9 de abril de 2012

Morro da Favela. André Diniz (Barba Negra)

Apesar de termos apontado apenas André Diniz como autor deste livro, seguindo as instruções na capa, na verdade o nome de Maurício Hora deveria ocupar lugar central igualmente, e não só como surge, contribuindo com as suas fotografias. Apesar de em nenhum momento se utilizarem estratégias declarativas afirmando que se trata de uma biografia, são os elementos paratextuais que definem Morro da Favela enquanto tal. Contando a história de Maurício Hora por ele mesmo, utilizando a primeira pessoa e não revelando a pessoa e o processo que transforma essa história em mecanismos gráficos, André Diniz, com este livro, inscreve-se num território a que demos nome, noutras circunstâncias, de “memórias alheias”.
Em Je est un autre. L’Autobiographie, de la littérature aux médias, Philippe Lejeune revê parte do seu trabalho sobre a autobiografia, e tomando em consideração um número de obras “compostas em colaboração”, explicita o modo como, precisamente por nascer de uma colaboração, o resultado principal é “relembrar que o ‘verdadeiro’ é em si mesmo um artifício [artefact] e que o ‘autor’ é um efeito de contrato”. Tal como nos casos de La Guerre d’Alan, de Emmanuel Guibert e Alan Cope, ou noutro grau de Le Photographe, do mesmo autor de banda desenhada com Didier Lefèvre e Frédéric Lemercier, ou ainda alguns projectos de Edmond Baudoin ou de David Collier, trata-se menos de um livro somente de um ou de outro, mas tampouco de uma colaboração, como a emergência de uma “verdade” através da equação contratual do “autor” deste livro. O que André Diniz torna possível é uma reportagem, no seu sentido etimológico: “transportar para trás”, isto é, olhar para o passado de outro e fazer retornar essas informações.
Morro da Favela dá-nos a conhecer a “experiência do Outro”, sendo o Outro Maurício Hora, fotógrafo reconhecido internacionalmente e cujo trabalho se centra na favela do Rio de Janeiro onde nasceu e viveu toda a sua vida. É claro que a utilidade da palavra “outro” pode parecer subalternizar Maurício Hora, mas convenhamos que um habitante das favelas tem de ultrapassar toda uma série de obstáculos, expectativas e preconceitos numa sociedade que se auto-representa com elementos diferentes daqueles possíveis ou existentes numa favela. E, para mais, para os leitores portugueses deste espaço (se bem que surjam de quando em vez outros), as favelas continuam a ser uma realidade vários furos afastada da nossa, e que podem mesmo servir a ajudar-nos a esquecer dos nossos próprios bairros de lata e de sobrevivência.
André Diniz não molda a biografia de Maurício Hora de uma forma transfigurada, como David B. o faz em relação ao seu irmão em L’Ascension, nem procura isolar momentos mínimos, como Guibert em La Guerre. Esta biografia avança de modo linear, ainda que dividida em algumas secções que também servem para saltar no tempo. Apesar de ser a vida de Hora o catalisador das acções, o foco de atenção é o próprio bairro, originalmente conhecido por “Morro da Favela”, baptizando assim essa palavra para vir a ser aplicada a todos os bairros clandestinos que foram sendo construídos - mas veja-se como a razão imediata disso foi a falta de cumprimento de uma promessa do governo a uma reivindicação ou recompensa justa, o que desarruma completamente as simples justificações causa-consequência dos que atacam os elos mais fracos da sociedade. Por essa mesma adopção de “favela” por tantos morros, hoje este e conhecido por Morro da Providência. É a sua história social, então, que é contada: desde a existência dos “malandros” até aos anos 1960 e 70, o surgimento do tráfico de droga, o modo como a polícia ia intervindo, tornando-se parte do problema e jamais da solução, mas acima de tudo, e essa é a respiração da obra fotográfica de Maurício Hora, é “mostrar pra todo mundo que aqui também tem vida!”
Já falámos aqui várias vezes de um livro de fotografias sobre subúrbios chamado Cimêncio, de Diogo Lopes e Nuno Cera. Um dos problemas desse livro é que não leva gente dentro, antídoto necessário à contínua criação de ideias preconcebidas sobre esses espaços como necessariamente redutores, ou melhor, como se as pessoas que lá vivessem não fossem capazes de criar as suas próprias vias de desenvolvimento, aprendizagem, e felicidade. Maurício Hora fotografa o seu bairro pobre, de casas sem saneamento básico, de meninos sem escola e quase sem futuro, de uma violência atroz que os rodeia que a esmagadora maioria de nós jamais, felizmente, conhecerá, mas para mostrar as gentes, as pessoas. Pessoas que, como ele próprio, poderiam ter o pai preso mas achavam que ir visitá-lo era como ir ao parque, e podia levar-se bolo e jogar à bola com amigos. É encontrar respeitos mútuos que surgem porque há uma solidariedade na miséria. Descobrir felicidades impagáveis por fazer um gesto que é barato.
Existe uma contínua voz narradora externa que aborda o que vemos como passado, mas as acções tecem-se e desenvolvem-se no presente visual. As relações familiares, de amizade, a descoberta da fotografia e as tensões que isso desperta junto às “autoridades” (policiais e gangues da droga), servem ao mesmo tempo um propósito de retrato sociológico para compreender que tipo de redes de poder se instalam nas favelas, uma dinâmica muito própria, complexa e que tende a ser reduzida pelas perspectivas externas.
O livro fecha com uma sequência em que Maurício Hora - pela primeira vez do lado natural de quem olha, e não como personagem integrada no tecido narrativo gráfico, como é costume - insiste em fotografar uma senhora mais velha, Dona Iracema (pode ser que não seja por acaso a escolha deste nome, como se se desejasse pelas redes intertextuais fazer entrar a “inocência” no morro…), com esse intuito de mostrar a vida (a frase citada acima é dita à Dona Iracema). Ela diz que não é bonita, Hora insiste que é porque “passou pelo que passou e continua uma pessoa maravilhosa”. Ela então aceita, e é o clique final. Segue-se ainda um breve dossier com fotos reais de Maurício Hora e outras a preto-e-branco dos anos 1920 e 30 do Morro. Se bem que não sejam suficientes para criar um contraponto histórico ou material à história de André Diniz, são pelo menos um complemento breve que nos ajudam a ancorar parte do que acabámos de ler.
Diniz tem uma abordagem ultra-estilizada, com personagens de traços muito angulosos, como e fossem papéis recortados de uma forma rude, utilizando padrões simplificados para transmitir a ideia de texturas (de cabelos a tijolos, de vegetação às calçadas). Quase se imagina uma transposição fácil para um determinado tipo de animação flash muito em voga. Além do mais, neste trabalho em particular, Diniz opta por um uso do contraste absoluto do preto e do branco, o que tem uma consequência socialmente relevante: tendo em conta as pressões raciais/étnicas ainda existentes no Brasil, e o “apartheid social” que é instituído entre as populações mais pobres e as mais ricas, este tratamento gráfico - estilístico e cromático - de Diniz torna-as todas idênticas nesse plano, não havendo traços definitivos de identificação racial (ou pelo menos, invisíveis a quem, como nós, não souber ler alguma pista que exista). Essa escolha apenas fortalece o propósito de Hora, de mostrar a vida, tal como ela é, e não pautada desde o início por qualquer tipo de preconceitos. (Em termos superficiais, portanto, essa estilização simplificada - mas não simplista - aproxima o livro da obra de Satrapi ou de Abirached, por exemplo).
Isso levar-nos-ia a uma discussão, sempre importante, entre as relações possíveis entre os sistemas de representação da fotografia e da banda desenhada. Não nos parece que as relações procuradas em Morro da Favela sejam tão complexas como Le Photographe, mas ainda assim esse contraste assinalado não pode deixar de ser visto como um comentário possível.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.

2 comentários:

José Sá disse...

Caro Pedro,

Infelizmente, não vou poder visitar o FIBDA no fim-de-semana em que vai estar presente o André DiniZ (dia 2, 16 h, certo?). Vou ler a exposição exactamente como li o livro dele, em solitário :-(. Em relação ao Morro, tive sempre a curiosidade de saber em profundidade das razões da escolha da técnica utilizada, mais que o estilo do desenho. A xilogravura é uma forma de representação que me agrada particularmente desde que tive contacto com ela através das aulas de trabalhos oficinais na infância e depois (mais a sério (ou talvez não)) na obra do Amadeo Sousa-Cardozo. Como já referi num comentário a um post deste blogue, este ano tive a oportunidade de conhecer mais profundamente alguns criadores brasileiros utilizadores desta técnica, entre outros e particularmente, Ruben Grilo na pintura e Jô Oliveira na BD e ilustração. Discordo um pouco na tua opinião quanto ao efeito que o André quer criar na utilização da xilogravura. Sou mais levado a pensar que estaremos mais próximos das influências de um repetido fenómeno cultural brasileiro do século passado de absorver a cultura ocidental (europeia) e adaptá-la à sua originalidade hemisférica em movimentos contra-corrente, como o modernismo antropofágico, o movimento tropicália e, pontualmente, neste caso a xilografia popular brasileira que parece partilhar as mesmas origens nordestinas dos primeiros habitantes do morro da favela oriundos da batalha de Canudos. Se no Maus de Spiegelman parece a todos mais ou menos óbvia a resposta pretendida à propaganda nazista imediatamente anterior à segunda guerra através da antropomorfização satirizada dos personagens numa cadeia alimentar hierarquizada de predadores, não me parece que no Morro se pretenda o efeito inverso pela homogeneização das personagens e que conduza à fruição da história pela história. Mas também não digo que esse efeito não é desejado, apesar de pensar que não esteve presente na escolha inicial. Talvez, pelo contrário, a utilização da xilogravura aprofunde o contraste com o mundo exterior real e a cores e uniformize todos os universos das favelas. Pessoalmente, sinto que o autor André argumentista sofre sempre do complexo de quem tem de representar uma realidade da qual não participa. Não me parece inocente (no bom sentido) que tenha querido fazer a sua própria (redundância) aproximação ao coargumentista fotógrafo Maurício Hora, recriando o negativo fotográfico, um daguerreotipo mesmo, e com isso, de uma forma, como muito bem salientas, ultraestilizada e, acrescento contrastante, uma regressão esquemática pela xilogravura da organização social de que nós, o "social colorido", contrastadamente, apesar da nossa palete, nos estaremos a distanciar.
É uma pergunta que gostaria de muito de fazer, mas que só me atreveria se tivesse algum grau de proximidade/intimidade com o autor.
Um abraço e muito sucesso para a tua exposição.
José

José Sá disse...

Palete não, paleta. Perdão por este estivador erro de simpatia eheheheh...
José