27 de abril de 2017

Três títulos da Avery Hill. AAVV.


Três passeios por paisagens inconstantes. A Avery Hill é uma recente e pequena editora londrina que parece disposta a fazer apostas numa certa diversidade de linguagens da banda desenhada, que tanto poderá compreender gestos algo experimentais como outras abordagens mais convencionais, mas ainda assim informadas por sensibilidades e estilos contemporâneos, abertos a um diálogo entre vários géneros, e sempre sob o signo da tranquilidade. Dos que nos foi dado a ler, vimos precisamente como constante a exploração dos mais distintos mundos ficcionais, que podem compreender a ficção científica, a fantasia, o fantástico, o mundano e até o horror, mas sempre numa pausada e certeira caminhada. Os três livros que trazemos aqui à colação, de uma forma ou outra, dão-nos a impressão de estarem unidos por “passeios” idênticos, sejam eles mais próximos da ficção ou da autobiografia, e procurando vários graus de experimentação gráfica, narrativa ou de composição. (Mais) 

Grey Area # 4, Our Town. Tim Bird. Depois de reunir os três primeiros números do seu zine num só volume nesta editora, sai este quarto número. Na continuidade deste projecto, estamos sempre perante pequenos passeios pela cidade de Londres que se podem considerar psicogeográficos, até porque a questão da memória está em primeiro plano na narrativa. Our Town conta a história de duas pessoas que, de uma forma ou outra, elaboram caminhos idênticos na cidade em que vivem, tocando as raias das suas fronteiras rurais, e unem-se igualmente pelo interesse comum de “criaturas de papel” voadoras: o personagem masculino por papagaios de papel, a feminina por origami de aves. Em menos de uma trintena de pranchas, Bird tece e dobra os percursos das duas personagens através da sua juventude, para depois alcançar a vida adulta de ambos, já unidos, ou reunidos, nas mesmas paragens de outrora. De uma forma tranquila, com legendas externas, poucos diálogos e uma exploração visual-compositiva dos pequenos gestos que permitem os voos dos papagaios e dos origami, estende-se ainda assim uma história que tem a ver com perdas, crescimento, memória e uma convivência com o espaço (urbano/rural) que poderá estar a perder-se. Não se poderá dizer que o tom seja melancólico ou nostálgico, pois as personagens estão felizes no seu encontro e crescimento, mas há certamente uma celebração desse passado, sem que se negue a inscrição do presente. Sem que haja uma associação referencial a Londres imediata, acreditamos todavia que os leitores familiarizados com essas paragens permitam algumas associações, mas é também possível que isso ocorra em relação a outros contextos suburbanos. Mescla entre trajectos físicos e de rememoração, há uma dimensão lírica e espiritual a esta pequena peça, na sua reduzida mas significativa paleta.

Goatherded. Charlo Frade. Igualmente uma pequena publicação de umas 40 páginas, é difícil compreender se se trata de um conto ou de uma putativa primeira parte de um projecto maior. Seja como for, Goatherded parece estar na senda do que discutimos a propósito de Prophet, toda uma tendência de regressar a uma ficção científica cruzada com o psicadelismo da década de 1970, onde cabem elementos de outros géneros de ficção, e há muito espaço para a ambivalência narrativa. Contada em páginas maioritariamente apresentadas numa inexorável grelha de 2 x 4 vinhetas, com excepções que se querem retóricas e espectaculares, seguimos, talvez, a colonização de um planeta por seres humanos depositados através de meios tecnológicos-mágicos. Um desses “astronautas” faz o que parece ser um pacto com uma criatura fantástica nesse mesmo planeta, lançando-o numa pequena aventura que o transformará profundamente, a todos os níveis. Envolvendo um ritual de deuses e demónios, essa transformação será radical mas igualmente anti-climática, um pouco como o que sucede em Chronopolis, um filme de culto de Piotr Kamler, que remete ao mesmo tipo de imaginário em questão no livro. Com um bom número de referências espatafúrdias e que farão criar uma rede incongruente com o nosso mundo, Goatherded parece um exercício à la Jodorowski se o autor chileno estivesse menos preocupado com sistemas de crença e símbolos do que com uma espécie de distração empregando os mesmos elementos. Frade usa um desenho a linha muito expressivo e que abusa do escorço de uma forma hiperbólica que aumenta o melodrama possível. As cores, a um só tempo diversas e baças, dão uma qualidade íntima à narrativa. Mas ao mesmo tempo existem linhas de fuga temáticas que faz pensar em questões de religião e de conexão com o universo. Se o título, associado aos acontecimentos, também sublinha o papel entre o indivíduo, a sociedade, os grupos e colectivos e um todo holístico transcendente, é como se se criasse uma pergunta devolvida ao leitor.

Ghosts, etc. George Wylesol. Destes três títulos, e também contraste com o que parece ser o restante catálogo da Avery Hill, o trabalho de Wylesol é o mais experimental e mais anti-naturalista de todos. Como no caso de outros artistas publicados por esta casa, e um pouco como a Chili Com Carne o cumpre na sua colecção Mercantologia, este volume reúne vários trabalhos do autor que haviam sido publicados em zines, necessariamente com menor circulação. No caso presente, reúnem-se as histórias “Worthless” e “The Rabbit” com a história inédita, e a maior, que abre o volume, “Ghosts”. O que mais surpreende na estruturação de “Ghost” é que Wylesol parece colocar de lado preocupações costumeiras como as da elegância da página, coerência de desenhos e de uma focalização da personagem. Se a faixa textual remete a uma voz interior, discorrendo sobre a sua experiência de trabalho num hospital, as dúvidas instalam-se quase de imediato pela quase total ausência de outras personagens humanas. Ou pelo menos, vivas. Na verdade, esta narrativa recorda-nos The Cage, de Martin Vaughn-James, já que também “Ghosts” mostrar um percurso por espaços “vazios” ou “esvaziados”, e também neles emerge a ideia de “personagens fantasmáticos”, para retormar uma leitura de Domingos Isabelinho dessa outra obra clássica do experimentalismo. Se se pode pensar que esta narrativa remete a uma espécie de “poesia do aborrecimento” ou “sem qualidades” de que também Chris Ware, Adrien Tomine ou outros são cultores, não há aqui qualquer hipótese de empatia ou de “identificação” da parte do leitor. Apesar das cores em “grão”, dando como que a impressão de uma passagem indexada à intervenção humana, os desenhos têm uma qualidade de “clipart” que faz imaginar serem materiais de uma brochura publicitária ou institucional a ganhar vida a querer expressar algo doloroso. Tratar-se-á de uma alucinação de um paciente do hospital? Estaremos numa esfera pós-apocalíptica ou pós-morte que permite apanhar alguns resquícios de uma vida anterior? Ou é tão simplesmente uma série de impressões que criam um frisson assustador, pois isolado da humanidade? Segue-se “The Rabbit”, uma espécie de fábula de horror que tanto tem de Al Columbia como de Charles Schulz, e “Worthless”, que talvez possa ser visto como uma espécie de poema gráfico dedicado aos tempos inúteis e mortos que os adolescentes passam nas traseiras de pavilhões desportivos ou bombas de gasolina, mas com isso mesmo acedem a uma compreensão sobre o bem e o mal, o céu e o inferno, que vi ganhando corpo com os cenários suburbanos de uma América corporativa e miserável.

Nota final: agradecimentos à editora, pela disponibilização dos seus livros em formato digital. 

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