A mera descrição deste objecto levantará de imediato questões de nomenclatura, com imediatas implicações em torno de recepção (quer de “mera” leitura quer crítica), distribuição, inscrição e enquadramento social. Podemos, pensamos, aproximarmo-nos dele de duas formas, ambas erróneas, porque incompletas, mas cada uma permitindo discursos diferentes. Trata-se esta publicação do catálogo da exposição do mesmo nome apresentada na Fundação de Serralves, entre Abril e Julho deste ano, pelo artista Mathieu Kleyebe Abonnenc. Mas é também um livro de prosa ilustrada escrito pelo mesmo, com a colaboração de Filipe Abranches e Teresa Câmara Pestana. (Mais)
Mas um catálogo é, usualmente, um repositório de documentação relacionada com o material apresentado na exposição. Por vezes existem projectos ligeiramente diferentes, podendo construir-se uma publicação que estende as matérias da exposição ou as reformula numa configuração diferente. Ora, esta publicação não é uma coisa nem outra. Há um grau de autonomia significativo entre o que se encontra nestas páginas e o que se encontrava na Fundação – nas suas paredes, salas e auditórios. Existe um carácter temático generalizado que abarca esta e aquelas, e a que poderíamos chamar, citando os textos de divulgação da exposição, matéria afecta aos “movimentos de libertação das ex-colónias portuguesas de Guiné-Bissau e Cabo Verde”, mas com a excepção do título coincidente, das informações contextuais no cólofon, e dos textos finais, complementares, do comissário do projecto, Ricardo Nicolau, e uma investigadora, Catalina Lozano, não há nenhum vínculo explícito entre o “livro” e a “exposição”.
Podemos, portanto, imaginar que, num futuro que se imiscui desde já na leitura do presente, autonomizada em relação à exposição, se poderá ler este livro precisamente como isso: um livro que apresenta algo que se pode ler.
Todavia, mesmo essa decisão não ajuda a esclarecer aquilo a que somos expostos com este livro, nem elimina alguns dos escolhos que ele suscita. Existem, aparentemente, várias linhas narrativas desenvolvidas nas páginas desta publicação, mas poderíamos igualmente subsumi-las a todas a um enquadramento, a uma trama, mais ou menos unificada: um jornalista visita a Guiné-Bissau, em plena Guerra Colonial (final dos anos 1960, princípios de 1970, uma vez que Amílcar Cabral está ainda vivo) e deseja observar as movimentações dos militantes do PAIGC, com uma particular atenção para algumas das figuras femininas, e enquadrando numa contextualização histórica (colonial) maior. De novo, os perigos espreitam. O propósito da prosa não é ser – ou não o é – claro: não sabemos o nome deste jornalista, nem sabemos qual a sua nacionalidade ou idade exacta. Se a sua representação física/visual se apresenta, com Filipe Abranches e Teresa Câmara Pestana, de maneira diferenciada, mas em ambos os casos como alguém relativamente jovem, e ele mesmo, na primeira pessoa, se referir vir dos Estados Unidos, há uma referência (pg. 35) do acompanhamento em 1944 de guerrilhas no Danúbio. Quase no fim da “história”, já adentrados no mato guineense, há uma breve citação de um episódio da 2ª Guerra Mundial, que aponta à possibilidade de experiências pessoais, ou um imaginário, ou pelo menos a associações. Isto aponta desde logo a discrepâncias, ou pelo menos equações menos nítidas entre a matéria apresentada visualmente e a textual. Por exemplo, as primeiras três páginas mostram uma mulher negra aparentemente a viver numa cidade moderna, sem conseguir dormir e atarefada a sentir o seu entorno e a escrever cartas; o texto, por sua vez, fala na primeira pessoa, dizendo esse “eu” que chegou aos Estados Unidos em 1975, e que os sons violentos da cidade a levam de regresso, na mente, à terra de onde partira, e que sofria os males da guerra. Mas a voz desta pessoa traumatizada de guerra, exilada de maneira a considerar a sua única casa o seu corpo, é a mulher que vemos retratada? Ou já o “eu” do jornalista que veremos surgir mais tarde? Ou outra personagem ainda? Estas cenas iniciais são interrompidas por quatro outras páginas que, de uma forma quase enciclopédica e sem pessoalização, faz uma concisa história das relações coloniais entre os portugueses e o(s) território(s) que compreenderiam aquilo que se viria a chamar de Guiné Portuguesa.
Esta aparente flutuação entre “nódulos narrativos” continuará. Há troços em que é dada a voz na primeira pessoa a militantes locais, como o caso de António Bana; outros momentos parecem ser reservados à apresentação independente da vida de uma personagem individual, com destaque para figuras femininas, como as de Carmen Pereira, Teodora Gomes e Titina Sila, heroínas da guerra pela independência e autodeterminação do povo guineense; algumas breves páginas parecem ganhar algum grau de autonomia sobre um pequeno pormenor (formas de tratamento, armamento, metodologias de propaganda política, descrições das acções das forças portuguesas sobre a população).
A pergunta que e impõe é, portanto, qual a relação entre estas “narrativas”? Poderemos sequer separá-las, mesmo que analiticamente? Deverão ser elas entendidas como partindo do eixo organizador do olhar e voz do jornalista – o que poderá levar a problemas de agenciamento e concentração nas mãos de um ocidental, exterior, branco, à matéria central? Ou devem ser vistas como intensidades, previstas nas páginas, atribuíveis a uma multiplicidade de vozes que têm essa oportunidade? (há indícios em alguns artigos e entrevistas de que os textos terão várias fontes, mas não sendo elas assinaladas explicitamente, trataremos os textos como sendo assinados por Abonnenc). É como se se propusessem todas aquelas estratégias narrativas tipificadas de enquadramento diegético – narrativas encaixadas, memórias, entrevistas, etc. – mas as molduras flutuassem, se misturassem, provocando indecisões metalépticas. A própria materialidade da publicação – não tem cadernos, mas as mais de 50 folhas brancas da história ilustrada, as azuis dos textos institucionais e a capa encontram-se numa pilha agrafada somente – fará recordar uma pobre resma de documentos oficiais distribuídos em serviços administrativos, ou uma publicação marginal para distribuição gratuita e clandestina, reforçando a “ficcionalidade” documental do projecto em si, e libertando essas várias vozes e as suas necessárias interrelações de uma contextualização mais precisa.
A ausência de um “eu” localizado histórica e actancialmente levanta esta ordem de problemas. Afinal, de que posição fala este “eu” que de facto surge nas imagens e no texto? Se atentarmos às práticas do jornalismo em banda desenhada de Joe Sacco, por exemplo, surge-nos aí um modelo que não só torna visível a sua posição como a implica directamente no seu testemunho, aproximando-o assim, tal como ao seu discurso, a uma ideia de objectividade, que nada tem a ver com objectivismo (absoluto). Isto é, ao declarar “falo eu a partir deste ponto de vista” tudo o resto encontrará a sua relação e faceta específicas; na sua diluição – que está em curso em To Whom Who Keeps a Record, não há forma de garantir um contorno exacto.
Por outro lado, a utilização de duas mãos artísticas – Abranches e Pestana – leva igualmente a um outro nível de, a um só tempo, heterogeneização, distanciamento e complicação. Mas há mais. Descrevemos este livro como “livro ilustrado” na falta de uma outra palavra que respeitasse melhor as especificidades e desvios dele. Existem pequenos trechos próximos da banda desenhada, outros em que as imagens são apresentadas de forma icónica sobre toda a página (Abranches criou mesmo trabalhos de serigrafia a partir de algumas delas), outras que aparecem como vinhetas isoladas no centro de um mar de texto, todo este, sempre, sempre, escrito à mão, ora em manchas de texto muito densas ao em configurações visuais complexas que obrigam a uma leitura lenta, tortuosa e pouco linear. A utilização de segundas cores – no caso de Abranches, numa sua técnica conhecida de apresentar duas matérias visuais diferenciadas, no de Pestana obedecendo mais aos parâmetros da coloração – torna essa leitura, por vezes, ainda mais complicada. Esta descrição, porém, não deve ser vista de forma alguma como negativa. Bem pelo contrário, esta criação de uma densidade visual e caligráfica do texto (escrita num inglês numa sintaxe alongada, de vocabulário por vezes preciso, matizado de termos locais nem sempre explicados, e algumas gralhas) obriga a que a sua leitura seja lenta, dedicada e atenta, mimando, de certa forma, o difícil percurso da travessia do mato a que procedemos, ou o lento e doloroso processo de história, colonização, e luta armada pela independência que também se persegue.
Os interesses de Mathieu Kleyebe Abonnenc, que nasceu na Guiana Francesa, logo marchetando parte da sua experiência e vivência pessoal com o seu percurso criativo, vogam em torno de uma constelação complexa mas que navega em torno das relações entre as ex-colónias africanas e as suas ex-metrópoles, assim como as questões de auto-determinação, gestos de diálogo e apresentação, questões de identidade e questionamento dessa mesma identidade (sobretudo devido, precisamente, à natureza relacional da construção dessas mesmas identidades, que jamais podem ser escamoteadas). É nesse sentido que as suas pesquisas o fazem ter atenção para com objectos que terão com a propaganda política das guerras de libertação, os escritos dos seus líderes, os gestos criativos e artísticos que suscitaram e até mesmo uma ideia de memória reflexiva dessa história. Posters, panfletos, filmes, documentação, tudo fará parte de um arquivo em permanente construção e questionamento. É repetido – no próprio texto do comissário – que o modelo que Abonnenc para este projecto em particular (o livro que estamos a considerar, não a exposição) foi uma publicação de 1970 intitulada Historienboken, de um colectivo sueco de artistas, que conheceu uma edição imensa, e com muitas traduções (julgamos não existir edição portuguesa). A sua edição francesa (citada e, pelo que entendemos, entregue aos dois artistas portugueses) tem como título completo Livre d’Histoire. Contre-histoire du monde moderne (1400-1976) racontée et illustrée pour les enfants révolutionnaires, les parents de gauche et pour tous les travailleurs. O colectivo é composto por Annika Elmqvist, Gittan Jönsson, AnnMari Langemar e Pål Rydberg [vejam o vídeo complementar no fim do artigo]. A propósito de A crise explicada às crianças havíamos feito menção a este projecto como fazendo parte de toda uma tradição de publicações – que de facto se inscreviam politicamente e não procuravam uma desvitalização desse gesto por um suposto “equilíbrio” - que utilizavam a imagem, e mesmo as estratégias dos livros infantis ilustrados, a banda desenhada, a aliança intrínseca entre a ilustração e uma condensação e simplificação de informação que tornava mais acessível e clara a introdução a certos temas. As ligações entre estes livros é feita pela flutuação de estilos, de linguagens internas, as estratégias de composição, a integração de colagens ou materiais heteróclitos, a utilização de segundas cores para efeitos expressivos ou significativos, já para não falar da flutuação das vozes historicistas e privadas, etc. Para além do que se havia citado então, podíamos acrescentar aqui os livrinhos de banda desenhada chineses (os lianhuanhua) utilizados na propaganda comunista (e que tiveram distribuição no nosso país, em tradução), e os muitos livritos que foram publicados imediatamente após o 25 de Abril para, de uma forma ou outra, ajudar na revolução, propor outras revoluções ou caminhos diferentes no interior dela, ou até mesmo combater essa mesma revolução. É preciso compreender, porém, a subtil mas crucial diferença entre um fim pedagógico – a partilha do saber, a transmissão de saberes e acções – e o didactismo – que envolveria desde logo uma mais afunilada preocupação em sublinhar e manter acriticamente princípios morais, éticos (impondo-os, portanto, face à diversidade cultural e humana), e até mesmo religiosos. De certa forma é da mesma ordem de diferença entre a moral, restrita e imediata, e a ética, reflexão que se pretende mas alargada, estrutural e dialogante.
O modelo está portanto na utilização de uma linguagem que emprega as imagens, num programa expositivo de conceitos, ideologias, de maneira a transmitir não só informação a todo um grupo usualmente à margem dos canais de distribuição de informação normais (os iletrados, os trabalhadores, os pobres, os colonizados, os marginalizados, em suma, os subalternos) mas também propostas de acção. Este propósito pedagógico está sublimado numa citação de Amílcar Cabral, que Lozano usa no seu texto: “Se o domínio imperialista tem como necessidade vital praticar a opressão cultural, a libertação nacional é necessariamente um acto de cultura”. Abonnenc construiu portanto um texto complexo, multifacetado e de níveis nem sempre fáceis de destrinçar, aliados às imagens criadas mais ou menos disruptivamente pelos dois autores portugueses, que se abre a um diálogo profícuo quer entre essas metodologias dos anos 1970 (raramente continuadas, se bem que possamos encontrar em Squarzoni uma variação contemporânea e intelectual) quer entre as potencialidades que a arte permite nos nossos dias.
Este último ponto levanta questões de grande complexidade que não podem ser tratadas aqui de forma digna, mas sobre as quais o texto de Ricardo Nicolau lança linhas definidoras e provocadoras. Se bem que nos inclinemos igualmente, como o comissário o explicita, a considerar uma obra de arte enquanto gesto autónomo em si mesmo, isto é, que faz emergir uma reificação do seu “corpo”, e a sua ontologia, se assim se o pode dizer, não terá a ver com a da história, ao mesmo tempo não nos parece que uma possa ser totalmente desligada da outra. Não nos parece que “o interesse artístico fosse nulo” de uma obra de arte que procurasse respeitar uma “questão iminentemente moralista da verdade” (pg. 114), ainda que o “eminentemente moralista” não seja claro (já que “verdade” é igualmente um vocábulo que precisaria de ser formulado para se entender em que medida é ou não procurado e respeitado). Se uma obra de arte – como a exposição de Abonnenc, e, por extensão, este livro – pode querer desejar estar livre de determinadas exigências (ou responsabilidades) que se podem impor sobre os discursos históricos (começando pela ideia de “verdade”, por exemplo, ou a de respeito pela consideração e contínua verificação dos “factos”), se ela se articula com eles, não pode deixar de ter de responder a esses mesmos factores. Pode uma obra de arte “falsa” estabelecer um papel ético? Estar-se-á assim tão errado querer considerar uma dimensão ética junto às obras de arte? Ou quereremos ainda que elas se afastem cada vez mais do mundo para respeitarem jogos puramente estéticos, formais e conceptuais, permitindo dessa forma abusos não só sobre a ética, como sobre a estética? Como se compreende, isto abriria a uma discussão tremenda. Mas se estivermos em crer que uma obra de arte, enquanto instigadora de blocos de sensações, de perceptos, que levam a respostas afectivas da parte de quem as vê/lê, e para mais obras que criam uma referencialidade, e até indexicalidade com a história, não podem deixar de ter de responder a essas questões. Uma comparação aleatória, com a obra de Sandra Johnston ou Doris Salcedo, por exemplo, ambas artistas que respondem a questões sobre a violência nos seus países respectivos através de obras não-narrativas mas que não deixam de se entrosar com o tecido da “verdade histórica”, sem qualquer dobra de “moralidade”, poderiam ser contrapontos ou extensões pertinentes. E as linhas de entrosamento complementares entre este livro e os apresentados na exposição, e o filme produzido por Abonnenc e o de Maldoror, obrigam a mais investigação.
Mas isso leva-nos a outra pergunta imediata. Haverá aqui algum tipo de subsunção da banda desenhada a propósitos que lhe poderão ser externos? Voltando à questão anterior, se a obra de arte tem a sua própria autonomia face a outros tipos de discursividade, não poderemos encontrar aqui o “uso” de uma forma de arte, a banda desenhada ou o livro ilustrado, como um acto de enfraquecimento dessa mesma linguagem? Há também associações que se tornam reveladoras em relação aos ilustradores seleccionados (pouco nos importa agora saber qual o processo dessa mesma selecção). Filipe Abranches, autor de uma História de Lisboa, e Teresa Câmara Pestana, autora de Postais de Viagem, têm nas suas produções obras que encontram linhas-mestras que se entrosam com as deste projecto. É como se a sua participação não fosse somente a de “cumpridores” de um papel ao qual foram convidados – providenciar imagens para o texto de Abonnenc – mas a de dialogarem no interior desse mesmo projecto dando continuidade a algumas das linhas dos seus próprios percursos. Em relação a Abranches, poderíamos ver aqui uma extensão da identidade portuguesa pela relação com os povos colonizados, sobretudo os da Guiné, e a sua pesquisa em como a história se pode tornar matéria plástica dos seus desenhos; em relação a Câmara Pestana, estaríamos perante a continuidade da forma como havia construído um imaginário de diálogo com uma específica cultura africana, e em que medida é que ela contribuía para a identidade de um eu europeu, feminino, e como a breve cena desenhada pode condensar questões de afecto, que são também constituintes da rede que compõe a realidade. Onde Abranches parece prezar a acção, a certeza documental de um corpo ou de um ícone, Pestana gere antes as interacções entre as personagens, pela forma como as mostra olhando umas às outras, nas distâncias de um gesto, na maneira como sorriem ou choram. Seja em relação a estes autores seja em relação à linguagem envolvida, pergunta no início deste parágrafo não é respondida, mas é formulada pelo próprio livro.
Se a obra de arte pode ser vista como um arquivo – e a obra de Abonnenc parece-nos inscrever-se em toda uma prática pós-moderna e contemporânea que poderá ser descrita dessa forma, mesmo que essa forma se estipule das mais variadas maneiras, abordagens formais, implicações retóricas, políticas, etc. -, o aspecto determinante é que um arquivo deve ser sempre visto como um corpus em permanente abertura, e duplamente: não apenas permitindo a integração de novos elementos (caso contrário poderia ser vista então não como arquivo, mas colecção: reificada, congelada) mas também em que a sua própria configuração está sempre afecta a reformulações, metodológicas, de perspectiva, de arranjo interno, etc. Por outras palavras, Abonnenc não quer nem tenta “escrever história”, mas estará sem dúvida, através de todos os seus gestos artísticos, a querer associá-los a um discurso histórico, a um posicionamento que está ligado às afirmações de verdade histórica, e que continuaremos a analisar adiante. E se a exploração não é interna à da linguagem artística que nos interessa – a sua expansão de dentro para fora no que diz respeito a temas, gestos, matérias, contornos políticos, etc. -, o diálogo que lhe é permitido com o mundo artístico (representado pelo espaço de Serralves) não deixa de ser frutífero.
Para além das camadas narratológicas que já mencionámos, existem outros níveis de questionamento que se prendem com esta associação à história. Por exemplo, a discrepância entre o texto e a imagem pode-nos levar a uma analogia. Tratando-se de uma reportagem feita no local com os militantes, poderemos entender, nesta sequência argumentativa, a camada do texto como a da “história oral” dessas pessoas que deixam os seus testemunhos. E apesar do jornalista sem nome levar uma câmara fotográfica, nenhuma das imagens remete a essa dimensão – nem com transformações que pudessem fazer pensar nisso -, levando antes a imaginar essas imagens a tomarem o lugar de um narrador externo, omnisciente, ou até mesmo o lugar do “facto”, do documento atestado, até pela qualidade icónica de algumas das composições. Seja como for, To Whom Who Keeps a Record passa a ser imediatamente parte de um universo mediático que contribui para a “memória pública”, constituída por toda a espécie de textos (no sentido lato da palavra) que podem ser, e são, produzidos, transmitidos e experienciados. Um livro criado por um autor francês, escrito em inglês, desenhado por dois portugueses e lançado numa e por uma instituição portuguesa dedicada às artes contemporâneas, não pode deixar de desenhar ela mesma um complexo contorno de importância política nesse sentido. O próprio título (a citação musical parece-nos secundária) remete à necessidade do registo, e à comemoração ou homenagem a quem os cumpre. As vozes presentes nesta(s) narrativa(s) – até mesmo na sua possível confluência com a da “memória/história oral” (já que o que o jornalista faz é captar e dar forma escrita, - um record - registada, do que é “dito” pelos testemunhos directos) – são aquelas que estavam excluídas dos registos oficiais e históricos, vozes que haviam sido ignoradas senão mesmo silenciadas. Haviam e são-no ainda, uma vez que Portugal ainda não encetou um verdadeiro, sério e estruturado balanço sobre a sua relação com os povos colonizados por si, as responsabilidades históricas, com os imigrantes daí advindos e as relações económicas e políticas presentes.
Uma possível revisão, contestação ou reformulação do passado não apenas envolve um processo de repensar os eventos, a tal ideia de “verdade”, mas igualmente uma reconsideração do próprio posicionamento de quem emite o discurso sobre o passado no presente. Como escrevem Katharine Hodgkin e Susannah Radstone na sua introdução a Memory, History, Nation. Contested Pasts, “A nossa compreensão do passado tem consequências estratégicas, políticas e éticas”. Ora, aquele grémio autoral (e permitam amalgamar as circunstâncias pessoais de cada um), pertencendo a uma geração imediatamente a seguir à que fez, viveu, experienciou a guerra, e que viu a emergência de um Estado democrático moderno mas que ao mesmo tempo negligenciava a memória do seu passado recente, não é de todo desprovida de um significado importante.
Mas o livro não fala deles. Fala da geração de guineenses que participou nas lutas, na guerra, no sofrimento. Se aceitarmos – mesmo que apenas ao nível da diegese – que temos aqui acesso às vozes dessas pessoas, elas podem mesmo surgir como mais “autênticas”, pela sua qualidade “oral” – e reparem-se nos sinais de inscrição imediata desses testemunhos (como em pormenores que têm a ver com o corpo: cansaço, esforços, crescimentos, dores, sujeitos a factores externos). Elas podem ser, portanto, uma contra-narrativa. Que não pretende sequer “negociar” mas contrapor. Não se procura nenhuma espécie de equilíbrio. É uma contra-voz.
Os portugueses não são directamente representados nesta narrativa. Surgem em dois papéis, ambos sempre “deslocados” da representação central - a dos militantes guineenses -, a saber, a de agentes históricos de invasão, colonização e violência sobre estas populações ao longo de séculos, com uma particular crescente intervenção no século XX, quando os portugueses se vêem obrigados à “efectiva ocupação do território”, e a da força militar repressiva que age em nome do poder da metrópole, capital da potência colonizadora. Esta “secundarização”, por assim dizer, não tem nada de problemática em si mesmo, se tomarmos em conta que também as narrativas que perspectivavam a guerra colonial, da nossa parte, digamos assim, obedeceriam a outras estratégias focalizadoras, canceladoras desses mesmos povos (com excepção dos papéis que lhe estavam reservados para melhor definirem a “nossa” missão). No campo restrito da banda desenhada, veja-se, por exemplo, Comandos ao Ataque, Mamassuma (que prometia vir a ser o primeiro de uma série de pequenas novelas), de 1977, de Vassalo Miranda, mescla de nostalgia e propaganda tardia (que o autor não assinava, e acção que procuraria continuar noutros dois livros dos anos 1990): informado pelo exarcebado anticomunismo do pós-25 de Novembro, de uma inscrição directa na guerra da parte do autor, e uma crença no alcance do seu gesto artístico, apresenta uma visão algo desequilibrada em termos de agência dos intervenientes (os “turras” minando a relação entre os povos, os portugueses defendendo um humanismo civilizador). É verdade que, tendo em conta alguns trabalhos emergentes no período imediato às Guerras Coloniais, como a colaboração de Victor Mesquita e Machado da Graça (“Mataram-no a 24”) ou a biografia em banda desenhada de Amílcar Cabral, o maior inimigo do Estado português no período imediatamente anterior - ambas as histórias na Visão -, temos exemplos em todo o espectro da ocultação ou revelação das vozes envolvidas. To Whom… parece “calar” a perspectiva portuguesa, mas ele é afinal um gesto feito aqui, ou seja, precisamente no seio da maior presença da voz que é protelada.
O que se encontra aqui estabelecido, de novo com Radstone e Hodgkins, é “a capacidade que povos minoritários ou subordinados têm em gerar narrativas alternativas dos seus próprios passados”. Trata-se de uma economia de conflito e negociação imaginária da parte dos povos que viveram, até há pouco, num papel subordinado no interior de um enquadramento dominado por um poder – o português, imperialista e colonialista – que criava as próprias condições de possibilidade dos discursos quer da história quer da memória (que ganha substância através de toda a espécie de gestos comemorativos, de datas a monumentos a documentários e obras artísticas, de que esta agora faz parte). É nesse domínio e autoridade, no qual não tinham acesso à voz, que falam agora: a partir de um livro publicado por uma instituição privada portuguesa, dedicada às artes, mormente ocidentais e contemporâneas, num quadro económico capitalista. Mas é algo perigoso, erróneo e até abusivo falar destas “vozes” quando sabemos que o livro não é composto por essas vozes, mas uma ficção que fala por elas. Uma questão similar àquela que foi levantada em relação a Soraïa e a Habibi, e que poderia consubstanciar-se numa nova forma nova de colonização (da parte de um grupo mais ou menos homogéneo, de intelectuais liberais portugueses, público generalizado de Serralves), objectificando quem fala enquanto personagens, e não gente viva.
Seja como for, como escreve Jill Bennett em relação a outra ordem de obras de arte, “uma resposta afectiva pode ser despertada através de imagens visuais” (Empathic Vision). E é esse tipo de empatia que os autores conseguem fomentar. São portanto todos estes gestos – obra estética autónoma, experimentação e confluência de formas artísticas, contra-narrativa da memória e das vozes subalternas, reapropriação e comodificação da história, gesto dialogante, documento (transformativo) histórico/da verdade, ficção – que To Whom Who Keeps a Record regista e oferta.
Nota final: agradecimentos a Filipe Abranches, pelo empréstimo do Livre d’Histoire, e algumas informações.
13 de julho de 2012
To Whom Who Keeps a Record. Mathieu Abonnenc, Filipe Abranches e Teresa Câmara Pestana (Fundação de Serralves)
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:43 da manhã
Etiquetas: França-Bélgica, Ilustração, Portugal, Territórios contíguos
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6 comentários:
Parabéns aos artistas por este livro fantástico. Era bom que Serralves editasse mais livros destes! Abraços
Acho que a primeira personagem jamais poderia ser uma mulher muito menos negra.
Fiz o que o Mathieu me pediu, inclusive 3 estilos diferentes um deles no estilo dos postais de viagem .
Vejo o Mathieu como um respigador de memórias,mas sem grande experiencia de vida ..deduzo isso da sua escrita e das conversas que tive com ele
. Mais uma vez discordo da tua nocäo de" feminino- fopinhas- dos- olhares- e- dos- sorrisos" näo passa de um preconceito redutor
Sim o livro ficou lindo sem dúvida,mas näo vi a exposicäo, continuo sem saber qual é a arte do Mathieu
Marco, Serralves e quaisquer outras plataformas que se deixassem de clubes restritos e se entregassem deveras à autonomia das disciplinas, sem pejos.
Teresa, como já tive oportunidade de te dizer, penso que haverá um mal-entendido e não pretendo, de forma alguma, reduzir o "feminino" a fopinhas. Há, no entanto, uma atenção para com o outro que tem a ver com afectos e relacionamento interpessoal que emergiu com uma nova forma de ver/fazer/pensar, em parte graças ao feminismo (nesse sentido, não têm de ser mulheres a fazê-lo e algumas não o fazem). Seja como for, há uma diferença estrutural na forma como respondeste ao desafio do Abonnenc em relação ao modo do Filipe Abranches. Era sobretudo isso que queria sublinhar (entre as 17 outras coisas... A virtude da "síntese" não me pertence, de facto).
"Serralves e quaisquer outras plataformas que se deixassem de clubes restritos e se entregassem deveras à autonomia das disciplinas, sem pejos."
Isto está de acordo com o que eu penso há muito tempo acerca da arte e da forma de como se sobrevive enquanto artista...artistas deveriam ser trabalhadores iguais a todas as outras pessoas , o seu trabalho näo pode depender do management de egos, de relacöes públicas, de contactos, de graxas,de gostarem ou näo de nós, nesse sentido, uma pessoa que seja pouco social , ou socialmente inconveniente como eu, que digo o que penso onde me apetece, e um largo milhar de outros artistas que podem ser muita coisa, de timídos a desorganizados nunca tem trabalho;
Näo me parece justo que em matéria de trabalho temos que depender da sorte qd há anos esfolamos e labutamos sem parar...
Näo é por acaso que as pessoas vaidosas/ "narcisas" se däo melhor no que toca a sucesso .
Sem desfazer o trabalho do Filipe Abranches que sempre gostei muito, esse iconográfico a que te referes, tem a ver com um uso exagerado de fotografias a que ele recorreu, provávelmente por falta de tempo
"tenhamos que depender da sorte"
Näo esquecer que foi o Pedro Nora quem transformou um monte de palavras e desenhos num belo livro
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