A presença da colagem como um dos
possíveis instrumentos da banda desenhada não é de forma alguma
uma novidade. Num artigo presentemente no prelo, num livro colectivo
dedicado à abstração em banda desenhada, regressámos ao livro 978
de Pascal Matthey e à obra de diceindustries para tentar compreender
não apenas esta “tendência” como também quais os contornos
precisos da técnica e as suas potencialidades expressivas, políticas
e de representação. Se podemos falar de Jack Kirby num campo
estrito da banda desenhada, também poderíamos arrolar Max Ernst,
Jess e Cátia Serrão em práticas mais expandidas e contaminadas da
banda desenhada ou nas suas margens confundidas com as artes visuais.
O alcance deste pequeno zine de François Henninger – com que nos
havíamos cruzado em algumas publicações alternativas, e de quem
lêramos Lutte des corps et chutes de classes – leva muitas
das revisitações do material mortificado pela tesoura a atingir
paroxismos maximais, que poderão devolver alguma urgência à banda
desenhada que serviu de “matéria-prima”. (Mais)
Como se depreende pelo título e a
imagem da capa, RIP baseia todo o seu material nas tiras de
Rip Kirby, um clássico do policial de Alex Raymond da década
de 1940. cada página do zine apresenta o equivalente a um conjunto
de cinco tiras, re-dispostas como se se tratasse de uma antologia ou
livro de bolso, tal como existiram de facto, tornando possível a
recirculação das tiras depois da sua original publicação nos
jornais. Porém, logo de imediato, uma leitura/visionamento atento da
primeira página, da primeira tira, mesmo da primeiríssima vinheta
(veja-se a imagem), demonstrará que o autor procedeu a uma operação
em que misturou, talvez, duas tiras numa só. Os corpos encontram-se
“interrompidos” com outros, os balões entrosam-se entre si.
Ainda assim, é possível uma espécie de leitura vestigial, na qual
o esforço de “corrigir” os erros e sobreposições nos leva a um
sentido, tal como ocorria (se bem que de uma forma “mais fácil”)
em “Malpractice Suite”, de Art Spiegelman.
Mas à medida que viramos as páginas,
vamos compreendendo que não estamos tanto a avançar na leitura e a
abandonar as tiras anteriores como a revisitar sempre a mesma página
construída, mas que a cada iteração sofre mais uma adição, mais
uma camada de colagens. Há mesmo “ruídos” que vão surgindo,
desde as “sombras” de linhas da fotocopiadora, a anotações
(números) feitas nas margens pelo autor, já para não falar dos
processos que vão distorcendo as imagens. Estas executam bailados
que seriam possíveis de tipologizar de acordo com alguns princípios,
tal como ocorria na sequência (pseudo-)narrativa de 978.
Mesmo a tentativa de as descrever acaba por sublinhar a dificuldade
em separar a questão da temporalidade da leitura/sequência, da
pesquisa formal do objecto tangível (mesmo que “imaginado”) ou a
sua presença física na prancha. Há portanto fragmentos, passagens,
momentos, vinhetas em que Henninger parece querer explorar distorções
dos padrões fornecidos pelas roupas e tecidos, há outros trechos em
que se cristalizam e atomizam rostos, exploram-se movimentos,
padrões, dissoluções de textos e corpos, impedindo o avanço
“natural” da história, mas convidando a uma confusão matérica
que nos remete aos princípios basilares da comutação temática da
própria banda desenhada original. De resto, algo que Stefano
Tamburini havia feito com Snake Agent ou Ilan Manouach com os
seus détournements.
Jacques Rancière, em O espectador
emancipado, descreve a técnica da colagem como “o choque, numa
mesma superfície, de elementos heterogéneos, se não mesmo
conflituais. No tempo do surrealismo, este procedimento serviu para
manifestar, numa época dominada pelo prosaísmo do quotidiano
burguês, a realidade reprimida do desejo e do sonho”. Ora, se se
eleger a série de Raymond como precisamente parte do discurso da
normalização e construção societal do pós-guerra
norte-americano, e um standard da banda desenhada do seu
tempo, isto é, do “prosaísmo do quotidiano burguês” - mesmo
que se admirem as inovações diegéticas e temáticas de Kirby,
ou a proficuidade de Raymond – podemos ver neste exercício de
Henninger uma espécie de dissecação ou autópsia (tal qual
conceptual ainda que não física e materialmente como Un cadeau)
do que se oculta, no domínio do desejo e do sonho. No cadinho dessa
interpretação, a releitura não-linear das páginas, mas optando
por exemplo pela técnica do flip-book, revelará travessias
de sexo entre personagens, talvez libertando potencialidades
recaldadas. O desaparecimento de uma cena interior numa dissolução
de planos poderá dar conta de um desejo de fuga absoluto das
responsabilidades diárias. A atomização dos fatos e tecidos
representaria a acumulação capitalista de bens. O surgimento
momentâneo de um homem violento, de faca na boca, numa cena
aparentemente doméstica de um diálogo entre Rip e Desmond, e depois
do busto quase desnudo de uma mulher fará imaginar as tensões
clássicas entre Eros e Thanatos sobre o verniz da convivência
social...
A colagem convida a contextos
confundidos, à quebra das ilusões narrativas e de representação,
a um questionamento dos fundos e das formas. RIP é um bom
exercício formal nesse sentido.
Nota final: agradecimentos a Benoît
Crucifix, pela oferta da publicação.
Sem comentários:
Enviar um comentário