Permitam-me uma larga curva antes de chegarmos à obra a discutir. Jorge Luís Borges escreveu algures que até a obra literária mais medíocre ou péssima poderia encerrar em si a mais memorável frase. Mas o contrário é também susceptível. Mesmo na mais portentosa e sublime obra ou autor se poderá descerrar uma frase desastrosa ou uma malíssima metáfora. Não obstante o incomensurável e indiscutível valor da escrita de António Lobo Antunes, jamais me pude esquecer de uma terrível frase encontrada num dos seus romances (Auto dos Danados): “A criada (...) introduziu duas cartas de pão de forma na frincha de uma caixa de correio da torradeira”. Talvez o que falhe aqui seja o facto de que esta é uma metáfora metonímica pífia, na qual apesar de existir contiguidade entre cada par de elementos que compõem cada um dos termos, essa aproximação acaba por não servir a nenhum fim ulterior, perdendo-se apenas na graçola dos gestos e parecenças físicas: o sentido esbarra num beco sem saída.
A antropomorfização dos objectos do quotidiano, a comparação das suas “vidas” à nossa, é algo de relativa facilidade, em primeiro lugar gráfica – basta acrescentar dois “olhos” (por mais simples que sejam, e nisto de Töpffer a McCloud foram muitos os autores que o debateram) – mas também em termos existenciais, já que à medida que as tecnologias avançam também as metáforas para a nossa condição a acompanham (para Platão a alma era uma tabuleta de cera, para Descartes falar-se-ia de um relógio, hoje referimo-nos aos computadores como explicação da máquina humana). E a nossa convivência diária e burguesa e confortável com os electrodomésticos acabam por fornecer a estas pequenas máquinas uma espécie de intimidade familiar que outros objectos não conhecem (“o meu carro nunca me viu de pijama”, diria Clarice fractal). Maria João Worm leva essa intimidade até às últimas consequências, mesclando os dois termos da comparação – os electrodomésticos e esse monstro centicéfalo a que damos o nome de nós – até ao ponto do indistinto: isto é, não sabemos se são as máquinas que se antropomorfizam ou se são as relações humanas que se humanizam. Esse carácter indistinto ganha corpo logo no título, uma vez que ficamos numa espécie de dúvida em saber qual das palavras assume a qualidade de substantivo e qual a de adjectivo, ou se são ambas substantivos ou ambas adjectivos.
O que se encontra no interior desta publicação – um desdobrável com as duas faces impressas – é uma quantidade de anúncios classificados nas quais este ou aquele electrodoméstico oferece(-se), vende(-se), compra(-se), troca(-se) ou procura(-se). Estes anúncios fazem-se acompanhar por vezes por imagens, linogravuras, mas quase sempre os textos têm uma qualidade poética quer do ponto de vista material (as variadíssimas rimas internas) quer do ponto de vista de uma nova realidade aberta ao mundo: “Ventoinha de tecto/cheia de paixão,/confessa que se sente/1 hélice de avião” ou “Máquina de lavar a roupa,/c/velocidade profissional a enxaguar/anseia por 1 soalho que a mantenha no lugar”. Desta feita, parece que Maria João Worm penetra no mundo dos Poetas sem qualidades, título de uma antologia de Manuel de Freitas (pela Averno, 2002) que reúne poetas tais como Vindeirinho, Nuno Moura, Ana Paula Inácio, mas numa veia de humor que a aproxima também de outros poetas, com qualidades “outras”, como e sobretudo Adília Lopes. Como se pelo mais rasteiro “lá de casa” fosse possível aceder ao mais interior das moções humanas – e é. As relações entre as imagens e os textos são a maioria das vezes ilustrativas, nalguns casos adivinhando-se um laivo de um rosto perdido nas linhas sobre a máquina (veja-se o aspirador, o esquentador, o par entre a criada e a enceradora, o reflexo na juke box), e num caso provocando-se um desarranjo tornado surpresa (o “busca-pólos”). Mas é a relação de todos os elementos no próprio objecto, no modo como nos obriga a manuseá-lo, dobrá-lo, virá-lo, lê-lo e contemplá-lo que nos coloca numa certa predisposição de leitura meramente informativa e rápida, predisposição a qual, por sua vez, é divertida em ambos os sentidos, “alegrar” e “desviar”: pois essa é uma acção una, que se consubstancia na descoberta de novos súbitos significados nas relações proporcionadas por estes “textos”.
O peso da mundaneidade destas pequenas máquinas não impede que os sonhos de uma alternativa mais romântica, aquilo a que se dá o nome genérico de “os desejos”, ganhem uma leveza tal que a sua simples enunciação é já uma forma de os realizar: “Ventoinha/de tecto bucólica,/deseja subir ao monte e/transformar-se em eólica”.
Nota: agradecimentos a Maria João Worm, pela oferta da publicação.
6 de dezembro de 2007
Electrodomésticos Classificados. Maria João Worm (auto-edição)
Publicada por Pedro Moura à(s) 3:13 da tarde
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1 comentário:
Muitos destes textos mereciam passar da efemeridade bloguística ao clássico suporte de papel, vulgo livro. Tenho a esperança de que o autor consiga editor, ou que, em última análise, se transforme em editautor. No ínfimo mundo da banda desenhada, é uma atitude recorrente.
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