Esse conhecimento
pode ser feito de várias maneiras, sobressaindo aquelas duas mais
significativas ou agregáveis em dois princípios distintos: o do
discurso meta-textual e disciplinar da própria história ou o da
antologia dos exemplos maiores. Ambos são importantes, até porque é
necessário sempre o primeiro para, a um só tempo, criar o terreno
sólido, ancorar, balizar e valorizar os gestos que permitem o
segundo.
O sub-título deste livro, “o
nascimento das histórias em quadrinhos”, recordará alguns
leitores do livro de Thierry Smolderen. É precisamente esse elo
temático que Rogério de Campos pretende deixar claro, não apenas
pelos comentários auto-referentes e a pesquisa de que dá conta, mas
pela própria maneira pela qual organiza esta antologia, ainda que, a
nosso ver, tenha perdido a oportunidade de ter sublinhado no próprio
nome a pluralidade desse nascimentos.
Com efeito, o grande cerne e modelo deste projecto
encontrar-se-á na leitura do Naissances de la bande dessinée,
de Smolderen, de que falámos, o que é revelado de modo explícito.
O âmago da tese de Smolderen era demonstrar como pensar a banda
desenhada em termos históricos não se pode esgotar numa
identificação de um ponto originário único e unívoco (por
hipótese, a obra de Rodolphe Töpffer, ou a de William Hogarth, ou
esta ou aquela gravura do século XVII, etc., e muito menos os
cartoons narrativos da imprensa norte-americana de grande
circulação no final do século XIX). Bem pelo contrário, é a
compreensão de várias linhas de desenvolvimento temático,
estrutural, estilísticos, social e tecnológico que vão convergindo
em direcção a um campo simbólico, apenas identificável, e até
nomeável, a posteriori, que deve pautar a possibilidade de,
para citarmos mais uma vez uma famosa afirmação de Walter Benjamin,
“olhar para o passado através do telescópio do presente”.
Para além de Smolderen, Rogério de
Campos demonstra continuamente como o trabalho histórico a que se
propõe é devedor à monumental obra escrita por David Kunzle, de
certa forma o primeiro verdadeiro historiador da banda desenhada, de
um ponto de vista estritamente disciplinar, isto é, ultrapassando os
gestos, necessários mas limitados, do arquivismo anterior.
Kunzle pretendia escrever uma trilogia dedicada à história da banda
desenhada, tendo publicado The
Early Comic strip: Narrative Strips and Picture Stories in the
European Broadsheet from c. 1450 to 1825
em 1973 e The
Nineteenth Century
em 1990 (University of California Press). Mas por essa altura já
começavam a surgir novos agentes, investigadores e gestos de livros
que foram cobrindo de forma muito competente o século XX um pouco
por todo o lado (e de que Comics Global History é apenas um exemplo). Em 2007, publicaria dois livros (um antológico, o
outro teórico) dedicados a Töpffer, e em 2015, a Doré. Ainda hoje, pensamos não
exagerar, se pode considerar esta dilogia como o
primeiro gesto verdadeiramente pautado pela disciplina da história
para com o campo da banda desenhada e dificilmente ultrapassado ainda
hoje enquanto súmula e visão de conjunto. Campos, porém, vai além
disso, e utiliza toda uma série de outras fontes e conhecimentos e
esforços próprios para criar uma visão muito abrangente destas
origens plurais, chegando mesmo aos gestos que o editor Peter Maresca
tem para recuperar “tesouros esquecidos” dos primeiros anos do
século XX.
Assim sendo, temos aqui uma antologia
que reúne textos visuais que começam no século XV, com as origens
da imprensa (portanto, segundo a associação que Kunzle fazia entre
a cultura do impresso à banda desenhada), e indo até o início do
século XX, às experiências visuais de um Feininger ou de um Peter
Newell. O livro está organizado de forma cronológica, apresentando
materiais com pequenas introduções individuais de tamanhos
desiguais conforme a importância dada a essa mesma “entrada”, o
que convida a ler o livro de forma consultável, isto é, sem a
necessidade de uma leitura linear e completa, mas antes cíclica ou
quando necessária.
Assim, Léonce Petit, Malatesta e Tad
Morgan têm direito a parágrafos sucintos, mas Hogarth, Töpffer,
Doré, Hokusai e McCay tem uma página ou mais. E há escolhas que
recaem antes sobre o título de uma publicação (a Kikeriki
ou a Simplicissimus), ou uma técnica ou tema (“o crime como
espectáculo”, “homens-palito”, o regador regado, etc.). Quanto
aos “textos visuais” em si, se há casos em que apenas uma imagem
surge como ilustração do momento histórico, da técnica, do
artista ou do tema, há casos em que há uma maior “generosidade”
da entrada, como são os casos de Töpffer e Doré, claro, mas também
o ciclo inteiro de Jacques Callot, um “progresso” de Hogarth, as
histórias dos marialvas de Busch, muitos trabalhos de Georges de
Maurier ou de Outcault, ou o “dossier” do regador regado que, se
existem artigos sobre o tema, não conhecemos uma colecção
compreensível (mas não exaustiva) do seu tratamento gráfico.
Acresce a esta amostragem as quase sempre excelentes reproduções,
grandes e legíveis, com uma excelente tradução em português,
também quase sempre pela primeira vez.
Aliás, o domínio da língua
portuguesa, graças a esta perspectiva particular, permite que o
antologiador reponha alguma justiça de representação, aumentando o
papel que, no desenvolvimento global desta então nova forma
artística, desempenharam autores brasileiros ou estrangeiros no
Brasil tais como Angelo Agostini, Pereira Netto, Gustavo Dall'Ara e
até mesmo Bordallo Pinheiro.
Se dissemos acima que imageria
tem uma natureza consultável, isso não significa que não possa ou
não deva ser feita uma leitura linear do volume. As escolhas de
design, sem obstrusões, de margens largas e procurando uma elegância
simples na distribuição destas imagens – de tão larga
materialidade nas suas formas originais – tornam a sua compulsão
agradável e até célere. Mas ao mesmo tempo, é a sua consideração
de conjunto que deve ser fortalecida, em conjunto com a leitura dos
textos de contextualização e de ancoramento teórico. É desta
maneira que entenderemos a visão do autor em olhar para a banda
desenhada não somente como um objecto familiar à partida, mas algo
que ainda tem contornos a descobrir em pormenor e exactidão formal e
histórica. E sempre aberto o suficiente para ainda se colocarem
novas questões ou obter respostas distintas dos clichés ou ideias
feitas que ainda hoje se repetem, mesmo em círculos que os deveriam
já evitar. A travessia temporal, geográfica, temática, estrutural,
genérica, social e estilística a que Campos nos convida é, logo em
si mesmo, de um estímulo profundo ao pensamento crítico desta arte.
Naturalmente que Rogério dos Campos
fortalece este trabalho aturado de antologização apresentando uma
sólida introdução e contextualização dos princípios teóricos,
históricos e ontológicos que presidem a esta selecção, assim como
uma nota final sobre o então futuro desta forma de arte que, lendo
imageria, vemos ser de uma pluralidade imensa e estimulante. A
qual, apesar de uma espécie de “suspensão” durante larga parte
do século XX, encontraria vários graus de abertura até ao seu
estado actual. A inclusão de uma musculada e invejável bibliografia
ajudará aos leitores – novos ou repetentes destes mesmos textos
coligidos – novas pistas para maior desenvolvimento e buscas.
Desde logo, não apenas pelo facto de estar em português mas por ser efectivamente a melhor antologia de que temos conhecimento de textos pré-modernos da banda desenhada, este será um volume que
deveria ter lugar obrigatório em qualquer biblioteca que pretenda
exercer um papel fundamental na compreensão, estudo e ensino desta
forma que, conhecida por “histórias em quadrinhos” ou “banda
desenhada”, nos fascina.
Nota final: agradecimentos à editora,
e em particular a Rogério dos Campos, pela oferta deste volume. As nossas desculpas pelas fotografias de baixa qualidade.
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