Todo e qualquer livro constitui uma unidade. Mas ao mesmo tempo qualquer livro começa a meio de qualquer coisa. Tudo começa sempre a meio de qualquer coisa porque enquanto seres humanos, estamos sempre a meio não apenas de nós mesmos - a consciência, os afectos, a memória, são fenómenos (?) que se encontram sempre já em curso - como emergimos enquanto seres individuais a partir de uma separação de outros, a saber, os pais, ou mais especificamente, a mãe.
Esta frase quer implicar dois “meios” de onde “sempre já” este livro emerge. Em primeiro lugar, se poderemos sem dúvida alguma ler este livro sem ter qualquer tipo de acesso aos anteriores - com a excepção, talvez, de simplesmente saber que eles existem, informação impossível de escamotear precisamente pela sua leitura -, a verdade é que a sua leitura surge já na consciência deles. É como se se engendrassem uns aos outros (se linear ou mutuamente é outra discussão). Não é apenas uma questão de temas ou de ambiências, ou sequer de técnicas, mas de gestos que vão ganhando curvaturas, as quais, à distância, conduzirão a uma imagem ou um sentido coeso. Dykes to Watch Out For estará, portanto, na origem destes dois gestos mais “monográficos”, digamos assim, que também entre si comporão uma outra unidade maior (e veremos que outros elementos a poderão ainda expandir).
Em segundo lugar, dever-se-á ao facto de onde Fun Home gravitava em torno da figura paterna (figura que, marcada pela sua ausência do mundos dos vivos e cuja forma fantasmática se projecta na vida de Bechdel o torna aquela figura imaginária que é mescla, ou hiato, entre o pai real e o Pai simbólico), este centra-se na da mãe, ainda viva, e com a qual dialogava à medida que o compunha, dialoga ainda agora depois da sua publicação, e dialogará para sempre, num eterno presente, no próprio texto. Geram as mães os filhos ou geram os filhos as mães? Que significado terão as capas do livro (sob a sobrecapa) e as guardas no que diz respeito à transmissibilidade de imagens, anseios e desejos das mulheres da família de Bechdel? Mais uma vez, a questão da verdade histórica atinge uma fronteira ética importante com um acto autobiográfico desta natureza.
Quer no caso do pai quer no da mãe, Bechdel está a construir narrativas em torno de uma perda e não de uma ausência originária. No caso do pai, trata-se da morte, irreversível, mas ao mesmo tempo objecto de um luto (para que Fun Home cripticamente terá contribuído) que “resolve” essa perda, ao passo que no da mãe se falaria de uma perda do seu afecto, e a procura deslocada por esse mesmo afecto noutros objectos (as terapeutas, as amantes, a criação, etc.). Tem portanto uma dimensão mais melancólica (operamos aqui a tensão entre luto e melancolia, tema consabido de Freud). E há uma clara oposição no tratamento dessas figuras entre os livros. Fun Home começava e terminava com o contacto físico e a confiança que a pequena Alison tinha com o pai; Mother começa com um sonho (uma espécie de ausência, mas falaremos sobre eles mais adiante) e termina com um bizarro jogo que, mesmo havendo contacto, breve, sublinha a “falha” instituída entre ambas (mesmo que vista, positivamente, como “saída”). O pai surge neste livro de uma forma mais enviesada, e com um tratamento contínuo que o torna como uma, bem, besta insensível e distante da família. Mas os irmãos também se encontram numa posição lateral, logo isso dever-se-á também, ou talvez, a uma focalização específica que se pretende sobre a mãe.
A estrutura de Are You My Mother? é, a um só tempo, multilinear, inexorável e metaléptica. Queremos dizer com isto que o livro apresenta toda uma série de “blocos” que se coordenam e misturam entre si, mas podendo ser descritos nominal e separadamente, como o faremos já de seguida. A sua coordenação, porém, tece-os de forma a criar um texto inconsútil e que cria o sentido coerente que o molda na sua totalidade. E, terceira dimensão, é a maneira paradoxal como cada um desses blocos parece engendrar-se mutuamente, reforçando aquela ideia inicial de que tudo começa a meio de alguma coisa, e que nos caberá a nós fazer o seu desenho de contorno (controlo, forma, ideia). Se numa autobiografia há uma equivalência “verdadeira” entre autora, a que chamaremos Bechdel, e protagonista, a que chamaremos Alison, haverá ainda a narradora, que será uma posição intermédia a qual, através das suas várias intervenções, textuais e imagéticas, confunde o trânsito entre esses níveis e entre os tais “blocos”.
Descrevamo-los. Há excertos de obras literárias e de escritos teóricos de psicanálise que surgem quer sob a forma de citações nas legendas narrativas da mega-narradora quer sob a forma de páginas desses livros representadas nas imagens – o que leva a uma confluência visual muito interessante – com o texto enfatizado. Há representações visuais de episódios da vida desses terceiros citados, como Virginia Woolf e Donald Winnicott, que funcionam como modelos de Alison. A autora visita todo o seu passado, e há episódios que vão sendo explorados de forma intermitente no interior de um mesmo capítulo, como se se tratassem de várias linhas que em conjunto se reforçassem mutuamente, ou em que um aspecto de uma dessas linhas esclarecesse ou moldasse a outra. Há as conversas que Alison tem com a mãe ao telefone, e as transcreve, e temos um estranho, duplo, triplo, mesclado, acesso à matéria verbal, sob a forma de balões de fala, transcrição, citação, transformando-se numa matéria segunda que se vai formando e vai formando o livro.
Essa acessibilidade intervalada, intermitente, escalonada, entre uma coisa e outra, entre uma informação e outra, uma camada de existência e outra, leva a questões de uma legibilidade da própria banda desenhada que tanto obriga a uma concentração acrescida da parte do leitor – mandando às favas aqueles descritivos essencialistas de que a banda desenhada é forçosamente “fácil” de ler – como quase incita a uma distracção permanente, idêntica à da própria Alison que se entrega com maior intensidade à leitura dos seus livros (que a estão a interpretar a ela mesma naquele momento representado como neste momento da feitura/leitura do livro) do que à escuta da sua namorada (veja-se a pág. 54 e seguintes, por exemplo). A distracção no acto de leitura de Are You my Mother? deverá tomar aquela configuração específica de que Walter Benjamin falou no seu mais famoso ensaio, A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Não se trata de um estado de consciência propriamente dito, mas até um mergulho no seu valor etimológico, de traçar várias direcções, e o uso da palavra “traçar” não pode ser inocente na consideração da banda desenhada. De certa forma poderemos entender este livro como uma máquina complexa que despede múltiplas linhas de desenvolvimento e interpretação (não tem nada isto a ver com os abusos sobre o conceito de “obra aberta”) e que caberá ao crítico (re)cartografá-las de uma qualquer forma.
Poderíamos dizer, de uma forma simplista, que este livro trata da relação entre Alison Bechdel e a mãe. Mas isso não é uma verdade, pelo menos exclusivamente. É sobre essa relação, mas essa relação tem consequências ou dimensões que ultrapassam os momentos de contacto entre as duas, para se espraiar na maneira como Alison se relacionará com as suas namoradas, as suas sucessivas terapeutas, o seu trabalho profissional e até o seu trabalho psíquico, a sua personalidade. A qual, também, se apresenta sob as suas várias “camadas”, por assim dizer.
É de uma extrema produtividade que cada capítulo (de sete) se inicie sempre com transcrições/resignificações (no sentido de “reescrever com signos”) de sonhos de Alison. A primeira camada de sentido que daí advém é que o sonho passa imediatamente a ser visto como parte integrante da experiência, da vivência de uma pessoa: não se tratarão de “restos”, ou “complementos” ou aspectos “paralelos” a uma linha de existência que se quereria real, mas como um outro elemento de idêntica valorização com os demais - memórias, pensamento consciente, actos de criação. Aí Bechdel irmanar-se-á com David B., mas poucos outros autores explorarão com a mesma intensidade e num mesmo plano gráfico e até ontológico os sonhos nas suas narrativas (existem exercícios de transcrição de sonhos, de McCay a Reklaw, mas esses são actos que isolam o sonho do sonhador, logo objectificam a sua qualidade de fantasia; já Rick Veitch levaria a fins diversos). Porque é necessário compreender que os sonhos não surgem aqui como fantasias, projecções de espectacularidade, ou simples mecanismos narrativos que ajudariam a sublinhar um qualquer sentido desvendado mais tarde. Se Freud os considerava como “a estrada régia para o inconsciente”, uma “charada” que pode partir da linguagem – pois mais importante é até mesmo o acto de se contar o sonho, uma tradução verbal (ou, neste caso, também gráfica), do que ocorrerá neurologicamente – para se formar enquanto hieróglifo, pleno de significantes interpretáveis. Se os sonhos são uma das vidas do retorno do reprimido, e independentemente das próprias interpretações destes sonhos imediatamente apresentadas pela própria Alison, a mãe, outras pessoas, cumprir-nos-á ver o que eles (os sonhos que abrem os capítulos, pois há outros também) têm em comum. Em primeiro lugar, note-se como as páginas dos sonhos são contadas com fundos negros, uma forma simples e gráfica de destaque. Além disso, são os únicos momentos sustentados em que as legendas narrativas e os balões de fala representam os “acontecimentos” de maneira desimpedida, sem aquelas flutuações entre camadas e tempos verificadas no resto da estrutura. Se sublimarmos os elementos principais de cada um deles, veremos como se coalescem numa constelação significativa, de cariz maternal: a cave, a aranha, o sangue no chão, a massagista que cura e remenda, a subida pelas escarpas geladas e a descoberta que é a casa (outra forma de dizer “cripta”), a mãe preparando-se para uma peça teatral vestida com roupa interior vitoriana, a visita a uma Stonehenge desfigurada.
O sonho atravessa, de acordo com as lições de Freud, os processos primários da condensação e da deslocação, e somente depois é que ganham representabilidade através das imagens (e ainda se verifica o mecanismo a que Freud chama de Bearbeitung, ou “revisão/elaboração secundária”, ou seja, a reorganização dos elementos do sonho que o tornam inteligível e narrativizável: apesar de estar sempre em funcionamento, notar-se-á sobretudo no momento em que o sonho é recontado). Entende-se assim que o sonho é uma forma de pensar, ainda que atravesse processos bem distintos da racionalidade e logicidade da vigília. Os sonhos apresentam um conteúdo manifesto, e é tarefa da análise, que tem necessariamente que passar pelo recontar do sonho e pelas associações feitas pelo sonhador/analisando – o que é muito diferente de uma análise directa ao sonho, que se poderá imaginar vir a ser possível no futuro com o desenvolvimento das tecnologias cognitivas – desvendar o seu significado latente. Como explicita René Diatkine (apud Dicionário Internacional de Psicanálise), “a interpretação na vigília nunca labora directamente o sonho, mas antes com a narrativa do sonho, isto é, um sumário verbal de sobretudo imagens visuais produzido na vigília. O resultado é muitas vezes uma elaboração excessiva do ‘material’ oferecido à interpretação”. E não é de somenos notar que estes sonhos são traduzidos várias vezes: das impressões mentais de Alison para anotações verbais num bloco, depois a sua transformação em cenas desenhadas (e que a autora “encena” novamente) e finalmente a sua estruturação em banda desenhada.
E não existirão quaisquer “dicionários” de sonhos possíveis (tal como não havia mapas em Fun Home). Apesar de se poderem encontrar alguns mecanismos culturais mais ou menos recorrentes, é impossível esgotar, portanto, a interpretação de um sonho, pois o inconsciente é inexaurível e cada indivíduo é um caso. Se apontámos “características comuns” (latentes) em todos aqueles sonhos, isso dever-se-á ao facto óbvio de tudo estar subsumido a uma narrativa que lida explicitamente com a relação maternal e as suas especificidades – falta de emotividade e de fisicalidade na relação, deslocamentos dos desejos da mãe na vida profissional e artística da filha, sexualidades e religião transtornada (utilizamos esta palavra sem lhe querer insuflar qualquer tipo de moralidade, atenção), etc.
Estas linhas de interpretação, se parecem estar demasiado assentes sobre formas de discursividade que devem à psicanálise, não podem de alguma forma ser vistas como surpreendentes ou abusivas, já que o livro é, claramente, e também, um exercício psicanalítico operado pela própria autora. Não se trata somente de ser uma autobiografia, como de uma auto-análise também. Essa dimensão é até muito óbvia. Os sete capítulos, por exemplo, são intitulados com palavras-chave que são citações directas de lições fundamentais da psicanálise, especificamente de Donald Winnicott (citando-se mesmo os títulos dos ensaios de onde partem essas expressões; se bem que alguns termos mais gerais se associem a desenvolvimentos anteriores ou posteriores desse campo, citando-se Freud, Klein, Lacan) e que Bechdel lê e integra como parte constitutiva deste acto de banda desenhada: “1. A mãe devota vulgar”, “2. Objectos transicionais”. “3.O verdadeiro si e o falso si”, “4.Mente”, “5.Ódio”, “6.Espelho”, “7.O uso de um objecto”.
O livro pode ser mesmo visto como uma análise clínica de si mesmo; não da autora, tenha-se em atenção, mas do próprio livro enquanto acto poiético, logo significativo. Ele (re) pensa-se a si mesmo no seio do seu próprio desenvolvimento. “For nothing is simply one thing”, reza a epígrafe de Woolf. Uma linha narrativa-gráfica, isto é, um número finito de signos nestas páginas, que despede múltiplas linhas de força, de leitura, de interpretação…
É algo estranho que, apesar da autora construir a trama em torno de toda uma série de coincidências, e Jung ser uma referência citada, ainda que menos vincada que as outras referências da psicanálise, não se explorem de forma explícita as condições e consequências da teoria da sincronicidade. Talvez por ser claríssima a integração de todos esses factos, talvez por, uma vez que tudo se encontra subsumido numa obra gráfica e literária, isto é, que atravessou pelo menos uma decisiva etapa de intencionalidade, consciência e acção, acaba por se integrar num programa de causalidade: o do acto poiético em si.
A própria forma como Bechdel cumpre esse acto é revelador no que diz respeito a toda esta linha de interpretação que temos perseguido. De acordo com Dominick LaCapra (Writing History, Writing Trauma), expandindo as lições de Freud, existem duas formas de lidar com o trauma. Antes de discorrer sobre elas e entender como se entrosam com o livro é preciso fazer duas advertências. A primeira é que quando nos referimos aqui a trauma, não nos estaremos a referir aos “grandes traumas” (a sobrevivência de uma guerra, os abusos sexuais infantis, uma situação de terrorismo, o testemunho de um acto violento, etc.), aquilo que se apelidava até há uns anos de “fora do âmbito da experiência humana”, para, com as reformulações feministas do trauma, compreender a sua existência de formas mais continuadas e comuns, “pequenos traumas”, se assim quiserem (a pobreza, as pressões profissionais, a expressão da sexualidade, desequilíbrios de representação social ou de papéis sexuais). A segunda é que essas tais duas formas não são mutuamente exclusivas, e são antes descritivos de um espectro de acções, que podem surgir em várias intensidades e valores de relacionamento. As duas formas são chamadas de “agir” (“acting out”) e “perlaboração” (“working through”). De uma forma algo redutora, poderemos dizer que no primeiro caso a pessoa repete a situação do trauma, revive essa experiência, onde os “tempos [tenses] implodem”, e que a segunda é uma “prática articulatória… na qual se distingue entre o passado e o presente” (pg. 21-22 do livro indicado), ou seja, é uma espécie de estado que se atinge de resolução, através de uma interpretação do trauma. Como imaginarão, estes aspectos têm determinações de uma extrema complexidade, e não é sem alguma temeridade que os empregamos (senão mesmo “aplicamos”, na forma mais débil dessa palavra), mas que julgamos ser produtivo para pensar o livro.
Bechdel, como é sabido, encena todos os episódios que quer representar nos seus livros, fotografando-se a si mesma em quase todos os papéis (desenhando depois), mas notoriamente e sobretudo nos do seu pai (em Fun Home de modo central) e da sua mãe, vestindo-se ou procurando posições que os mimem, de uma maneira ou de outra. Mas por vezes essa mimese ou imitação ganha outras qualificações. Na página 128, Alison transcreve as cartas que o pai enviara à mãe, e escreve o seguinte: “Esta foi uma representação [performance] particular na qual eu representava [played], a um só tempo, a minha mãe, ou a leitora,…/…e o meu pai, o escritor”. Algumas páginas à frente, numa citação do diário de Woolf, a escritora britânica explica como – e eis outro eco com Bechdel – a escrita de The Lighthouse servira para se libertar do jugo fantasmático dos pais, usando a expressão em inglês “laid them in my mind”. Ora, a encenação/repetição dos gestos dos pais no programa da escrita e desenho do seu livro poderá ser visto como uma forma integrada e complicada de acting out (os papéis, repetindo e revivendo as cenas) e working through (libertar-se dessas mesmas cenas) em relação às figuras parentais? Ou, por outras palavras, faz-se uma “experiência vivida” para completar uma “experiência explicada”? Se essa interpretação tiver algum amparo, então poderíamos arriscar que o luto é completo em Fun Home, mas que no caso de Are You my Mother? essa resolução é menos clara – até o título surge como pergunta sem resposta final.
A autora cita Winnicott nos seguintes termos (pg. 281): “O objecto [de desejo, de investimento libidinal] está sempre a ser destruído. Esta destruição torna-se o pano de fundo inconsciente pelo amor de um objecto real, quer dizer, um objecto fora da área do controlo omnipotente do sujeito”. É essa “externalização” que é necessária para que surja o verdadeiro – não egoísta – amor. Mas apesar da narradora declarar que “destruí a minha mãe e ela sobreviveu à minha destruição”, e explicitamente mostrar que o fim narrativo que engendra para o livro é forçado, pois “a história não tem fim (…) e tenho de fabricar um” (284), a sensação final é que a “falha” entre as duas é ainda matéria melancólica. Não há resolução, fechamento, final feliz, por palavras mais simples.
A sexualidade de Bechdel, lésbica, não tem um papel tão central ou decisivo (não se confunda “causal”, tal como o não era em Fun Home) neste livro, mas como não pode deixar de ser é um factor que surge com um poder de inflexão e diálogo com a sua mãe - e, discutivelmente, com a maneira como a autora fala da vida pessoal das outras personagens que lhe servem de uma espécie de modelo intelectual ou mesmo de vida, de Donald Winnicott a Virginia Woolf. As suas relações amorosas e pessoais (inclusive com as várias terapeutas que frequenta) são pasto de análise, moldagem e corte da trama narrativa, sem dúvida, mas não ganha aquelas facetas de maior crise de identidade, políticas, sociais, que se verificam no livro anterior. Veja-se a discussão integrada neste livro das razões pelas quais “abandonou” a sua tira Dykes (pg. 70), que é muito reveladora, uma vez que o lesbianismo é mais visível, por um lado, na sociedade norte-americana, e até mesmo sofre algumas naturalizações, comodificação e processamento de inocuidade política (veja-se The L Word ou Ellen). Para começo de conversa, a sua construção identitária “singular”.
Em comparação com a obra(s) anterior(es) de Bechdel, parece-nos que há uma procura mais insistente por uma exactidão naturalista dos corpos. Se bem que a fotografia (re-presentada pelo desenho) tinha um papel fundamental em Fun Home, axial até, aqui surge mesmo sob a forma de documento, processo, e no meio de muitos outros elementos de arquivo, desde os livros consultados e citados às ilustrações de Dr. Seuss (que ganham uma importância central, originária, representativa e concentrada das linhas, apetece dizer “pregnantes”, do livro, tal como o título é emprestado a um livro infantil muito famoso, mas jamais indicado neste mesmo livro, podendo ser visto como sua sombra ou fantasma ou indizível segredo). Há momentos, porém, em que uma abordagem mais estilizada toma conta do episódio, sobretudo se se referem à tenra infância da autora, como nas páginas 230s… Mas onde a abordagem naturalista/pseudo-fotográfica se retira, emerge a capacidade de composição significativa da autora (a prancha 114, acima, convidará a uma leitura cuidada que implique toda a matéria do livro). Veja-se a página 232, aqui mostrada. O desenho de Alison enquanto bebé é muito mais estilizado do que Bechdel cumpre em relação às personagens adultas, particularmente o seu próprio rosto em alguns momentos em que percebemos a “transcrição” das fotografias (como pequenos traços indexicais de expressão, que nada têm a ver com a abordagem gráfica). Quase todo o trabalho de cenário é eliminado para colocar a tónica na composição da página. Aqui mostra-se um momento em que a pequena Alison empurrou um grande espelho nas escadas e o espatifou sobre si, escapando ilesa. É o pai que a retira dos escombros, ao passo que a mãe fugira para a casa de banho com a “certeza de que tinha morrido”. Todos os acontecimentos que compõem este episódio espraiam-se por quatro páginas, mas através de uma desordem temporal, com recuos e avanços. Ele é contado primeiro pela mãe de Bechdel ao telefone, mas os balões e legendas da mãe darão lugar, no tal recuso, às legendas da narradora contrastando e discutindo os dois textos fundamentais de Lacan e de Winnicott sobre a relação entre (o desenvolvimento psicológico d)a criança e o espelho: dessa forma, o confronto entre Alison e o espelho não é apenas uma evento literal e histórico, como uma brincadeira que se transforma em trauma, como ainda em momento simbólico do seu crescimento, e nexo da relação com os pais. Existem duas diagonais na página – aquela na primeira vinheta feita pelo espelho inclinado e a criança, por ser um plano inclinado, diagonal continuada na segunda vinheta pela “queda no vazio” de Alison, e uma segunda, sublinhada pelo corrimão, o corpo da criança e o olhar do pai, na direcção contrária – que encontram um término abrupto na recta da última vinheta – desenhada pelos braços dos pais com a bebé no meio. Como que assinalando todo o tema do livro, neste desenho em particular, a mãe não a toca e o pai entrega-a. Há uma dupla recusa da parte dos pais; mesmo que momentânea, uma vez que a linearidade da banda desenhada obriga a que o movimento/história continue, o desenho condensa a ausência de contacto. Ainda um outro eco do tema específico deste trecho, cumprido textual e imageticamente, é o facto do texto de Winnicott discutir os jogos de olhares entre mãe e bebé, e Alison ter os olhos fechados nessa transmissão entre pais. “Nesse caso que vê o bebé?”. A resposta será, “Nada”, todavia com um alto grau de indecibilidade em relação à intencionalidade desse mesmo olhar. Isto torna-se de uma extrema importância na economia de representação da autora, que se fotografa a si mesma para depois se ver nos desenhos, quer como ela mesmo enquanto personagem quer como representando os outros. A importância da fotografia, de resto, é muito visível, quer na capa verdadeira dos volumes, quer na sua presença documental, quer na sua assunção como texto a ser interpretado pelo trabalho de Bechdel.
Ainda como em Fun Home, a obra é composta por desenhos coloridos a aguadas, tramas e cinzentos, que rara mas significativamente (os sonhos, os fechos) se abandonam em pretos densos, e uma segunda cor, no caso presente vários tons de roxo, violeta, bordeaux… Sem querer fechar o seu significado através de um qualquer simbolismo que poderia ser contraposto de imediato, perguntemo-nos somente que tipo de oposição estabelecerá com os fracos verdes do livro sobre o pai. Procurar-se-á aqui uma cor mais passional, precisamente para sublinhar a sua ausência na relação mãe-filha? Tratar-se-á antes de uma espécie de apontamento sanguíneo, vinífero e até católico para mostrar essa relação sob o prisma da religião atravessada? Uma mais simples opção por cores complementares, para sublinhar a qualidade, a um só tempo, de unidade e separação entre os dois livros? Seja como for, apenas estaremos seguros de que essa escolha não será de todo ocasional, ou desprovida de uma camada de significados, mesmo que eles devam reverberar sem explicação ou redução verbal junto aos leitores.
Na pg. 143, a pequena Alison faz um desenho que seria depois considerado obsceno e foi destruído pela mãe. Não temos acesso a esse desenho, nem sequer a uma sua hipotética reconstrução, mas temos uma vinheta em que vemos Alison desenhando, de baixo para cima, isto é, como se o nosso plano de visualização partisse do local do desenho ausente. Colocar os leitores nesse local torna-nos a todos nós não apenas receptores do desenho (e do livro), mas matéria integral desse mesmo desenho (e do livro); Alison e Bechdel (i.e., quer a personagem no interior da narrativa quer a autora, separadas analiticamente) criam-nos. Essa é a última camada deste livro, e a cada leitor o seu papel.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
2 de julho de 2012
Are You My Mother? Alison Bechdel (Houghton Mifflin Harcourt)
Publicada por Pedro Moura à(s) 12:14 da tarde
Etiquetas: Autobiografia, EUA
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2 comentários:
"Tudo começa sempre a meio de qualquer coisa porque enquanto seres humanos, estamos sempre a meio não apenas de nós mesmos - a consciência, os afectos, a memória, são fenómenos (?) que se encontram sempre já em curso"
escreveste muito, e escreveste bem, desta vez näo tiveste tantos "porques dos porques" habituais e fiquei com 1 vontade doida de ler o livro
Fuhhome deve ser dos livros mais deprimentes e angustiantes que li. Este pelos vistos não ficará atrás. A densidade da escrita desta autora, o seu método de trabalho rigoroso, quase científico, o desenho "asséptico" (especialmente em Funhome), completamente desprovido de "emoção" quando lida com temas tão pessoais, tudo isso perturba, e não é pouco. Excelente texto. Abraço
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