11 de fevereiro de 2007

Popeye, vol. 1. E.C. Segar (Fantagraphics)

Ou A Recuperação da Memória, parte 1.A banda desenhada, já o disse noutras ocasiões, é uma arte sem memória. Esta é uma questão complexa, com várias vertentes, e fico feliz por ver que é também uma questão debatida por outros ensaístas dedicados à banda desenhada, de longe mais profícuos do que posso fazer num espaço destes (refiro-me a Thierry Groensteen e ao seu último livro). É verdade que teríamos de fazer distinções entre as tradições a que nos referimos com isso, já que em Portugal o funcionamento dessa memória é necessariamente diferente do que ocorre em França ou nos Estados Unidos, por razões e factores implicados de natureza social, económica, cultural, artística mais propriamente e, claro, histórica (sem cair no perigo de cair em discursos afectos à lógica do Geist nacional). O que pretendo apontar é uma diferenciação das outras artes logo à partida, pela relativa ignorância da sua própria história. (Mais)

Os cultores da banda desenhada, as mais das vezes (e afirmo-o com mais propriedade no caso português), quando se lançam na produção desta arte, ou partem de razões económicas ("têm de trabalhar") ou por intenções de expressão pessoal ("que não precisa de se informar num antes", por mais virtual que ele seja), e é raro que o façam informados pela História dessa mesma arte; fá-lo-ão por influência directa, neste ou naquela caso, pelas suas leituras de infância ou de adolescência, mas não com um conhecimento total. Um aspecto da sua sociabilização é a prática inexistência de escolas – no sentido literal - , como ocorre nos campos cinematográfico, teatral, literário, da pintura. Por outro lado, o próprio mercado particular da banda desenhada, tendo em conta que os seus produtos eram maioritariamente de consumo rápido e efémero, não se habituou (nem aos leitores) a terem acesso contínuo a certas obras. Isso mudaria com o advento dos álbuns no espaço europeu e, mais tarde, com os “trade paperbacks” (TPB) nos Estados Unidos. Penso que, porém, no espaço americano os TPB apenas serviram, ao princípio, para uma necessidade imediatamente mercantilista, lançar um produto de sucesso novamente no mercado, e não servindo de rememoração da banda desenhada. Algumas experiências antológicas nesse sentido tentaram colmatar essa falha, como os dois volumes do Smithsonian (The Smithsonian Collection of Newspaper Comics, de 1977, e A Smithsonian Book of Comic-Book Comics, de 1981). Mas apenas com o surgimento da Kitchen Sink, em associação com a Remco, passaria a moldar esse gesto – com os mesmos agentes, todavia, sublinhando-se a importância de Bill Blackbeard, também editor desta colecção do Thimble Theater, onde surgiria o famosíssimo marinheiro – de um modo mais coeso; a partir de 1989 saem os volumes de Little Nemo in Slumberland, de Krazy Kat, de Polly and Her Pals (todos da responsabilidade de Rick Marschall)... seria uma experiência curta, cortadas a meio (com repercussões noutros países, como aconteceu em Portugal, interrompendo as versões na Afrontamento). Muitas outras editoras tentariam o mesmo de maneiras mais ou menos sustentadas, mais ou menos felizes (nos Estados Unidos, julgo que os exemplos da Fantagraphics à SPEC Prod. me parecem exemplos, mesmo que muito distintos entre si). Mais recentemente, vimos experiências que parecem indicar conseguir levar os projectos não só até ao fim como de uma maneira cabalmente bem feita. São os casos das colecções de Peanuts, de Gasoline Alley, Dick Tracy, de Tatsumi, dos Moonin, Krazy Kat, e agora, o Popeye de Segar.

Desde o surgimento das séries de banda desenhada nos jornais norte-americanos no último quartel do século XIX até à sua cristalização na dicotomia entre tiras diárias e páginas de Domingo (usualmente desconexas, como no caso do Thimble Theatre de Segar), imediatamente antes do advento do comic book, a existência de narrativas mais continuadas (precisamente o que é conhecido como continuity) não foi totalmente desconhecida, se bem que não fosse a regra. A existência de um elenco largo e permanentemente em reescrita também não é totalmente inédito, como é explícito no texto de Blackbeard que acompanha este volume imenso; mas a felicidade que esta personagem chamada Popeye, secundária e tardia, da série de dez anos de Elzie Crisler Segar, viria a conhecer já é uma nota de diferença. É curioso reler no parágrafo que lhe é votado na antologia da Smithsonian que a figura de Popeye e toda a série Thimble Theater poderia não ser conhecida junto ao grande público, uma vez que não existiam muitas edições acessíveis da obra de Segar, ao contrário da praticamente contínua produção de desenhos animados, começando nos estúdios dos irmãos Fleischer até aos de Hanna e Barbera, mas que continham uma personagem humana, espiritual e comportamentalmente muito diferente daquele que fora idealizada e desenhada pelo seu criador original. A reedição da série propriamente dita foi feita anteriormente a este novo volume pela mesma casa editorial [vejam o primeiro comentário a este post], e é por essa razão que esta colecção que se avista se intitula Popeye, começando no preciso episódio narrativo (“Bernice, the whiffle hen”) em que o depois famoso marinheiro aparece pela primeira vez.

Como se verificou aquando do primeiro volume dos Peanuts, também aqui poderá acontecer uma “primeira” leitura que choca com a percepção criada após anos de exposição a um “outro” Popeye: e o que surge nas páginas deste livro é surpreendentemente fresco, redondo, humano, uma verdadeira persona. Bastará olhar para as primeiras aparições e as tiras que se seguem nos meses seguintes (que a existência deste livro reduz ao espaço de umas quantas páginas e uma hora de leitura) para ver a própria fisicalidade da personagem a evoluir a uma velocidade acentuada, mais ainda visível pela inactividade a esse nível das restantes. Ao acaso, a última tira da página 27 (a primeira em que surge), as da página 33, as da 60: o rosto perde a sua redondez inicial, e começa a “migrar” para baixo e para fora, até chegarmos ao icónico queixo proeminente e o nariz que o acompanha. A personalidade demora algum tempo a estabelecer-se, e é-o conseguido quer através da necessária interacção com as outras personagens – sejam as mais centrais (Castor, sobretudo, com quem se associa paulatinamente com elos profundos de uma amizade muito masculina) sejam as mais distantes (como os inimigos cujos queixos Popeye “adora tocar”) – quer através das pequenas crises que se vão instalando à medida que entramos em novos arcos diegéticos – a superstição, a ausência de medo em relação à dor física, a casmurrice insuportável, a gramática horrenda, a qual, longe da poeticidade livre de Krazy Kat ou da intricada e sofrida adaptação dos imigrantes de M. Gross, leva às últimas consequências o patois do apátrida marinheiro.

A consolidação dessa personalidade é, neste volume em particular, marcada a par e passo pela convivência curiosa de uma fiada de episódios que vai tocando em variadíssimos géneros narrativos num só espaço. Não me parece que séries anteriores a esta fizessem convergir tantos diferentes tons e géneros em sucessão. É certo que já tinham todos os géneros sido experimentados, mas usualmente mantinham-se num só território, mesmo os trabalhos mais genialmente conseguidos, como entre a tríade McKay-Herriman-Sterrett; noutros casos, mesmo Gasoline Alley, poderia haver uma breve concorrência entre um e outro género, mas a mescla não se aprofundaria muito mais... Pelo contrário, neste único volume temos uma flutuação entre o terror e o fantástico, a ficção científica (com a qual Segar experimenta também com a sub-série Sappo) e a banda desenhada de viagens, as rocambolescas aventuras espelham os momentos coruscantes de um humor rápido e certeiro (a primeiríssima frase de Popeye dá o mote a seguir pela série, mas é já ele glosa das personagens anteriores), existem momentos de verdadeira emoção humana – entre outros, as tiras de Outubro de 1930, na iminente morte de Popeye, trazem-nos cenas, que não deixando de ser fáceis, não deixam também de nos dar um belo retrato da amizade que une Castor Oyl e o marinheiro – e de pura parvoíce (a violência de Popeye, no seu “esmurrar primeiro, perguntar depois”). A velocidade com que passamos de um tom para o outro é também bastante reveladora do valor de Segar enquanto escritor. Tendo em conta estarmos a ler tiras dos anos 1929 e 1930, o valor que o valor do dinheiro assume nas estórias (não é gralha, disse mesmo “o valor do valor”) é bastante invulgar, pois vale mas não vale, é como se as fortunas fossem tão volúveis como o próprio valor das tiras de banda desenhada no seu tempo...

O desenho de Segar é muito simples, dentro de uma mesma escola de desenhistas de um Bud Fisher ou de um Ed Wheelan, mas ainda mais sintético. Mesmo assim, com esses materiais reduzidos, é capaz de criar personagens tão inexpressivas (de propósito) como Julius J. Herringbone ou tão espatafúrdias como o detective Glim, do mesmo episódio.
Se as páginas de Domingo, a cores, não o tornam particularmente interessante em relação a outros artistas do seu tempo ou imediatamente anteriores, é nas tiras diárias que surgem algumas surpresas, nomeadamente a gestão de vinhetas silenciosas (nunca nos mesmos momentos da tira, alterando-se conforme as necessidades) e dos textos (por vezes enchendo mesmo toda uma vinheta, para despertar o leitor directamente a uma atitude de recepção diferente); as estratégias de focalização e “foras de cena” que compassam acções rápidas, mas sublinham a tensão possível (veja-se a terceira tira da página 42); e os reenquadramentos que tornam o que poderia ser uma cena indolente e aborrecida numa pequena experiência visual (como o momento em que Castor e Popeye se aproximam de bote do Black Barnacle, entre as páginas 75 e 77).

Popeye será um protótipo do que seriam os super-heróis surgidos no final dos anos 30, mas com muito mais personalidade e, obviamente, humor. Sendo uma personagem de ficção, é dessas forças que proverbialmente se tornam forças da natureza no interior de um universo criativo e que acabam por obrigar os seus autores a rumar noutra direcção daquela que pensavam poder seguir ao princípio. Tal qual como essoutra personagem literária, Yahvé, também casmurra, bruta e sem grande paciência para sociabilizar segundo as regras dos demais; ambas, afinal, têm a resposta perfeita com a qual justificam essa possibilidade de independência que ganharam, Popeye repetindo-o a partir de certo período, e “Deus” em Êxodo, 3:14: “Eu sou o que sou”.

1 comentário:

Anónimo disse...

Já agora Pedro: esta é a segunda vez que a Fantagraphics publica a parte da série _Thimble Theatre_ que começa no aparecimento da personagem Popeye (ou um pouco antes). A primeira tem quatro volumes com as pranchas dominicais a preto e branco (1984). Continua com mais sete volumes que reimprimem as tiras diárias (o último é de 1990 e tem uma introdução de Donald Phelps).
http://www.lib.msu.edu/comics/rri/trri/thig.htm