17 de novembro de 2009

Animalário Universal do Professor Revillod. Javier Saéz Castán e Miguel Murugarren (Orfeu Mini)


Este é mais um daqueles livros que remete à esfera dos dispositivos a que chamei, não sem alguma infelicidade, “livros mãocânicos”, a propósito d'O Livro Inclinado de Newell, editado pela mesma casa. E mais uma vez recorro a essa noção, e ao que está implicado, para ler este livro.
Todos os livros necessitam das mãos para serem lidos, naturalmente. E pouco importa se estamos a falar de livros em rolos, em codex, se de livros com aplicações mecânicas que expandem o grau e eficácia de informação, como as volvelles dos livros de Rámon Lull ou de Petrus Apianus, ou se de um moderno ebook lido num qualquer dispositivo electrónico. Mas há livros em que o papel das mãos é mais do que permitir o aparecimento da superfície a ler, e os próprios gestos manuais se tornam extensão e condição de possibilidade óptica, e de leitura. É o que sucede num livro como Animalário Universal. A mão é uma extensão do olho, o olho da mão, um qualificando o outro: constrói-se um dispositivo unido e não meramente complementar, simbiótico ou mútuo. Uno. Virar as páginas, ou partes, ou placas, ou lâminas é o mesmo que lê-las. E até mesmo, como veremos, escrevê-as ou desenhá-las.
Este tipo de livros com as ilustrações cortadas em lâminas amovíveis é algo que foi experimentado bastas vezes noutras cirscunstâncias, quer na esfera infantil (os livros da norte-americana McLoughlin Bros., no século XIX), quer para fins de promoção comercial (como este livro o Kellog's Funny Jungleland Moving Pictures), quer ainda como continuidade da obra expressiva dos artistas envolvidos (penso em Facetasm, da colaboração de Gary Panter e Richard Sala). Mas Animalário Universal traz outros factores à colação. No que diz respeito à matéria, lembrar-nos-á seguramente todos e quaisquer bestiários existentes na história humana, dos medievais aos modernos (as páginas dos Génesis e dos Apocalipses, o manuscrito Ashmole, o Reiner Musterbuch, o Abcedario-Bestiario de Santo Martino, as obras de Edward Topsell a Gaspar Schott, algumas cenas do Museum of Wonders, de Frederick Opper, os bicharocos de Maurice Sendak, e um longo e cheio etc.). Aquilo que este Animalário guarda desses compêndios é o facto de dar, pelo menos em termos do plano da representação, um idêntico grau de cidadania quer aos animais observáveis, domésticos, de cada dia, quer aos míticos, herdados dos mitos da Antiguidade ou dos contos de marinheiros.
Mas há que fazer uma especificação. É que, se nos bestiários os animais fantásticos – a mantícora, a sereia, o cinocéfalo, o unicórnio, o basilisco – se apresentam lado a lado no plano da representação ao cão e ao morcego, o pato e o elefante, a ovelha e o crocodilo, já em Animalário Universal os planos de apresentação e representação estão diferenciados. As imagens partem de planos coesos e normativos, ilustrações representando à vez o elefante, a porca, o tatu, a gralha, até ao coelacanto (celacanto). Todos animais, portanto, que partilham a existência actual connosco (mesmo o último peixe, que é uma espécie de retorno ao passado no imaginário evolutivo, uma sobrevivência do tempo mítico, transformando-o num curiosíssimo ponto final neste bestiário). Apenas quando o leitor folheia as lâminas desencontradamente, e passa a misturar os elementos que compõem essas imagens e animais, é que passam a surgir as criaturas fantásticas, do pulto cangato, ao tiliguru, da grapa doutro ao cacacanto...
Ou seja, é o gesto de leitura do leitor-espectador, a sua progressão desirmanada e caótica, que provoca, a partir do plano da “normalidade” dos animais existentes e sua nomenclatura, a emergência destas criaturas compósitas, destes monstros, e do seu desarranjo nominal que leva à própria recriação da linguagem e suas categorias, como se se estivesse a rever o acto original adâmico: renomear é recriar (poder-se-ia explorar esta linha ainda mais tendo em conta que os nomes são divididos em sílabas, tal como os corpos em outras tantas “unidades mínimas”).
Mais do que um bestiário à moda antiga, um repositório de formas, de mitos passados, de histórias fechadas, o que se provoca aqui é a potencialização do contributo do leitor para o surgimento de “4066 feras diferentes” (um pouco como o livro de Quenau Cent mille milliard de poèmes, com os seus dez sonetos potenciados pelos cruzamentos permitidos pelas tiras). Se pensarmos em Borges, será menos aparentado com o seu Manual de Zoología Fantástica (escrito com Margarita Guerrero e editado em 1957 precisamente pelo Fondo de Cultura Económica, que também editou a versão original deste mesmo livro) do que com aquela taxonomia prevista no Emporio celestial de conocimientos benévolos , em que “los animales se dividen en (a) pertenecientes al Emperador, (b) embalsamados, (c) amaestrados, (d) lechones, (e) sirenas, (f) fabulosos, (g) perros sueltos, (h) incluidos en esta clasificación, (i) que se agitan como locos, (j) innumerables, (k) dibujados con un pincel finísimo de pelo de camello, (1) etcétera, (m) que acaban de romper el jarrón, (n) que de lejos parecen moscas.” (em “El idioma analítico de John Wilkins”). Da ordem restrita e zoo-lógica entramos num campo de permutação livre e ludo-lógica.
Outras experiências análogas, e até mesmo encontrando-se afinidades a nível do estilo e técnica dos desenhos de Castán, encontrar-se-ão, por exemplo, nas repetidas “metamorfoses” de animais de Grandville ou no Bestiario Moderno ou Cos’è un mostro, de Domenico Gnoli (de 1968). Mas o gesto de Gnoli é o de amalgamar criaturas existentes num só corpo, de um modo indistrinçável e concluído. O valor deste livro é passar a responsabilidade, digamos assim, da construção dos monstros, para o seu leitor, o qual, pelas razões apontadas acima, tem obrigatoriamente de assumir um papel activo. Não há como ter um papel meramente passivo na sua leitura (o qual, de qualquer forma, é impossível em termos absolutos, a passividade na leitura é a não-leitura e qualquer grau de leitura é logo à partida activo, interactivo, dialogante, imanente ao momento e transcendental às circunstâncias a um só tempo, etc.).
O enquadramento ficcional das viagens e descobertas do professor Revillod reveste-se daqueles pequenos truques apócrifos a que nos habituámos de Verne a José Carlos Fernandes, mas que em pouco fortalecem os laços intrínsecos do que o livro já encerra. É relativamente secundário, ou um apêndice. A intervenção textual, presumimos que toda de Murugarren, não se cinge somente às sílabas que compõem os nomes dos animais de base (ELE-FAN-TE ou CA-SU-AR) e os transformados (ELE-SU-VI), como ainda às descrições biológicas associadas a cada parte do animal, que poderá levar também a associações paradoxais: “pernilongo singular/de corpo adiposo/do mundo civilizado” ou “animalito gracioso/de porte majestoso/companheiro do homem”. Em si mesmas pequenos exercícios de escrita maquínica, de acasos poéticos e sugestivos, são ambas ordens de recombinação sinais do gesto adâmico sempre repetido.
O livro em si é como o Rubicão, correndo de uma forma mesmo que não o atravessemos. Mas ao abri-lo, alea jacta est.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

3 comentários:

David Soares disse...

Já o vi numa livraria. É excelente! Sou um apaixonado por este tipo de livros. Belo texto, o teu. Gostei.

Abraço!
David

daniela disse...

só falta a referência à música que acompanha o vídeo - pura curiosidade.

Pedro Moura disse...

Olá, David, obrigado. Um dia destes tens de pensar em fazer um livro... para crianças.
Daniela, quem seguir o link do vídeo para o Youtube tem lá sempre mais informações. A música é a "Valsa" dos portugueses Mola Dudle (todos os sons são dessa música).