Se tivermos em conta alguns dos exemplos incluídos em Abstract Comics, e experiências quer narrativas como algumas das peças
incluídas em A Graphic Cosmogony ou mais experimentais como 978, apercebermo-nos-emos de que tem surgido uma espécie de
tendência em explorar formas de representação das transformações e devires em
tempos dilatados, através das potencialidades expressivas da banda desenhada,
para criar quadros de compreensão à escala humana. Noutras palavras,
transformar a banda desenhada numa espécie de filtro, gráfico neste caso, que
permita “dar a ver” fenómenos usualmente for do campo da visibilidade ou
experiência humanas, de uma forma a poder criar um qualquer grau de
relacionabilidade. (Mais)
A tendência tem a ver com uma espécie de técnica formal de
apresentar sequências, às quais Scott McCloud chamaria certamente de “acção a
acção”, em que cada vinheta mostra um passo de uma cadeia de uma acção maior,
inexorável, necessária, e de causalidade intricada. Nos casos dos trabalho em
que a figuração ajuda à identificação dos elementos, estamos perante a
representação de fenómenos estelares, cosmológicos, ou então geológicos,
biológicos, etc. os quais, independentemente da distância relativa entre si
(éons, milénios, anos, meses) estão sempre para
além da percepção humana. Claro que poderíamos talvez pensar, ainda na
tipologia de McCloud, de que se tratariam de transições “momento a momento”, se
bem que esses momentos sejam mensuráveis em unidades distintas daquelas dos
ritmos que pautam o nosso corpo e vida. É
o que nos permite ver rapidamente uma flor a desabrochar, um feto a formar-se,
matéria estelar a condensar-se num planeta, uma doença a espraiar-se.
Já a propósito de AmbientComics havíamos tratado esta questão,
buscando que tipo de equilíbrio se procurava entre a tranquilidade e o
dramatismo, os extremos do tempo, a espectacularidade dos fenómenos
não-testemunháveis. Gaïa, de Thierry
Cheyrol, vem trazer uma nova dimensão a essa experimentação.
O livro parece estar dividido em secções tituladas, cujas
palavras se formam em arranjos gráficos próximos dos objectos visíveis nesse
momento, não muito distante, ainda que de uma forma não tão integrada, daquilo
que Will Eisner fazia nos títulos dos episódios de The Spirit, e que Alan
Moore chamaria de “logotectura”. Mas essas palavras, pelas suas próprias
associações, parecem abrir um outro campo estratificado de ideias: ”Érebo”,
“Cocito”, “Nascimento de eros”, “Ponto”, “Selene”, “Oceanos” (em tradução
nossa)… Deveremos ler estas palavras como estádios de uma curva ascendente,
evolutiva? Uma confluência entre a mitologia e a formação terrestre? Por um
lado, é fácil empregar o título do livro e dessas secções para pura e
simplesmente descrevê-lo como “a história da formação da Terra e outros corpos
cósmicos em torno, assim como da sua própria alteração para criar condições de
vida.” Mas isso não seria o suficiente.
Em The Books of Magic,
de Neil Gaiman et al., há um momento em um dos guias de Timothy Hunter, o
Estranho, lhe dá a entender que “A História tem muitas esquinas e bifurcações”,
e que tanto pode é verdade o facto de
terem existido dinossáurios durante o Jurássico como o é a Terra ter sido
formada em sete dias por um Deus. É esse tipo de pensamento mágico, que não se
coaduna a uma só narrativa, mas permite que todas as vertentes das histórias
contadas possam encontrar um fundo de articulação com que opera neste volume,
parece-nos, se bem que sem toda a canga narrativa e afunilada em personagens
centrais. Pois a nossa atenção, se regressa de maneira constante ao que parece
ser o planeta central, Terra/Gaia, isso acontece em blocos e interrupções. A
atenção é igualmente atomizada (palavra aqui o mais precisa possível) por
outros “objectos” que poderíamos chamar de protozoários ou de tecidos dérmicos ou
de globos de metal que formarão planetas ou nuvens de gases cósmicos ou de
cadeias de proteínas. Por vezes, perdemos mesmo a capacidade de distinguir uns
de outros, já que há um complexo jogo que atravessa as escalas dessa mesma
atenção.
A abordagem de Cheyrol, tal como a de outros autores – entre
nós, pense-se em algumas das pesquisas de Mao -, convida a que se faça um
aproveitamento de técnicas gráficas advindas de outras disciplinas de
ilustração, nomeadamente científicas e/ou técnicas. Mesmo que não seja essa
“representação” (a interpretação, como vimos, é mais ambígua do que uma
decisiva escolha), Cheyrol parece lançar mão de secções, visões
“microscópicas”, aproximações ou panoramas radicais, que levam a imaginar que Gaïa se pauta por escalas monumentais. Em
termos superficiais, há algumas características que recordam a pintura naïf ou até a chamada art brut,
ou mesmo “outsider”. Não é apenas o uso de materiais “não-nobres” como os marcadores
de feltro (apesar de empregar sanguínea, também, vetusto instrumento de
desenho), mas pela própria forma de ocupar todo o campo visual, o frenesim das
acções e “participantes”, a ausência de uma focalização centrada ou
individualizada, já para não falar da própria fortuna cromática e de
rendilhados gráficos. Todavia, há uma
clara coordenação com os mecanismos da banda desenhada, já que cada prancha
procura soluções de composição bem diversas e atentas à panóplia de soluções
existentes, e que o autor emprega a cada passo de forma significativa (um livro
que levou mais de dez anos a ser trabalhado, para depois ser lido num ápice,
poderá encurtar e colapsar ainda de outra maneira os seus tempos de
interpretação).
Associando-se às mais díspares disciplinas da ciência que
nos poderiam ajudar a compreender as transformações previstas pela narrativa
cósmica, o autor dá-nos a ver violentos cataclismos e dramáticos processos de terraformação
que ao mesmo tempo podem ser lidos como processos internos de um corpo, ou uma
batalha entre agentes personalizados. Há, portanto, na leitura deste livro, um
quase perfeito equilíbrio entre o abjecto das excreções e convulsas mutações e
o reencantamento da vida.
Estamos, naturalmente, muito perto de uma pesquisa que terá
a ver com a noção goetheana das “metamorfoses”, em que testemunhamos
desdobramentos contínuos de uma mesma matéria, e não simplesmente uma
“passagem” entre “estádios distintos”. Há uma identidade – no caso dos textos
do poeta e naturalista alemão, das plantas – que se mantém não obstante as
vagas de mudança que perpassam a entidade, o corpo, a coisa em questão. Como
consequência, existiriam duas inclinações formativas: a centrípeta, que é de um sinal conservador, e que leva à formação
interna da entidade, às suas especificidades mantidas por filiação; e a centrífuga, já vista como “progressiva”,
e que é virada “para fora”, isto é, a tendência da adaptação. Uma das
implicações é que apesar das diferenças entre as formas variadas de uma mesma
categoria supra-entidade (em Goethe, a “flor”, em Cheyrol, a “criatura-planeta”)
existirá sempre um fundo irmanável, características comuns. Portanto, mesmo que
entendamos uma distribuição actancial entre “Gaia” como a protagonista e depois
uma série de antagonistas, deuteragonistas e até parasitas, ao mesmo tempo
poderemos ver na superfície destas páginas um bailado de formas molares e
moleculares, cujos encontros, embates, enlaces físicos fazem com que troquem
dendrites, substâncias, líquidos, elementos, mas contribuindo para uma força
comum. Há sempre, portanto, um pouco de todos os objectos em todos os outros.
Ao contrário do que ocorre nos livros de Harder de que
falámos anteriormente, e mesmo que haja um caminho para uma “coroação” no
momento em que desponta a vida biológica na sua superfície, não se procura em em
Gaïa uma teleologia com o ser humano
no centro. Ou pelo menos de forma permanente. Pois nesta novela com cerca de
100 pranchas, por volta da 30ª prancha da narrativa surge o que parece ser um
feto humano, que assinala o surgimento de Eros (a reprodução sexuada, por um
lado, mas igualmente interpretável simbolicamente como um “desejo”
individualizante), e rapidamente absorvido e desaparecido nas formas em que se
desdobrará, num constante movimento de indiscernibilidade entre o que podem ser
objectos cósmicos (o planeta, meteoros, galáxias rodopiantes) e unidades
biológicas (células, moléculas, veias, etc.).
Formado em escultura, o autor e músico marselhês tem trabalhado recentemente em formas fabricadas em papier machê, a que chama de “híbridas”, fazendo-nos recordar em
certa medida o trabalho de Catarina Leitão, no sentido do cruzamento entre o
orgânico e o não-orgânico, o elementar e o complexo, o humano e o não-humano.
Uma espécie de curva ou desvio imaginário na evolução das espécies. Uma breve
visita ao seu blog livresco revelará que ele pensa cada uma das “formas” ou “espécies”
de uma maneira individualizada, quem sabe prevendo formas de comportamento e
resposta dessas mesmas entidades. Talvez não seja totalmente descabido conceber
estas formas sob o signo do novo conceito de Donna Haraway, o do Chthuluoceno, que convida a uma leitura
do momento contemporâneo com mais um descentramento da figura humana para uma
relação tentacular com a natureza, o mundo, os “outros” (não tanto os “outros
humanos”, mas sim tudo o resto que existe na Terra: de aranhas a líquenes). A
de estabelecermos novos graus de parentesco não por elos familiares, sequer de
espécie, mas indo subindo em cada nível taxonómico até chegarmos a uma
conectividade quase absoluta. E Haraway chega mesmo a falar de Gaia como auto-poiética, "atingindo uma coerência sistémica finita face a perturbações no seio de parâmetros que em si mesmos respondem a processos sistémicos dinâmicos". Portanto, não uma totalidade fechada sobre si mesma, mesmo as suas "partes", mas um complexo movimento não-linear dessas mesmas forças internas, ainda assim identificáveis como tal. Uma descrição possível de aplicar sobre o próprios sistema da banda desenhada (veja-se Staying With the Trouble: Making Kin in the Chthulucene,
que reúne vários textos publicados alhures).
Um hino à conexão, à familiaridade rizomática sem fim, ao
desdobramento internos de um mesmo centro, Gaïa
é um projecto que convida não apenas a uma nova percepção humana do universo
como procura descentrar-nos para melhor nos responsabilizar na sua reinscrição.
Nota final : agradecimentos à editora, pelo envio do
livro em ficheiro digital.
Sem comentários:
Enviar um comentário