Três passeios por paisagens inconstantes. A Avery Hill é uma recente e pequena
editora londrina que parece disposta a fazer apostas numa certa
diversidade de linguagens da banda desenhada, que tanto poderá
compreender gestos algo experimentais como outras abordagens mais
convencionais, mas ainda assim informadas por sensibilidades e
estilos contemporâneos, abertos a um diálogo entre vários géneros,
e sempre sob o signo da tranquilidade. Dos que nos foi dado a ler,
vimos precisamente como constante a exploração dos mais distintos
mundos ficcionais, que podem compreender a ficção científica, a
fantasia, o fantástico, o mundano e até o horror, mas sempre numa
pausada e certeira caminhada. Os três livros que trazemos aqui à
colação, de uma forma ou outra, dão-nos a impressão de estarem
unidos por “passeios” idênticos, sejam eles mais próximos da
ficção ou da autobiografia, e procurando vários graus de
experimentação gráfica, narrativa ou de composição. (Mais)
Grey Area # 4, Our
Town. Tim Bird. Depois de reunir os três primeiros
números do seu zine num só volume nesta editora, sai este quarto
número. Na continuidade deste projecto, estamos sempre perante
pequenos passeios pela cidade de Londres que se podem considerar
psicogeográficos, até porque a questão da memória está em
primeiro plano na narrativa. Our Town conta a história de
duas pessoas que, de uma forma ou outra, elaboram caminhos idênticos
na cidade em que vivem, tocando as raias das suas fronteiras rurais,
e unem-se igualmente pelo interesse comum de “criaturas de papel”
voadoras: o personagem masculino por papagaios de papel, a feminina
por origami de aves. Em menos de uma trintena de pranchas,
Bird tece e dobra os percursos das duas personagens através da sua
juventude, para depois alcançar a vida adulta de ambos, já unidos,
ou reunidos, nas mesmas paragens de outrora. De uma forma tranquila,
com legendas externas, poucos diálogos e uma exploração
visual-compositiva dos pequenos gestos que permitem os voos dos
papagaios e dos origami,
estende-se ainda assim uma história que tem a ver com perdas,
crescimento, memória e uma convivência com o espaço (urbano/rural)
que poderá estar a perder-se. Não se poderá dizer que o tom seja
melancólico ou nostálgico, pois as personagens estão felizes no
seu encontro e crescimento, mas há certamente uma celebração desse
passado, sem que se negue a inscrição do presente. Sem que haja uma
associação referencial a Londres imediata, acreditamos todavia que
os leitores familiarizados com essas paragens permitam algumas
associações, mas é também possível que isso ocorra em relação
a outros contextos suburbanos. Mescla entre trajectos físicos e de
rememoração, há uma dimensão lírica e espiritual a esta pequena
peça, na sua reduzida mas significativa paleta.
Goatherded.
Charlo Frade. Igualmente
uma pequena publicação de umas 40 páginas, é difícil compreender
se se trata de um conto ou de uma putativa primeira parte de um
projecto maior. Seja como for, Goatherded
parece estar na senda do que discutimos a propósito de Prophet,
toda uma tendência de regressar a uma ficção científica cruzada
com o psicadelismo da década de 1970, onde cabem elementos de outros
géneros de ficção, e há muito espaço para a ambivalência
narrativa. Contada em páginas maioritariamente apresentadas numa
inexorável grelha de 2 x 4 vinhetas, com excepções que se querem
retóricas e espectaculares, seguimos, talvez, a colonização de um
planeta por seres humanos depositados através de meios
tecnológicos-mágicos. Um desses “astronautas” faz o que parece
ser um pacto com uma criatura fantástica nesse mesmo planeta,
lançando-o numa pequena aventura que o transformará profundamente,
a todos os níveis. Envolvendo um ritual de deuses e demónios, essa
transformação será radical mas igualmente anti-climática, um
pouco como o que sucede em Chronopolis,
um filme de culto de Piotr Kamler, que remete ao mesmo tipo de
imaginário em questão no livro. Com um bom número de referências
espatafúrdias e que farão criar uma rede incongruente com o nosso
mundo, Goatherded
parece um exercício à la Jodorowski se o autor chileno estivesse
menos preocupado com sistemas de crença e símbolos do que com uma
espécie de distração empregando os mesmos elementos. Frade usa um
desenho a linha muito expressivo e que abusa do escorço de uma forma
hiperbólica que aumenta o melodrama possível. As cores, a um só
tempo diversas e baças, dão uma qualidade íntima à narrativa. Mas
ao mesmo tempo existem linhas de fuga temáticas que faz pensar em
questões de religião e de conexão com o universo. Se o título,
associado aos acontecimentos, também sublinha o papel entre o
indivíduo, a sociedade, os grupos e colectivos e um todo holístico
transcendente, é como se se criasse uma pergunta devolvida ao
leitor.
Ghosts, etc.
George Wylesol. Destes
três títulos, e também contraste com o que parece ser o restante
catálogo da Avery Hill, o trabalho de Wylesol é o mais experimental
e mais anti-naturalista de todos. Como no caso de outros artistas
publicados por esta casa, e um pouco como a Chili Com Carne o cumpre
na sua colecção Mercantologia, este volume reúne vários trabalhos
do autor que haviam sido publicados em zines, necessariamente com
menor circulação. No caso presente, reúnem-se as histórias
“Worthless” e “The Rabbit” com a história inédita, e a
maior, que abre o volume, “Ghosts”. O que mais surpreende na
estruturação de “Ghost” é que Wylesol parece colocar de lado
preocupações costumeiras como as da elegância da página,
coerência de desenhos e de uma focalização da personagem. Se a
faixa textual remete a uma voz interior, discorrendo sobre a sua
experiência de trabalho num hospital, as dúvidas instalam-se quase
de imediato pela quase total ausência de outras personagens humanas.
Ou pelo menos, vivas. Na verdade, esta narrativa recorda-nos The
Cage, de Martin Vaughn-James, já
que também “Ghosts” mostrar um percurso por espaços “vazios”
ou “esvaziados”, e também neles emerge a ideia de “personagens
fantasmáticos”, para retormar uma leitura de Domingos Isabelinho
dessa outra obra clássica do experimentalismo. Se se pode pensar que
esta narrativa remete a uma espécie de “poesia do aborrecimento”
ou “sem qualidades” de que também Chris Ware, Adrien Tomine ou
outros são cultores, não há aqui qualquer hipótese de empatia ou
de “identificação” da parte do leitor. Apesar das cores em
“grão”, dando como que a impressão de uma passagem indexada à
intervenção humana, os desenhos têm uma qualidade de “clipart”
que faz imaginar serem materiais de uma brochura publicitária ou
institucional a ganhar vida a querer expressar algo doloroso.
Tratar-se-á de uma alucinação de um paciente do hospital?
Estaremos numa esfera pós-apocalíptica ou pós-morte que permite
apanhar alguns resquícios de uma vida anterior? Ou é tão
simplesmente uma série de impressões que criam um frisson
assustador, pois isolado da humanidade? Segue-se “The Rabbit”,
uma espécie de fábula de horror que tanto tem de Al Columbia como
de Charles Schulz, e “Worthless”, que talvez possa ser visto como
uma espécie de poema gráfico dedicado aos tempos inúteis e mortos
que os adolescentes passam nas traseiras de pavilhões desportivos ou
bombas de gasolina, mas com isso mesmo acedem a uma compreensão
sobre o bem e o mal, o céu e o inferno, que vi ganhando corpo com os
cenários suburbanos de uma América corporativa e miserável.
Nota final:
agradecimentos à editora, pela disponibilização dos seus livros em
formato digital.
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