Muitas vezes, as maiores obras narrativas são-no por conterem, não grandes heróis (protagonistas), mas personagens secundárias memoráveis. São estas quem usualmente fazem o fundo da história, confundindo-se com o espaço, o ambiente, a tonalidade daquilo que nos é apresentado.
Le Cri du Peuple, a adaptação em banda desenhada do romance homónimo de Jean Vautrin por Jacques Tardi, venerável autor de séries como Adèle Blanc-Sec e magníficos livros sobre a 1ª Grande Guerra (como La véritable histoire du soldat inconnu ou Varlot, o Soldado, entre nós, na Polvo), é um caso para essa ideia. A acção passa-se nesse pequeno interregno da Comuna de Paris, quando ficou nas mãos do Governo dos Communardes, para logo serem esmagados pelos esbirros de Versalhes. Figuras de proa desse “evento histórico” não faltam, seguramente, espalhados nos manuais, nos compêndios, nas teses... Mas e o amorfo povo, esse bicho que muda de opinião e líder conforme o vento, que segue paixões voláteis? Quem o compõe? Pessoas, que de amorfo não têm nada, e se erigem como personagens, ou melhor, voltando ao início, pessoas. É o caso dessas personagens secundárias em relação à História, mas não em relação às paixões mundanas que habitam Le Cri... É o velho Trois-Clous, navegando falsamente nostálgico por entre os despojos de guerra e a pobreza, Bassicoussé/Grondin, que vive atormentado por uma obsessão errada e o desejo de vingança, o jovem capitão Tarpagnan-Vingtras, e as suas mudanças de nível e papel social, a anã, Madame, perdão, Mademoiselle Palmyre, apaixonada pelo capitão e dedicada ao Idealismo dos Communardes, não deixando, porém, de incluir algumas figuras históricas (Courbet, Louise Michel, Jules Vallès, como não podia deixar de ser, como fundador do jornal que dá nome a esta obra de Vautrin-Tardi, e tantos outros).
A expressão dos eventos históricos como “pano de fundo” ganha maior significado quando – num álbum cujo formato é ao comprido – se apresentam a par e passo os acontecimentos de uma barricada da Comuna de Paris contra o exército de Versailles sob os planos desdobrando-se da vingança de Bassicoussé/Grondin, por exemplo. É como se o som dos tiros e dos relinchos de cavalos e os gritos de ordem fossem ouvidos a toda a leitura, mesmo quando apenas duas personagens se aproximam uma da outra e conversam no escuro da conspiração. O amor surge e evola-se rapidamente, as intimidades não são representadas, os episódios sucedem-se à velocidade dos canhões disparando. O grito do povo não se cala durante todas as páginas e impede-nos o descanso, tal como as personagens o não conhecem...
Não conhecendo a obra de Vautrin, não me posso pronunciar sobre a “adaptação”. E sabendo da complexidade, que não domino, deste episódio importante para a história da França (e do Socialismo e Comunismo Internacionais, etc.), esta talvez surja como uma das muitas possíveis reconstruções dos factos reais e sua estruturação com a ficção (os sub-plots, digamos assim, que fazem a obra interessante e não um manual de História “em banda desenhada”). Se bem com grandes diferenças, eis que se trata de uma obra que reutilizando material histórico, “verdadeiro”, se preferirem, elabora um texto magnífico, não tão livre ou artístico como, por exemplo, A História de Lisboa, de Oliveira Marques e Filipe Abranches, mas bem mais interessante que muitos dos títulos “pedagógicos” de História dos nossos escaparates...
Posso estar a incorrer num erro crasso, mas esta talvez tenha sido uma das primeiras revoluções da nossa civilização que foi construída e mantida pelo poder dos (novos, na época) media, desde os jornais – Le Cri du Peuple em primeira linha -, as declarações da Comuna na parede, as fotografias.... Aliar-se-á esse a um interesse de Tardi pelo trabalho de pesquisa em arquivo, já conhecido nas suas obras sobre a 1ª Grande Guerra, e à existência de certas personagens, criando o próprio material arquivístico que marcaria o acontecimento, o fotógrafo Théophile Mirecourt, e Vallés (real), etc.
O humor e os momentos de estranheza não estão ausentes deste livro, mas também esses loucos rasgos são recorrentes no autor. Por exemplo, os rostos dos dois soldados que surgem nas páginas 52 e 53 do 3º volume serão alguém reconhecível? Trata-se de um estilo diverso dos rostos “normais”, estilizados, de Tardi (Tarpagnan, sempre com um queixo enorme, quase sem boca). Outras piadas se espalham, como a da página 56 (mesmo volume), onde surge a confusão entre um Tardy e um Tardi.
Não me parece ter sido confrontado aqui com uma obra diferente ou surpreendente em relação à produção anterior de Tardi. O que ocorre aqui é uma afinidade de interesses entre os autores, provavelmente, uma espécie de programa que Tardi tem tentado cumprir com a sua obra toda. Dar a palavra aos que a não têm, mas são chamados à construção da História com o próprio corpo e sangue...
Nota final: Se bem que entenda o idioma francês, estes não serão os textos mais fáceis de ler, dadas as liberdades de utilização de vários níveis populares do francês de época, calão contemporâneo, o que nem sempre nos garante – a quem, como eu, não o dominar, claro, que não outros leitores mais conhecedores e educados – uma leitura “fluida”... Esta não é uma crítica, obviamente, apenas uma confissão de ignorância e, ao mesmo tempo, um aviso à navegação.
22 de fevereiro de 2006
Jacques Tardi, d'après Jean Vautrin. Le Cri du Peuple (Casterman)
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:41 da tarde
Etiquetas: França-Bélgica
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