15 de abril de 2017

Gaïa. Thierry Cheyrol (La Cinquième Couche)

Se tivermos em conta alguns dos exemplos incluídos em Abstract Comics, e experiências quer narrativas como algumas das peças incluídas em A Graphic  Cosmogony ou mais experimentais como 978, apercebermo-nos-emos de que tem surgido uma espécie de tendência em explorar formas de representação das transformações e devires em tempos dilatados, através das potencialidades expressivas da banda desenhada, para criar quadros de compreensão à escala humana. Noutras palavras, transformar a banda desenhada numa espécie de filtro, gráfico neste caso, que permita “dar a ver” fenómenos usualmente for do campo da visibilidade ou experiência humanas, de uma forma a poder criar um qualquer grau de relacionabilidade. (Mais) 

A tendência tem a ver com uma espécie de técnica formal de apresentar sequências, às quais Scott McCloud chamaria certamente de “acção a acção”, em que cada vinheta mostra um passo de uma cadeia de uma acção maior, inexorável, necessária, e de causalidade intricada. Nos casos dos trabalho em que a figuração ajuda à identificação dos elementos, estamos perante a representação de fenómenos estelares, cosmológicos, ou então geológicos, biológicos, etc. os quais, independentemente da distância relativa entre si (éons, milénios, anos, meses) estão sempre para além da percepção humana. Claro que poderíamos talvez pensar, ainda na tipologia de McCloud, de que se tratariam de transições “momento a momento”, se bem que esses momentos sejam mensuráveis em unidades distintas daquelas dos ritmos que pautam o nosso corpo e vida.  É o que nos permite ver rapidamente uma flor a desabrochar, um feto a formar-se, matéria estelar a condensar-se num planeta, uma doença a espraiar-se.

Já a propósito de AmbientComics havíamos tratado esta questão, buscando que tipo de equilíbrio se procurava entre a tranquilidade e o dramatismo, os extremos do tempo, a espectacularidade dos fenómenos não-testemunháveis. Gaïa, de Thierry Cheyrol, vem trazer uma nova dimensão a essa experimentação.

O livro parece estar dividido em secções tituladas, cujas palavras se formam em arranjos gráficos próximos dos objectos visíveis nesse momento, não muito distante, ainda que de uma forma não tão integrada, daquilo que Will Eisner fazia nos títulos dos episódios de The Spirit, e que Alan Moore chamaria de “logotectura”. Mas essas palavras, pelas suas próprias associações, parecem abrir um outro campo estratificado de ideias: ”Érebo”, “Cocito”, “Nascimento de eros”, “Ponto”, “Selene”, “Oceanos” (em tradução nossa)… Deveremos ler estas palavras como estádios de uma curva ascendente, evolutiva? Uma confluência entre a mitologia e a formação terrestre? Por um lado, é fácil empregar o título do livro e dessas secções para pura e simplesmente descrevê-lo como “a história da formação da Terra e outros corpos cósmicos em torno, assim como da sua própria alteração para criar condições de vida.” Mas isso não seria o suficiente.

Em The Books of Magic, de Neil Gaiman et al., há um momento em um dos guias de Timothy Hunter, o Estranho, lhe dá a entender que “A História tem muitas esquinas e bifurcações”, e que tanto pode é verdade o facto de terem existido dinossáurios durante o Jurássico como o é a Terra ter sido formada em sete dias por um Deus. É esse tipo de pensamento mágico, que não se coaduna a uma só narrativa, mas permite que todas as vertentes das histórias contadas possam encontrar um fundo de articulação com que opera neste volume, parece-nos, se bem que sem toda a canga narrativa e afunilada em personagens centrais. Pois a nossa atenção, se regressa de maneira constante ao que parece ser o planeta central, Terra/Gaia, isso acontece em blocos e interrupções. A atenção é igualmente atomizada (palavra aqui o mais precisa possível) por outros “objectos” que poderíamos chamar de protozoários ou de tecidos dérmicos ou de globos de metal que formarão planetas ou nuvens de gases cósmicos ou de cadeias de proteínas. Por vezes, perdemos mesmo a capacidade de distinguir uns de outros, já que há um complexo jogo que atravessa as escalas dessa mesma atenção.

A abordagem de Cheyrol, tal como a de outros autores – entre nós, pense-se em algumas das pesquisas de Mao -, convida a que se faça um aproveitamento de técnicas gráficas advindas de outras disciplinas de ilustração, nomeadamente científicas e/ou técnicas. Mesmo que não seja essa “representação” (a interpretação, como vimos, é mais ambígua do que uma decisiva escolha), Cheyrol parece lançar mão de secções, visões “microscópicas”, aproximações ou panoramas radicais, que levam a imaginar que Gaïa se pauta por escalas monumentais. Em termos superficiais, há algumas características que recordam a pintura naïf ou até a chamada art brut, ou mesmo “outsider”. Não é apenas o uso de materiais “não-nobres” como os marcadores de feltro (apesar de empregar sanguínea, também, vetusto instrumento de desenho), mas pela própria forma de ocupar todo o campo visual, o frenesim das acções e “participantes”, a ausência de uma focalização centrada ou individualizada, já para não falar da própria fortuna cromática e de rendilhados gráficos.  Todavia, há uma clara coordenação com os mecanismos da banda desenhada, já que cada prancha procura soluções de composição bem diversas e atentas à panóplia de soluções existentes, e que o autor emprega a cada passo de forma significativa (um livro que levou mais de dez anos a ser trabalhado, para depois ser lido num ápice, poderá encurtar e colapsar ainda de outra maneira os seus tempos de interpretação).

Associando-se às mais díspares disciplinas da ciência que nos poderiam ajudar a compreender as transformações previstas pela narrativa cósmica, o autor dá-nos a ver violentos cataclismos e dramáticos processos de terraformação que ao mesmo tempo podem ser lidos como processos internos de um corpo, ou uma batalha entre agentes personalizados. Há, portanto, na leitura deste livro, um quase perfeito equilíbrio entre o abjecto das excreções e convulsas mutações e o reencantamento da vida.

Estamos, naturalmente, muito perto de uma pesquisa que terá a ver com a noção goetheana das “metamorfoses”, em que testemunhamos desdobramentos contínuos de uma mesma matéria, e não simplesmente uma “passagem” entre “estádios distintos”. Há uma identidade – no caso dos textos do poeta e naturalista alemão, das plantas – que se mantém não obstante as vagas de mudança que perpassam a entidade, o corpo, a coisa em questão. Como consequência, existiriam duas inclinações formativas: a centrípeta, que é de um sinal conservador, e que leva à formação interna da entidade, às suas especificidades mantidas por filiação; e a centrífuga, já vista como “progressiva”, e que é virada “para fora”, isto é, a tendência da adaptação. Uma das implicações é que apesar das diferenças entre as formas variadas de uma mesma categoria supra-entidade (em Goethe, a “flor”, em Cheyrol, a “criatura-planeta”) existirá sempre um fundo irmanável, características comuns. Portanto, mesmo que entendamos uma distribuição actancial entre “Gaia” como a protagonista e depois uma série de antagonistas, deuteragonistas e até parasitas, ao mesmo tempo poderemos ver na superfície destas páginas um bailado de formas molares e moleculares, cujos encontros, embates, enlaces físicos fazem com que troquem dendrites, substâncias, líquidos, elementos, mas contribuindo para uma força comum. Há sempre, portanto, um pouco de todos os objectos em todos os outros.

Ao contrário do que ocorre nos livros de Harder de que falámos anteriormente, e mesmo que haja um caminho para uma “coroação” no momento em que desponta a vida biológica na sua superfície, não se procura em em Gaïa uma teleologia com o ser humano no centro. Ou pelo menos de forma permanente. Pois nesta novela com cerca de 100 pranchas, por volta da 30ª prancha da narrativa surge o que parece ser um feto humano, que assinala o surgimento de Eros (a reprodução sexuada, por um lado, mas igualmente interpretável simbolicamente como um “desejo” individualizante), e rapidamente absorvido e desaparecido nas formas em que se desdobrará, num constante movimento de indiscernibilidade entre o que podem ser objectos cósmicos (o planeta, meteoros, galáxias rodopiantes) e unidades biológicas (células, moléculas, veias, etc.).

Formado em escultura, o autor e músico marselhês tem trabalhado recentemente em formas fabricadas em papier machê, a que chama de “híbridas”, fazendo-nos recordar em certa medida o trabalho de Catarina Leitão, no sentido do cruzamento entre o orgânico e o não-orgânico, o elementar e o complexo, o humano e o não-humano. Uma espécie de curva ou desvio imaginário na evolução das espécies. Uma breve visita ao seu blog livresco revelará que ele pensa cada uma das “formas” ou “espécies” de uma maneira individualizada, quem sabe prevendo formas de comportamento e resposta dessas mesmas entidades. Talvez não seja totalmente descabido conceber estas formas sob o signo do novo conceito de Donna Haraway, o do Chthuluoceno, que convida a uma leitura do momento contemporâneo com mais um descentramento da figura humana para uma relação tentacular com a natureza, o mundo, os “outros” (não tanto os “outros humanos”, mas sim tudo o resto que existe na Terra: de aranhas a líquenes). A de estabelecermos novos graus de parentesco não por elos familiares, sequer de espécie, mas indo subindo em cada nível taxonómico até chegarmos a uma conectividade quase absoluta. E Haraway chega mesmo a falar de Gaia como auto-poiética, "atingindo uma coerência sistémica finita face a perturbações no seio de parâmetros que em si mesmos respondem a processos sistémicos dinâmicos". Portanto, não uma totalidade fechada sobre si mesma, mesmo as suas "partes", mas um complexo movimento não-linear dessas mesmas forças internas, ainda assim identificáveis como tal. Uma descrição possível de aplicar sobre o próprios sistema da banda desenhada (veja-se Staying With the Trouble: Making Kin in the Chthulucene, que reúne vários textos publicados alhures).

Um hino à conexão, à familiaridade rizomática sem fim, ao desdobramento internos de um mesmo centro, Gaïa é um projecto que convida não apenas a uma nova percepção humana do universo como procura descentrar-nos para melhor nos responsabilizar na sua reinscrição.

Nota final : agradecimentos à editora, pelo envio do livro em ficheiro digital. 

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