A propósito da vinda deste artista ao Porto, para uma master class e uma exposição no espaço Dama Aflita, comissariado por Paulo Patrício (que tem aqui um informativo texto sobre Atkinson), a qual não pude visitar, chegaram-me às mãos estas suas quatro publicações, editadas pela chancela do próprio: Reward, Return whence you came (ambas de 2008), Zero Gravity e Invasion/Invasão (ambas de 2009).
A primeira ideia que me vem à cabeça é aliá-lo a artistas como aqueles encontrados na Fukt ou em inúmeras outras publicações que tomam o desenho não apenas como disciplina livre como liberta de todo um manancial de regras que lhe haviam sido impostas ao longo da sua vida e existência académica, secundarizada ou até mesmo encalhada num emprego galerístico (leia-se, mercantil). Todavia, a segunda ordem de ideias ao ver esta sucessão de desenhos é a sua falta de talento, o desleixo com que são feitos e compostos, até mesmo a feiura particular. Enfim, a sua falta de qualidades.
Aparentemente. Esta “certa falta de qualidades” observa-se em nomes tão díspares no seu peso e fama como os de David Shrigley, Ben Jones, Paper Rad ou Mauro Cerqueira. Mas esta natureza “sem qualidades” deve ser entendida como todo um programa, e não como uma fraqueza perante modelos mais disseminados. Segundo as lições de Manuel de Freitas, no prefácio que fez à sua antologia Poetas sem qualidades (Averno, 2002), que esperamos não abusar na sua aplicação ao desenho, entende-se essa natureza como que uma continuidade do que havia sido apresentado como modernidade por Baudelaire, sobretudo em O Pintor da Vida Moderna (texto no qual se discute a obra de Constantin Guys, que seria visto antes como um “ilustrador” ou mesmo um pintor “sem qualidades”): “o transitório, o fugidio, o contingente”. Repare-se que a expressão é “sem qualidades” e não “sem qualidade”, uma vez que o plural aponta para uma multifacetada e mutável natureza de permanente recriação, a “beleza passageira, fugaz, da vida presente” entrevista nos desenhos de Guys, pelo texto de Baudelaire.
É de notar que nesse texto, a modernidade é vista como “a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável”, ideia articulada com a noção da Beleza, para Baudelaire, ser constituída por um elemento hodierno, mutável, e outro eterno, mas de um modo indissociável (em detrimento da sua total dissolução). A atenção e a execução de Atkinson está feita de modo a captar essa natureza fugidia, sendo os próprios materiais e linhas que faz fugidios, sendo não só uma tradução excelente dessa modernidade veloz, como eventualmente abrindo caminho a essa outra metade da beleza. Nada tem, portanto, a ver com rodriguinhos, ou na observação desejante de apanhar os navios de uma qualquer fama ou glória – se bem que a máquina do mundo e do mercado da arte tenha hoje outras antenas e uma voracidade que engloba mesmo estes desvios... Tem a ver, e aqui de novo retornamos a Manuel de Freitas, a uma certa ideia de “comunicação” (que menos terá a ver com as teorias académicas do que com a ideia poética de vasos despejando-se uns nos outros).
Como víramos a propósito de muitos outros autores, importa portanto olhar estas publicações em termos de taxionomia, que objectos resguardam no seu interior, que continuidades, que séries, que corpos desenham no seu conjunto. O que vemos são edifícios e figuras geométricas (drasticamente retorcidos), objectos simples (as ferramentas de trabalho, como se vê em Zero Gravity?), rostos de personagens anónimas ou de famosos desfigurados (notoriamente por um bigodinho à Hitler), criaturas mais estranhas ou pequenos monstros, apontamentos de viagem. Tudo isto feito em papel por vezes timbrado, ou arrancado a cadernos ou algo de um uso anterior. Não faltam igualmente colagens ou reaproveitamentos de material gráfico, que tanto pode ser entendido como uma reutilização irónica comentando sobre esses mesmos produtos anunciados como uma revisitação da estratégia artística do readymade, da reapropriação, ou simplesmente de uma reavaliação dos possíveis trânsitos do imaginário.
Invasion/Invasão é o maior livro, assim como aquele que se apresenta com uma forma mais acabada e rica (e mais caro, claro), provavelmente por ter sido feito por ocasião da exposição na Dama Aflita. Apesar das tipologias dos objectos representados não diferirem em muito das restantes publicações aqui indicadas, a esmagadora maioria dos desenhos apresenta-se aparentemente em papel branco “limpo”, e as figuras flutuam mais livremente nessa mancha desimpedida, havendo também uma maior número de desenhos do que parecem ser diários de observação real. Mas as mesmas tipologias livres continuam a digladiar-se por um espaço de privilégio, sem o conseguirem.
Alguns desenhos oscilam entre o mais rápido carácter do esboço e a nervosa linha do rabisco distraído, outros apresentam linhas mais seguras e buscadoras da nitidez para com a representação, ao ponto do reconhecimento, um dado objecto mais ou menos complexo (um afia-lápis, uma câmara fotográfica, uma paragem de autocarro, uma basílica, um rosto famoso). Alguns outros, a marcador grosso, fazem estruturas hipnóticas (reminiscentes ou irmanáveis a C.F.), ou padrões, outras acompanham-se de frases ora curtas ora maiores, mas sempre como se fossem máximas que são tão vazias quanto aparentemente importantes: “cordless kettles are better than corded kettles” (e daí, talvez se aprenda algo...). Alguns desenhos repetem-se de uma publicação a outra, com variações, ou em cor diferente. Alguns... Poder-se-ia continuar este exercício, sempre com o qualificativo “alguns”, jamais havendo uma consolidação da totalidade, ou sequer da maioria, uma espécie de corpo comum, de coerência, pois não é nem o primeiro nem a segunda o que se busca, mas uma imediata tradução, como vimos, das sensações modernas fugidias, contingentes, das impressões momentâneas, em marcas perenes, de uma beleza dúplice, mas que devolvem sempre essa mesma fugacidade.
Nota: agradecimentos a Miguel Carneiro, por ter servido de pombo-correio.
18 de junho de 2009
Várias publicações. Craig Atkinson (Café Royal)
Publicada por Pedro Moura à(s) 9:48 da manhã
Etiquetas: Territórios contíguos
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1 comentário:
De assinalar que os artigos, já de si, contaminam de curiosidade os trabalhos referidos (por uma, outra ou todas as razões, que se prendem também com as orientações pessoais de cada um), embora, como já foi dito, estejam pensados tendo em conta o conhecimento prévio do objecto de análise por parte do leitor, que será sempre preferível.
De qualquer modo, a opção recente de incluir um vídeo síntese das obras físicas em questão é bem-vinda e pode de facto ajudar a acompanhar o texto de uma forma um pouco mais balançada, no que diz respeito a um contacto (ainda que distante) com o teor visual do que é analisado.
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