Permitam-nos iniciar este texto com uma nota pessoal e um
pedido de desculpas. A nota pessoal prende-se com uma justificação de termos
estado “em silêncio” em relação a toda uma série de livros ilustrados para a
infância que têm sido publicados nos últimos meses em Portugal, não por falta
de atenção e menos ainda por falta de interesse, mas devido a vários
compromissos profissionais e académicos que nos têm impedido de poder fazer uma
recepção crítica mais atempada, individualizada e específica a cada um desses
projectos. O pedido de desculpas deve-se às editoras, que têm sido generosas em
deixar-nos a par das suas novidades e apostas editoriais, que não acarreta de
forma alguma a obrigatoriedade de escrever sobre elas mas parte de um
pressuposto de atenção, dada a (ainda) desequilibrada recepção crítica desta
produção nos meios de comunicação mais massificados, e mesmo nos mais
especializados reduzidos muitas vezes a discursos impressionistas. Porém, esse
pedido de desculpas deve ainda dizer respeito ao presente texto, pois ao
abordar mais de trinta títulos de um só fôlego, é mais do que natural que
incorramos numa profunda injustiça, já que nem poderemos entrar numa leitura
formal pormenorizada que cada título mereceria nem poderemos dar conta de um
juízo de valor mais argumentado e claro. (Mais)
De forma alguma gostaríamos de incorrer numa espécie de
mole de mesmidade para falarmos de todos estes livros, mas não deixa de ser um
motivo de alegria de estarmos a viver num tempo em que a oferta editorial é de
uma felicidade que nunca teve par em Portugal (alguns títulos são porém do
Brasil). Se bem que se poderão encontrar exemplos maiores de, por exemplo, literatura
para a infância no nosso país, e temos toda uma série de gerações históricas
fundamentais na ilustração, nunca como agora se encontrou um equilíbrio tão
preciso, justo e inteligente entre a fabricação dos textos e imagens, muitas
vezes em colaborações íntimas, inclusive com os editores e as casas publicadoras,
que tornam estes livros em objectos pensadores quase perfeitos.
Numa perspectiva de longo, longo prazo, estamos a assistir,
no mundo contemporâneo, a uma verdadeira transformação em relação à criança e à
sua valorização enquanto cidadã de pleno direito. Poderíamos dizer – de uma
forma algo hiperbolizada e dramática - que o próprio conceito de “criança”,
enquanto seres de uma ontologia bem distinta no interior do ser humano, e que
mereceram construções discursivas bem distintas daquelas engendradas para o
adulto, terá surgido no dealbar do século XIX (as passagens de Rousseau a
Pestalozzi e Froebel, etc.). É aí que emerge a ilustração dita infantil, com instrumentos gráficos
diferentes – condensações, estilizações, simplificações ao nível da linha, a sua
coordenação com textos diminutos, uma certa procura por uma protecção ou
sublimação do “mundo real”, um delir total das fronteiras com o onírico, o
realismo ou o absurdo, sem mais, etc. – dos da ilustração de imprensa,
literária (adulta), etc. Que se começam a especializar escritores (e editores,
designers, agentes) a escrever para crianças. Que emergem modos pedagógicos específicos
(até a própria palavra é cunhada então). Que toda uma indústria, claramente
associada à emergência de uma cada vez mais afluente classe burguesa urbana e
industrial, de produtos dedicados às crianças (brinquedos, mobiliário, jogos
lúdicos, espectáculos), se vai formando. Que se (re)pensam estratégias de
ocupação da cidade ou do uso dos equipamentos urbanos pelas crianças. As sucessivas
reformas e novas metodologias educativas têm transformando este discurso
central, da criança como ser particularmente diferente – os Direitos da Criança
vêm inscrever-se nesta linha confirmando, reforçando e até elevando esse
conceito.
Naturalmente que estamos a falar do mundo (sobretudo)
ocidental, com toda a sua classe de privilégios, não esquecendo que noutras
paragens as crianças são ainda, com efeito, “adultos em miniatura”, passíveis
de trabalhar na indústria da construção civil ou naval ou indumentária ou
bélica. Ainda há crianças que em vez de parquinhos com escorregas têm lixeiras
a céu aberto.
A tal transformação em relação à cidadania é, entenda-se,
uma impressão, e não fruto de uma investigação aturada da nossa parte, e criada
em torno dos discursos que vemos emergir de toda uma nova geração de produtores
de livros ilustrados para a infância (escritores, artistas, directores de arte,
editores, livreiros, bibliotecários, críticos, professores, e, acima de tudo,
pais-clientes, etc.). Se bem que apenas uma análise de dados concretas poderia
explicitar a fortuna, ou falta dela, económica e de circulação destes livros e
a saúde das suas editoras e autores, a verdade é que com a multiplicação de
acções, espectáculos teatrais, festivais e exposições, concursos (sejam eles
mais prestigiantes e inteligentes ou de uma massiva injecção de capital – e
dizemo-lo pois temos neste grupo de publicações Mana, de Joana Estela, o projecto vencedor do Prémio Internacional
de Serpa para Álbum Ilustrado 2015),são sinal, por mais fraco que seja, dessa
potencialidade. Mas acima de tudo está de facto esta oferta multifacetada que
tanto atenta à contemporaneidade como à memória interna desta disciplina, ao
acesso a matéria histórica e a instrumentalizações do livro ilustrado como
ferramenta de autonomia e emancipação.
A grande marca de distinção que nos leva a pensar isto tem
a ver com o surgimento de uma diversidade discursiva (entenda-se, de todo o
objecto-livro) que se vai expressar em duas atitudes, ambas expansivas. A do
pós-modernismo e a da politização.
Em relação à primeira noção seguiríamos uma descrição
sucinta do pós-modernismo como “a rejeição da unidade, homogeneidade,
totalidade e fechamento” (Martin Coles e Christine Hall, citados na introdução
do colectivo Postmodern Picturebooks).
Se o fizermos, compreenderemos até por esta brevíssima amostragem de que
estamos perante uma oferta sem qualquer dúvida – e para jogar com essa
descrição - plural, heterogénea, atomizada e aberta. É
precisamente no espaço da discussão entre essas linhas múltiplas, na
intersecção desta oferta que emergirá a própria criança como cidadão perante a
multiplicidade, este “mosaico profícuo”, para empregar uma expressão de Andreia
Brites na revista Blimunda no. 55.
Não se poderão subsumir as tendências a uma meia-dúzia de princípios, ou de
programas concentrados. Haverá alguns traços identitários que aproximam uma
família mais do que outra, sem dúvida (como já tínhamos falado a propósito das cerejas, há uma maior incidência de uma
“escola geométrica” do que de outras estratégias visuais entre os autores
portuguese), mas acima de tudo há uma pluralidade na expressão. E se nem todos
os livros atingem as mesmas intensidades ou proficiência em pensar todos os
seus elementos, ainda assim o balanço é drasticamente positivo e muito contrastante com qualquer oferta
de plataformas mais comerciais, de franchises
e marcas registadas, ou projectos de contornos demasiadamente atreitos no
“eduquês”,ou pior, o “moralês”.
E isso permite que se elaborem gestos de escolhas que tanto
poderão repensar o passado como olhar para o presente e projectar vários modos
de actuar sobre ele com a intenção de reimaginar os papéis dos leitores
centrais.
Com efeito, são muitos os livros que lidam com temáticas
que têm a ver com a integração do cidadão no seio de unidades sociais cada vez
mais alargadas. Começando na família “nuclear” à identidade dessa mesma ideia
de família, começando na rua para se estender ao bairro, depois à cidade e
finalmente ao mundo, seja este entendido enquanto entidade globalizada seja
enquanto unidade orgânica. Desde a forma como encaramos o que comemos todos os
dias à maneira como aproveitamos o tempo, como nos deslocamos no espaço ou como
criamos categoriais sensoriais e até mesmo à forma como “funcionamos” no nosso
próprio interior, todos estes títulos são pequenos blocos para uma permanente
construção do eu nos seus vários interrelacionamentos, já que nada pode ser o
indivíduo sem a sua integração societal.
E um livro é, afinal, um dos mais privilegiados e melhores instrumentos
de sociabilização, já que é sempre um convite, nada paradoxal mas complementar,
a estarmos uns momentos connosco mesmos e com um outro (em primeiro lugar os
autores, depois as personagens) – mesmo que estejamos a falar de uma criança
com um livro lido por um parente…
Se quisermos arregimentar instrumentos teóricos mais
académicos e filosóficos, poder-se-ia esgrimir a ideia de que o pós-modernismo (a
“dominante cultural” dos nossos tempos, de acordo com Frederic Jameson) não
apenas assinala o fim das metarrativas, com Lyotard, como assinala também a
emergência de “identidades fragmentadas”, com Donna Haraway. Isto permite a que
escapemos a uma mera gravidade de inscrições sociais em identidades clássicas
(etnias, nacionalidades, línguas, sexos e sexualidades, famílias
civilizacionais, etc.) para podermos dialogar antes por afinidades e empatias,
o que permite um diálogo muito mais alargado com aquilo que percebermos numa
primeira instância como “Outros”, ou até todo o mundo. Não é que isso permita
confundirmo-nos com o outro, ou pior, apropriarmo-nos de culturas distintas das
nossas, mas antes a uma possibilidade equalitária de encontro. E são muitos os
autores que nestes livros exploram precisamente as diferenças não de uma
maneira para criar arcos de desenvolvimento heróicos (o Outro como apenas
aceitável e Herói) mas de abertura de espaço de encontro: Noite estrelada, de Jimmy Liao (Kalandraka) ou Tão Grande, de Catarina Sobral (Orfeu mini), ou, mais pelo aspecto
gráfico e quase-absurdo, Crac!,
de Carmen chica e Martina Manyá (idem).
Quando falamos de política
queremos revistar aquela ideia de Rancière, que já antes havíamos discutido, de
abertura e democratização cada vez maior dos instrumentos de expressão e do sensível.
Nada disto é estranho à ilustração infantil. Em termos histórico-políticos,
bastaria olhar para a construção de objectos na Rússia Soviética, na Alemanha
Nazi e os vários impérios colonialistas (França, Inglaterra, Itália e Portugal,
por exemplo), para encontrarmos exemplos acabados do emprego de instrumentos de
propaganda e ideologias vincadas na fabricação de objectos dirigidos à educação
dos futuros cidadãos. Naturalmente que os objectos hodiernos, inclusive estes
que estamos a ler, não deixam de ter igualmente os seus próprios contornos
ideológicos, e que dependerá do enquadramento familiar da sua adopção,
confronto ou “consumo crítico”, se assim se pode dizer. Desta forma, a leitura
de As histórias de Babar, por
exemplo, não pode ser feita de modo que seja alheio ao programa colonialista
francês defendido por Brunhoff, mesmo que “inconscientemente”: afinal, aqui
temos uma história que demonstra a superioridade civilizacional e cultural da
metrópole europeia (a Capital das Luzes!) face aos países colonizados, que apenas têm a aprender na adopção dos
valores e parâmetros societais apresentados. A leitura da Pippi permitirá ver um dos exemplos recuados de tentativa em criar
uma figura feminina não-normativa, mas que hoje surge algo deslocada (mas com
todo o seu charme original). Mas repare-se como títulos tais como As Mulheres e os Homens ou Há classes sociais (Equipo Plantel, Luci
Gutiérrez e Joan Negrescolor, publicados pela Orfeu Negro) são igualmente muito
claros na forma como se propõem desmontar “valores” e “percepções normativas”,
fornecendo instrumentos para alternativas mais equalitárias, integrantes e
democráticas. Esses dois títulos são até claríssimos nesse seu combate, mas um
livro como A minha cidade é feita de luz,
de Fanha e Gozblau, nos seus retratos de uma Lisboa aberta à migração, e aos
encontros entre “tradição de modernidade”, têm os seus contributos. Até Batata Chaca Chaca poderá ser lido como
um incentivo a alterações de alimentação, que caminham tanto para soluções de
sustentabilidade e de diálogo cultural, ambos temas substanciais nessa mesma
direcção.
Uma das outras conquistas dessa expansão tem a ver com a
questão da “colaboração”. Sem querer arvorar apenas os agentes reunidos neste grupo, estamos longe daquelas
práticas de casar “meramente” um/a ilustrador/a porque lhe cabe o papel de
abrilhantar o “produto” a vender, mas que nasce de uma génese textual e, para
mais, em que é o texto literário do “grande escritor/a” o alfa e o ómega do
gesto criativo. Aliás, é triste ver como ainda existem editoras que, detendo os
direitos de textos de autores literários importantes, lançam mão depois a
projectos imagéticos ora medíocres ora mal tratados.
Sem querer transformar tampouco esta numa questão
geracional, também se notarão, portanto, ou nesta selecção, que as colaborações
de autores mais novos reflectem igualmente modos de integração entre as
“partes” bem mas íntimas e implicadas que processos anteriores. A série de
livros que José Fanha criou por ocasião de um convénio entre a Pato Lógico e a
EMEL-CML (A minha cidade é feita de luz, Roque & Rola e Bibi Manuela, A rua dos sinais diferentes e A minha cidade é um livro), por exemplo,
em nada diminuem a consabida e profícua lavra do autor; bem pelo contrário, até
a reforçam pela diversidade de estratégias textuais, capacidades de,
respondendo a uma proposta institucional – estes livros fazem todos parte de
uma iniciativa chamada “Pela Cidade Fora, Educação para a Mobilidade” -, as
transformar em projectos literariamente belos. Todavia, mesmo na colaboração
distinta com os ilustradores eleitos (respectivamente Alex Gozblau, Susana
Carvalhinhos, Maria Remédio e Ana Seixas) nota-se mais uma necessidade destes
últimos responderem a posteriori aos
textos perfeitamente construídos, do que uma complementaridade a par e passo,
caso de muitos dos outros projectos aqui reunidos, nomeadamente O Convidador de pirilampos, de Ondjaki e
António Jorge Gonçalves (Caminho), Imagem,
de Arnaldo Antunes e Yara Kono (Planeta Tangerina), e O piolho sabe que, de Mathis e Aurore Petit (Orfeu Negro). Nestes
casos, nenhum dos autores “conta primeiro” em relação ao outro: há uma perfeita
sintonia e flutuação entre os elementos (os quais, talvez nos melhores casos,
nem se sentem como entidades ou “partes” separáveis) presentes do livro, como
totalidade no significado.
Sejamos um pouco mais descritivos nesta tal diversidade de
oferta. O que temos em nosso torno. Traduções de clássicos incluem As Histórias de Babar, reunindo as 5
primeiras aventuras do famoso elefante, por Jean De Brunhoff, iniciadas em 1931
(Relógio d’Água), com uma boa introdução de Maurice Sendak, num belíssimo
objecto, e num pequeno passo em direcção ao que se compreenderia como edição crítica. Conheces a Pippi das meias altas?, de Astrid Lindgren (de 1947,
editado pela Oficina do Livro, cujas versões em banda desenhada já tinham saído
em Portugal na década de 1970 ou 1980 pela Dom Quixote) vem, eventualmente,
recordar uma personagem na mesma esteira e importância que Peter Pan ou Alice. Uma cova é para escavar, de Ruth Krauss
e Maurice Sendak (originalmente de 1952), dá continuidade à tradução da obre
deste autor-charneira pela Kalandraka. Há também trabalhos mais modernos, como Silvester e a pedrinha mágica, de
William Steig, o autor do mais famoso Shrek,
de 1969 (Companhia das Letras) e Se as
maçãs tivessem dentes, do casal Milton e Shirley Glaser, de 1960 (Bruaá),
introduzindo assim aos portugueses, estamos em crer, o trabalho de ilustração
para a infância de um dos mais influentes designers norte-americanos do século
XX. Adicionalmente, existem também diálogos memoráveis entre textos clássicos
com novas imagens, como são os casos de A
história da gata das botas, de um manuscrito de 1914, recentemente
redescoberto, de Beatrix Potter (ela também alvo de uma política de reedição,
dada a efeméride; aqui, pela Asa) e ilustrado pela primeira vez por um grande
mestre da ilustração britânica, Quentin Blake, de uma maneira a um só tempo
sumária e completa, ou a novela radiofónica de 1932 Um dia de loucos. Trinta ossos duros de roer, de Walter Benjamin,
ilustrado brilhantemente em spreads
populosos, coloridos e dinâmicos por Marta Monteiro Bruaá).
Depois surgem títulos de autores que já haviam sido
publicados entre nós e que trazem novas inflexões desses autores. Ahab e a baleia branca, um diálogo
intertextual entre a famosa obra de Melville e o trabalho magnífico de Manuel Marsol (Orfeu) transforma a busca do protagonista naquela do leitor pelas
texturas de cada página dupla. Carmen Chica, por sua vez, e desta vez com os
desenhos de Martina Manyá, traz em Crac!
uma alucinação mas ao mesmo tempo um desafio e provocação em pensar o mundo de
forma diferente e livre. Simona Ciraolo regressa, com O rosto da avó (Orfeu), a um relato de descoberta pelo outro
familiar, numa comovente excursão física pela forma como as rugas e linhas do
rosto são cartografias da memória (e que remeteria à mesma questão discutida
por Baudoin em La musique du dessin).
Achámos um chapéu, de Jon Klassen
(Orfeu), volta aos pequenos contos que, numa aparência de fábula absurda,
encerra lições de aceitabilidade identitária importantes, e de gestos
solidários. E Joana Estrela, numa quase directa adaptação de um famoso conto
tradicional do Reino dos Algarves, com a
A rainha do Norte (P.T.) demonstra como é detentora não apenas dos
instrumentos à construção de um livro completo (já Mana o demonstrara, mas aqui
esse “músculo” é mais visível) como de uma inteligência capaz de remoldar um
modelo tradicional para acomodar a preocupações contemporâneas.
Naturalmente, também surgem alguns nomes “novos”, pelo
menos entre nós, como o – apetece dizer, “oh, so British!”, apesar da autora
ser norte-americana – Ké Iz Tuk?, de
Carson Ellis, comos seus laivos de absurdo à la Edward Lear e a candura
estrutural e cromática de um Gerald Rose ou John Burningham.
Os livros ilustrados
infantis são, ao lado da banda desenhada, de livros de artista, de poesia
visual, livros ilustrados, formas de combinação de texto e imagem a que Pascal
Lefèvre chama de modelos, os quais
partilharão intensidades e relações entre alguns dos seus elementos, mas que
diferirão igualmente em algumas das “características prototípicas tais como a
experimentação do veículo (carrier)
ou do material (redesenhando o próprio objecto-livro) e combinando livremente
tipografia e imagem” (“Intertwining verbal and visual elements in printed
narratives for adults”). Suspendamos aqui a questão de existir ou não matéria
verbal nestes livros – alguns são “mudos” (Aquário,
de Cynthia Alonso; Orfeu) -, pois mantém-se sempre a existência de um
agenciamento dos seus elementos narratológicos ou interpretáveis. Mas será
naqueles títulos que têm contornos de livros-jogo que se notará
essa dimensão. Mesmo que não haja propriamente uma exploração da
tridimensionalidade ou objectualidade ou complementaridade do livro através de
brinquedos, eles cumprem esse domínio. Céu
de sardas, de Inês d’Almey e Alicia Baladan (Bruaá), desdobra-se numa
espécie de jogo de
tabuleiro e exploração das estrelas. Conta-Quilómetros, de Madalena Matoso (Planeta Tangerina), é um
livro de lamelas, que, como outros projectos anteriores, convida a uma plurilegibilidade
lúdica, com consequências na representação. Dobra-Letras,
da mesma autora e editora, é uma espécie de dança de roda com letras, que
permite recombinações pedagógicas. A bola
amarela, de Daniel Fehr e Bernardo Carvalho (P.T.), dá continuidade aos
projectos deste ilustrador e casa de pensar a narrativa como tendo lugar neste
objecto preciso que é o livro, transformando a sua materialidade circunstancial
na contingência espacial e tangível num dos elementos decisivos do contar. Mamã Raposa, de Amandine Momenceau
(Orfeu mini) é mais simples, mas as suas dobras e cortes dos cenários permite
jogos simples de escondidas que desdobram (se nos permitem) a narrativa e a
cumplicidade com as personagens. E até o livro de Benjamin ilustrado por
Monteiro convida o leitor a participar no jogo de detecção de erros… Seja quais
forem as estratégias, não são mais do que formas de enriquecer aquele “mosaico”
de que Andreia Brites falava, num artigo precisamente sobre livros-jogo.
Se os livros servem para descobrir o mundo, isso também
pode ser feito não de forma metafórica, mas mais directa. A aposta da Pato
Lógico numa nova colecção de mapas, “A minha cidade” (até agora saiu Edimburgo, de Marcus Oakley, e Beja, de Susa Monteiro), permite
descobrir também essas cidades em pequenas psico- ou afecto-geografias, mesmo
que, alerte-se, a sua compulsão nas ruas reais possa levar a passos perdidos
(ou será encontrados?). A Planeta Tangerina, num novo volume imponente de mais
de 350 páginas, Cá dentro. Guia para
descobrir o cérebro, de Isabel Minhós Martins, Maria Manuel Pedrosa e
Madalena Matoso, oferece-nos um imenso gesto com que nos podemos reflectir a
nós mesmos (um livro que interessará, decerto, não apenas aos mais novos).
A banda desenhada não é, de forma algum, um território
alheio a estes desenvolvimentos, e temos aqui alguns exemplos, ainda que sejam
para, em termos gerais, leitores mais velhos do que os dos álbuns ilustrados.
Com efeito, em Portugal a Devir tem feito um esforço particular na
diversificação do seu catálogo – cada vez mais abrangente – com a inclusão de
títulos de banda desenhada para um público mais jovem, quase sustentando, à
margem das bandas desenhadas italianas da Disney e as revistas importadas da
Maurício de Sousa produções, esse mesmo território. E, convenhamos, sob a
perspectiva das duas noções apontadas acima, indo muito, muito para lá dessas
outras plataformas comerciais. Para além de dar continuidade à série Hora de Aventuras, já saíram igualmente
dois volumes da série O incrível mundo de
Gumball (fazendo imaginar que estas traduções dos títulos da Boom Studios a
partir das séries de animação da Cartoon Network possa aumentar entre nós), uma
das mais frenéticas, metatextuais e criativas séries de animação do momento (e
bem “traduzida”, digamos assim, pela diversidade de artistas nestes dois
volumes), a Devir apostou na série Lumberjanes,
de Noelle Stevenson, Grace Ellis e Brooke Allen, e Paper Girls, de Brian K.
Vaughan e Cliff Chiang.
Se bem que a segunda seja para um público mais velho
(diríamos a partir dos 12 anos) do que o segundo (na casa dos 9-10), os
cruzamentos de toda a demografia de leitores são possíveis, mas o mais
importante é serem série sobre colectivos de personagens femininas, e
internamente diversas nas suas personalidades, comportamentos e esferas de
acção, diversificando portando a própria ideia de identidade feminina (já a
questão cultural-nacional é outro assunto, mas servem de modelos “ocidentais”).
Nessa perspectiva, também o esforço político de expansão da discursividade
destes livros é claríssimo. Paper Girls é uma saga que atrairá muito dos
fãs de Strange Things, já que, tendo surgido antes da série televisiva, toca os
mesmos instrumentos de nostalgia, para depois explorar viagens no tempo e em
que medida é que nós, se nos confrontássemos connosco mesmos de outras linhas
temporais, seríamos capazes de sentirmos afinidades comuns. Lumberjanes é uma aventura mais directa,
mas que coloca em primeiro plano a auto-estima, a cooperação, o trabalho de
equipa e a capacidade de cada um sustentar-se, independentemente de percepções
ou projecções exteriores.
Numa mesma óptica ainda a que poderíamos dizer, “U go,
girl!”, a edição em língua portuguesa de Hilda
e o Troll, de Luke Pearson (Companhia das Letras), originalmente da Nobrow,
vai ao encontro dessas preocupações e gestos, se bem que de modo mais
simplificado e socialmente menos integrado, uma vez que se trata de uma
fantasia “socialmente afastada”.
Nota
final: agradecimentos a todas as editoras citadas, pela contínua oferta e
atenção com os seus livros.
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