9 de março de 2008

On m’appelle Avalanche. Francis Masse (L’Association)

Este livro faz parte da política de recuperação da memória que certos autores contemporâneos desejam (re)criar para nela se inscreverem, como já havíamos discutido anteriormente.
Francis Masse pertence a uma geração de autores que, ao contrário das que a precederam, já não havia sido exposta às grandes dicotomias culturais de eras anteriores, às “grandes narrativas” no dizer do pós-modernismo teórico, mas pelo contrário à emergência das primeiras “petit récits” e, consequência ou condição desse mesmo tempo da sua idade adulta, encontraria vazão em várias publicações com espaço para uma banda desenhada também ela adulta, descomprometida em relação ao seu valor intrínseco, estético, mas bem mais comprometido para com a sociedade em que se inseria (cuja lista poderia começar na Pilote, e nas que se seguiriam, até à Métal Hurlant, onde seria publicado este l’Avalanche..., depois de um intervalo da criação de banda desenhada de Masse entre 1977 e 1981).
Masse não é um autor de uma empatia fácil. Apesar de ter partilhado espaço e tempo com autores que seriam depois reconhecidos como incontornáveis, a escolha do grande público acabaria por ser pautada mais pelos aspectos da espetacularidade visual e dos ligeiros elos ao mundo – o que sucederia com, por exemplo, Bilal ou Moebius – do que por um entendimento dos valores mais estranhos e, por isso mesmo, que viriam a frutificar mais tarde – Masse, mas igualmente Chantal Montellier. Não é por acaso que agrupo os dois primeiros autores para os opor, neste ponto de argumentação, com estoutros dois. É que os primeiros (antes ou fora das colaborações com autores mais informados politicamente como Pierre Christin e Alejandro Jodorowsky) procuram uma espécie de escapismo, por mais belo e idiossincrático que seja, mas os segundos observam o mundo e devolvem-no ou com um acerbo realismo (Montellier) ou com um mordaz absurdo (Masse).
Como já havia debatido em consideração do absurdo, como pólo entre o cómico e o angustiante (com Mademoiselle Takada) e pacto entre o universo ficcional e o histórico que partilhamos (com Hanashippanashi), compreender-se-á a afirmação de que Masse, através da sua ridicularização de todos e quaisquer aspectos da sociedade contemporânea - exacerbando os seus tiques, agravando os seus problemas até às últimas consequências (a anulação), colocando num ponto de fuga uma situação caricata até se tornar dolorosa -, ergue também uma obra sob o signo do absurdo. Nesse sentido, inscrevem-se na tradição do artista francês autores como Ben Katchor ou José Carlos Fernandes, se bem que Masse procure diluir mais contundentemente os elos com o mundo real. Ou melhor, elabore um complicado jogo de distorção e reflexão, de mimese e de desestruturação.
Acompanhamos uma personagem que serve de sinal da ingenuidade e da curiosidade perante uma nova realidade (para ele mesmo): l’Avalanche parece um “selvagem” em primeiros contacto com a “Civilização”, mas uma civilização que parece ter abandonado um cume de desenvolvimento técnico, talvez por que tê-lo atingido significasse o fim de outros dos seus fundamentos e a tenha levado a uma primeira derrocada. O vazio dessa desaparição das máquinas (fantasmas perseguidos por uma trupe de nostálgicos meio-inertes meio-inanes), no entanto, deu lugar a uma espécie de demanda, na qual l’Avalanche se vem imiscuir num momento – naturalmente previsto pela graça ficcional – chave. Paradoxalmente, essa ausência de tecnologia maquínica não se reflecte na aparente e crescente burocratização intricada deste mundo, pois existem outros modos da matéria ser regida e outros modos de criar e impor regras, as quais afectam mesmo os objectos (afinal, não-inanimados). Uma crítica aos muros erguidos pelas repartições públicas, como é típico dos escritores do absurdo, elabora-se aqui também. Mas na esteira de escritores ingleses como Swift ou Defoe, essa crítica estende-se ao todo do conceito mais ou menos consensual de “civilização” ocidental e moderno. Quer dizer, é através de um hipotético (ou ficcional) Outro criticado que se reflectirá a crítica sobre o Eu (cujo avatar absurdo surge na exacerbação mencionada atrás). Esta é uma das forças da obra de Francis Masse: é que com estas menores ou maiores histórias cuja sinopse pareceria elaborar uma ópera bufa de bolso, abre um sulco no qual cabem sentidos multímodos e relevantes.
Uma dessas linhas possíveis, ainda que ténues, é o pensar da ontologia da própria banda desenhada. Se numa pequena história, da série Les Deux du Balcon, expõe o emprego a neogenia na banda desenhada e animação da Disney, e noutras explora a materialidade da banda desenhada enquanto passível de actuar no próprio universo ficcional das suas personagens (como Winsor McCay [v. comentários abaixo; e obrigado!] havia feito bastas vezes), em l’Avalanche não deixam de surgir casos pontuais dessa potencialidade da linguagem desta arte: por exemplo, balões de fala que se comportam como objectos reais no mundo representado, os cenários labirínticos (piranésicos, citado textualmente) revelados como não sendo senão finíssimas camadas de papel, o que são literalmente.
Primeiro esforço de uma longa narrativa, Masse não abdica da amplificação sígnica – característica que jamais é deixada esquecida em todos os textos de apresentação da sua obra – que vingava nas suas histórias mais curtas. As suas personagens são desenhadas com uma forte inscrição nos pequenos desvios do anatomicamente perfeito para dar espaço à caricatura, a um dinamismo dos corpos que se torna cómica, a uma expressividade na orla do histriónico, do ridículo... Masse é herdeiro de Louis-Léopold Boilly. Acrescente-se à representação destas personagens os mais visíveis aspectos do absurdo: l’Avalanche, a personagem principal, na esteira do chavão do “índigena-com-osso-atravessando-o-nariz”, substitui esse osso por um guiador de bicicleta (e não é uma bicicleta qualquer, mas uma bicicleta mística: perguntamo-nos se Grant Morrison terá lido Masse, ou se Masse terá bebido da mesma fonte que Morrison: a experiência de Albert Hofmann). Num sonho, é um guiador de mota. Além do aspecto da expressividade, os corpos são sempre representados com uma substancial atenção para as curvaturas, dobras, os tecidos, traços que são corroborados e intensificados pelo emprego de um complexo e variado jogo de sombras e manchas, a que chega com a utilização de, parece-me, películas autocolantes de tramas a meio-tom (que eram prática mais corrente na época a.P., ou “antes-de-Photoshop”; material comercializado pela Mecanorna ou Letraset), com graus variados dos espaços entre os pontinhos negros, provocando áreas ora de maior ora de menor densidade de sombras (obrigado ao António Gomes/Barbara says... pelos esclarecimentos técnicos). Nalguns locais entende-se o recorte que se segue para criar a trama: vejam por exemplo a mancha em torno do pobre cocar do protagonista.
Nas paisagens urbanas, Masse recorre ainda ao que parecem ser colagens, de fachadas de edifícios, de plantas de cidade, de variadas ilustrações de pesadas tramas do século XIX para criar os cenários onde as personagens deambulam ou se perdem. Aqui cumpre uma aproximação ao trabalho de Max Ernst, ainda que o propósito de Masse seja mais atreito a uma narratividade controlada e centrada do que a do artista surrealista. E os momentos em que estas opções estilísticas se suspendem – o brevíssimo sonho de l’Avalanche no “automóvel virtual”, em que surgem personagens estilizadas de um modo muito diverso, de um, digamos, “aerodinamismo” simplificado; ou o maior, sobre o ballet da escavadora, em que o uso das películas de tramas é mais restringido e passa a haver um jogo de maior contraste entre brancos e negros que recorda o seu contemporâneo Varenne – apenas sublinham o valor delas mesmas enquanto representativas do mundo diegético que instituem.
Um outro domínio dessa amplificação sígnica encontra-se no verbo. A sabedoria desta ou daquela personagem surge textualmente como um aglomerar impossível de termos técnicos ou eruditos cuja convivência torna esses mesmos termos, que se desejam indicar, não claros e específicos mas cada vez mais opacos. A linguagem utilizada pelas personagens nos diálogos ou legendas parece desejar uma clareza absoluta, desdobrando-se em explicações e floreados que as torna igualmente um bloco de peso. Por exemplo, quando ‘Avalanche é transportado como se se tratasse de uma situação não prevista pela estranha administração da cidade que visita, escuta os burburinhos dos corredores: “Malheureusement, je n’entendais plus que quelques glapissements nasillards parsemés de barrissements bubulés, qui me parvenaient étouffés par les épaisses parois d’orichalque plastifié à la feuille du bureau”. “A cobiça rompe o saco”, apetece dizer. Se Jacobs era famoso pelos seus visualmente pesados balões pairando sobre as cabeças das personagens, Masse opta por um peso interno, não só da ordem do significado como também da sua forma escrita, já que a oscilação entre maiúsculas e minúsculas – mas regrada – torna a leitura algo irregular no que diz respeito ao ritmo. O pequeno rato de corda que fala um francês mais límpido (para nós) torna-se um ecrã para as restantes personagens, e é visto como quem não atinge os complexos jogos de palavras da língua “normal”.
O desmoronamento final de toda a sociedade que l’Avalanche visita e as lições que ele aprende acabam por se tornar a “moral” ofertada aos leitores – movido pelo interesse num “poder” enquanto conceito abstracto e apetecível, ávido por conquistar “um lugar ao Sol” ou um “papel relevante na História”, tudo o que ele testemunha e não testemunha (uma vez que há momentos da narrativa em que a focalização passa a ser de um narrador externo e não do protagonista) acaba por o fazer entender que esse conceito é demasiado fluido para ser conquistado de uma forma corpórea, violenta – “selvagem” – e que é apenas através de uma vontade discursiva – “civilizada” – que se acaba por mostrar ter poder. Outra forma de colocar esta questão é a seguinte: toda aquela vontade do leitor conquistar numa leitura de banda desenhada uma mera história empolgante a partir da qual extrairá mais um pequeno bloco para adicionar à sua imaginação de fantasias, nelas ficará enredado; aquele que mergulhar e observar as especificidades com que uma obra se pode constituir e respirar aprenderá, seguramente, a entender e, quem sabe, procurar quais os seus próprios elementos a construir.
[Presume-se que a editora L’Association continue - tal como faz com Forest e Gébé (apesar de partilhar este com outras editoras na “redescoberta”) - a editar outros títulos de Francis Masse.]

7 comentários:

Anónimo disse...

Winsor (como? terei lido bem?) McKay?

Pedro Moura disse...

Desculpe, não percebo o seu comentário ou pergunta.
Pedro Moura

Isabelinho disse...

Sem querer passar por anónimo, parece-me que se trata de um problema de grafia. A minha opinião é que Winsor assinava "McCay" como nome artístico. Era uma estratégia inteligente para se tornar único entre os muitos McKay. Chegou até a inventar (suponho) uma história para explicar a adopção, pelo pai, se me lembro correctamente, da grafia diferente. Que provas tenho? Apenas uma: num dos filmes animados da cassette (ignoro se existe DVD) "Animation Legend: Winsor McCay" pode ler-se, num separador a que o público não deveria ter acesso, "McKay". Já não me lembro é se lá está "Windsor" ou a forma igualmente estranha "Winsor".

Isabelinho disse...

Fui verificar e, de facto, existe o tal DVD.

Pedro Moura disse...

Olá, Domingos Isabelinho.
Ainda não percebi, foste tu quem deixaste o comentário "anónimo"? Duvido. Em todo o caso, honestamente não tinha percebido qual era o problema apontado nessa nota, até ler tudo com mais atenção. Sim, errei: escreve-se "McCay". Erro meu recorrente, como verificarão, e em relação ao qual deixo as minhas desculpas.
Se era uma questão de grafia entre "Windsor" e "Winsor", qualquer rápida consulta de todos os livros que editaram trabalhos deste autor grafam o primeiro nome como "Winsor". Em todo o caso, de acordo com o monumental livro de John Canemaker, o nome completo dele, aquando do baptismo, era Zenas Winsor McKay, tal como o estou a grafar. Foi o próprio pai quem resolveu mudar para "McCay" por causa de rivalidades entre clãs escoceses. E, mais tarde, o artista abandonou o "Zenas". (V. "Winsor McCay. His life and Art", pp. 21-22). Um dos nomes artísticos que empregou foi o de "Silas", mas "Winsor McCay" é mesmo o seu nome.
Mais uma vez, as minhas desculpas pelo erro de distracção e ignorância.
Obrigado,
Pedro Moura

Isabelinho disse...

Claro que não sou eu o "anónimo"; só extrapolei a partir do comentário.
A história relatada no livro de Canemaker parece-me bastante suspeita, mas nunca se sabe, não é verdade?...
"Winsor" pode ser apenas um erro ortográfico, mas esses erros ficam. Também pode acontecer que o erro tenha acontecido muitas geracões atrás. Ou não é (foi) erro nenhum.
Recentemente descobriu-se (Brian M. Kane) que o que está na certidão de nascimento de Hal Foster é "Rudolf" e não "Rudolph". Isto porque um antepassado de Foster era alemão: Leonard Christofer Rudolf.

Isabelinho disse...

Quer dizer: Leonard Christofer Rudolf é o antepassado de Foster mais antigo que o livro de Brian M. Kane regista. Suponho que, antes dele, houve outros Rudolfs da mesma família. :)