitirá uma
leitura de consulta rápida, em que nos deleitamos nas cenas
isoladas, nas anedotas por si mesmas, mas também uma mais aturada e
ponderada consideração do seu significado holístico, numa complexa
massa de “entraçamento”, como queria Thierry Groensteen. Isto é,
se lermos todos e quaisquer elementos como contribuindo para um
significado total, em que cada um deles nos ajuda a compreender o
outro, emergirá uma outra ideia central. Por exemplo, a necessidade
de Samuel encontrar algum tipo de felicidade pessoal, que passa quase
sempre pelo escape à situação em que se encontra presentemente.
É
esse tipo de ligações que pode parecer difícil fazer, mas é
imperativo. Mesmo que o trabalho de interpretação nos pareça agora
algo desusado e em ruínas – como as mãos que se tentam tocar, uma
claríssima referência à cena da Capela Sistina entre Deus e Adão
de Michelangelo – haverá sempre a necessidade imperativa de
transpor esse abismo. Mesmo que seja de uma forma simples e
descontraída, como o pequeno pulo de Samuel.
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