28 de outubro de 2016

Simplesmente Samuel. Tommi Musturi (Mmmnnnrrrg)

Quando escrevemos sobre Caminhando com Samuel, fizemo-lo no interior de um enquadramento não apenas comparatista – lendo-o em conjunto com outros dois livros – como sob um foco muito particular, que tinha a ver com a pesquisa possível sobre a natureza do divino pela banda desenhada. Com efeito, se podemos dizer que Musturi transforma as suas pesquisas formais num exercício não apenas metatextual sobre a criação da própria banda desenhada, ou outras disciplinas, mas até sobre a própria existência humana, quase de uma forma goethiana (devido à citação transversal que há àquele "mundo das madres" onde as formas ainda se encontram por formar...), existirão vários graus ou até naturezas dessa mesma tarefa conforme o propósito ou programa narrativo a que se entrega. Caminhando com Samuel transformava o que parecia um inflexível mecanismo de causalidade e movimento numa incessante interrogação. Simplesmente Samuel, quer pelo título quer pelas acções, parece “diminuir” a intensidade dessa inflexibilidade, mas a constância mantém-se. (Mais) 

Este livro não é feito apenas de uma “história”. A utilização deste termo é complicada, porque Musturi apresenta à mesma toda uma série de acções sequenciadas que podem ser descritas como eventos, autónomos e independentes entre si, e que poderiam ser vistos como anedotas ou gags. Por vezes, é apenas um spread apresentando um cartoon enorme, por outras uma mini-história em duas páginas lado a lado. De quando em vez existem “episódios” mais alargados, e até certo ponto é mesmo possível associar uma cadeia de eventos ao próximo, por algum elo. Seja como for, não haverá a mesma continuidade e coesão de que Caminhando, parecendo este volume coleccionar várias ideias e formas de re-apresentar a mesma personagem, essa cifra simplificada que é Samuel.

As circunstâncias dos episódios de Samuel não inúmeras. Se na maior parte das histórias, ele surge na sua versão mais simples, e em cenários abstractos onde somente se encontra com outras personagens igualmente simplificadas, ou em jogos formais de variações e exercícios visuais complexos, que vão apontando para um enormíssimo quadro de referências à banda desenhada, cultura popular, artes plásticas, etc., também há momentos em que ele parece ganhar uma espécie de densidade narrativa, ora aparecendo como um motoqueiro dos anos 1970, ora como um sem-abrigo gentleman, ou ainda como um intrépido aventureiro em selvas abomináveis e cheias de segredos. Mas independentemente dessas inscrições, o que vemos é sempre Samuel a marchar, da esquerda para a direita, haja ou não obstáculos. E também o seu corpo a atravessar toda a espécie de distorções, algumas violentas e outras suaves, mas quase todas demonstrando a aparente infinitude de formas que Samuel pode assumir, para depois regressar ao ponto de partida.

A comparação com o mundo da animação é quase inevitável, sobretudo com o dito “cinema de autor”. O filme “Da esquerdapara a direita”, de Ivan Maximov, é-nos aqui recordado pela forma como se elege a ideia somente de um movimento, e de paisagens cambiantes e personagens diversas, como forma suficiente para criar significados múltiplos, mesmo que não se instaure uma “intriga” clássica. As metamorfoses são o próprio princípio da animação, naturalmente, e as referências seriam demasiadas para elencar, mas o aspecto mais importante de sublinhar é que, tal como ocorre na animação mais experimental ou autoral, também em Musturi as metamorfoses não ocorrem subsumidas a um programa narrativa ulterior, mas tão-somente como pesquisa das associações possíveis entre essas formas. Há todo um trecho que pode ser lido como sendo contínuo, apesar das diferenças e “intervalos” das acções mais claras. Dois episódios separados mostram personagens a terem relações sexuais: num caso, claramente Samuel o homem com uma personagem feminina, noutro mais à frente, Samuel consigo mesmo, um duplo que nascera de uma cisão monstruosa provocada por uma pastilha, e com a quase se funde no acto sexual. Pelo meio, observámos elefantes a fornicar num zoo e cenas de pancadaria e exercício físico (sexo e violência?). O resultado é a abertura de uma garrafa de champanhe que dá lugar a um útero cheio que nos permite ver uma enxurrada de espermatozóides com vários rostos, inclusive o de Samuel, que correm até fecundar um óvulo, e o qual dá lugar, sucessivamente a uma estrutura atómica, de poius uma estrutura molecular, seguida de uma bola de futebol, um rosto à la Tintin, o planeta Terra, o Sol, uma galáxia em turbilhão e um calendário solar azteca. Vemos aqui essa última página. Depois segue-se uma paisagem idílica de uma espécie de cena do Génesis (o que permitiria de novo fazer associações religiosas), e retoma-se a “aventura” de Samuel... Estas últimas variações nascem eventualmente mais de uma alucinação formal e superficial do que um entendimento metafórico e/ou simbólico, como Jens Harder tenta fazer no seu projecto enciclopédico, parece-nos, mas ao mesmo tempo entrega-nos instrumentos de interpretação que poderiam permitir-nos ler Simplesmente Samuel como uma imagem de algo para além da aparente simplicidade prometida.

O livro é, portanto, uma pequena máquina que tanto permitirá uma leitura de consulta rápida, em que nos deleitamos nas cenas isoladas, nas anedotas por si mesmas, mas também uma mais aturada e ponderada consideração do seu significado holístico, numa complexa massa de “entraçamento”, como queria Thierry Groensteen. Isto é, se lermos todos e quaisquer elementos como contribuindo para um significado total, em que cada um deles nos ajuda a compreender o outro, emergirá uma outra ideia central. Por exemplo, a necessidade de Samuel encontrar algum tipo de felicidade pessoal, que passa quase sempre pelo escape à situação em que se encontra presentemente.


É esse tipo de ligações que pode parecer difícil fazer, mas é imperativo. Mesmo que o trabalho de interpretação nos pareça agora algo desusado e em ruínas – como as mãos que se tentam tocar, uma claríssima referência à cena da Capela Sistina entre Deus e Adão de Michelangelo – haverá sempre a necessidade imperativa de transpor esse abismo. Mesmo que seja de uma forma simples e descontraída, como o pequeno pulo de Samuel.

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