26 de abril de 2006

The City. Frans Masereel (Dover)


Frans Masereel (1889-1972) é um desses artistas cuja obra traz problemas para a banda desenhada. Isto é, a sua inclusão na história e no corpus da banda desenhada pode ser entendida (tal como a de Max Ernst, Hokusai, Max Klinger, Philip Guston, entre outros) como uma espécie de tentativa de justificação e nobilitação da banda desenhada através da sua aproximação a “artistas mais sérios” (argumento dos detractores dessa inclusão, ou classicistas da banda desenhada) ou como um olhar flexível, questionador, em permanente reestruturação sobre a própria (impossível, como em todas as artes) definição de banda desenhada (argumento dos que o fazem, como eu). Os problemas levantados por Masereel são, porém, como veremos, superficiais. Foi ele pintor, ilustrador, gravador, com um grande e importante trabalho relacionado com movimentos de esquerda (sobretudo comunistas, anarquistas, e anti-belicistas; há uma edição do Manifesto Comunista de Marx e Engels com xilogravuras suas) durante a Primeira Guerra Mundial (e depois disso). Mas o que nos importa aqui, talvez mesmo o que mais importa “salvar do esquecimento” em relação ao trabalho de Masereel (se bem que as suas mais recentes edições alemãs e norte-americanas, como a presente, estejam em curso dessa recuperação) são os seus “romances em xilogravura”. [Talvez fosse interessante entrar pela história da xilogravura na Europa, que desde a sua emergência (ca. séculos XIV-XV) serviu propósitos populares e, rapidamente, de contestação político-social. Numa obra que reúna gravadores do século XX, por exemplo, é natural que a esmagadora maioria seja de artistas “de esquerda” (veja-se a Alemanha do regime nazi e compara-se a arte dos “pólos” políticos). Não haverá espaço para isso aqui, mas fica a noção e o contexto, no qual se inscreve o autor belga.]
Os romances em xilogravura de Masereel tratam-se de pequenos livros, com uma imagem por página, e com uma qualquer linha narrativa, bem simples por sinal, na qual é fácil detectar um ou uma protagonista, um ou vários espaços onde a acção decorrerá, outras personagens com a qual a central se relaciona, um tempo diegético organizado, etc. É por isso que disse antes ser um problema “superficial” a sua inclusão, já que tecnicamente é banda desenhada (se a reduzirmos a sequencialidade narrativa de imagens), e não levanta problemas de maior em termos estéticos como o poderá acontecer com, por exemplo, Terry Morgan, o The Cage de Martin Vaughn-James, o Poor Richard de P. Guston, ou o T.N.T. en Amérique de Jochen Gerner. Se bem que não se possa dizer que existam grandes herdeiros deste estilo ou modo de trabalho, talvez se possam ainda assim referenciar Lynd Ward, norte-americano, mas cujo trabalho é, a meu ver, um pouco mais maniqueísta e simplista que o de Masereel, e o polaco-inglês Andrzej Klimowski, mais artístico, e sobre o qual Domingos Isabelinho escreveu na Satélite Internacional no. 3. De Masereel, então, os exemplos mais famosos e acessíveis dessas suas obras são Uma História Sem Palavras (Geschichte ohne Worte /Story Without Words), O Meu Livro de Horas (Mein Stundenbuch), A Ideia (Die Idee/The Idea), O Sol (Die Sonne/The Sun) e, o presente livro, A Cidade (Die Stadt/The City). Todos rondando os anos 20, este sendo particularmente de 1925.
De entre estes títulos, na verdade, talvez A Cidade seja o menos linear, sem uma personagem única servindo quer de eixo narrativo quer de foco de atenção. É antes uma sucessão de planos sobre a cidade (abstractamente, se bem que alguns dos aspectos retratados apontem obviamente a uma metrópole ocidental, entre Berlim e Nova Iorque, Paris e Londres...). Se este meu texto vai aos solavancos, para trás e para diante na relação aproximativa ou distante da banda desenhada desta(s) obra(s) de Masereel, é porque se trata de uma imitatio do próprio movimento deste livro específico. Ele é, afinal, uma testemunha do vórtice em que as cidades modernas se começavam a tornar, aproximando-o assim das primeiríssimas páginas do romance de Robert Musil, O Homem sem Qualidades (publicado em 1930, mas escrito nos primeiros anos da década de 20), do famoso filme de Vertov, O Homem da Câmara de Filmar, de 1929, ou das primeiras cenas do de Fritz Lang, Metropolis, de 1927. Pois é esse o centro do olhar deste livro, a vida multímoda, diversa, cheia de várias velocidades, de níveis e matizes, desejos, trabalhos, entregas e desafios de uma metrópole, não “em mudança”, mas “de mudanças”. A presença da morte não é alheia a esta visão, tal como não é a crítica social, o sublinhar das disparidades, dos abismos que abre, e da esperança que resta.
Tudo isto através de uma chã e directa apresentação, sem quaisquer comentários ou transformações, ou até mesmo uma estruturação “progressiva” das imagens que pudesse ser interpretável de um modo mais fechado. Quer dizer, não é esta uma sequência encadeada de episódios, mas uma sucessão de “aspectos”. Uma questão que já tinha sido aqui debatida, a propósito de uma das obras de José Carlos Fernandes. O que não impede, de modo algum, que não possa emergir um sentido, uma força de afecção, enfim, até mesmo uma história. E essa história é a de todas as cidades modernas e, assim, a de todos os homens que nelas habitam e a compõem. Posted by Picasa

1 comentário:

andré lemos disse...

Quero ver isto!