Nota inicial: a recepção deste texto foi feita a quatro mãos, com a investigadora Ana Matilde Sousa. Apesar da redacção do presente texto ser da nossa responsabilidade, algumas das ideias e mesmo palavras foram colhidas da sua lavra e/ou discutidas em parceria, ainda que tomemos nós toda a responsabilidade pelos erros ou más interpretações. Prevê-se uma versão em língua inglesa no International Journal of Comic Art, numa redacção de A. M. Sousa.
A exponenciação dos estudos de banda desenhada, como temos repetido, leva a que surjam cada vez mais estudos extremamente circunscritos e específicos, como é o caso de Drawing on Tradition. Juntamente com Graven Images, Do the Gods Wear Capes? e outros trabalhos, este volume vem juntar-se aos estudos cruzados de religião e banda desenhada. O seu autor está menos interessado em providenciar-nos uma tipologia de obras que seriam o resultado de uma análise de conteúdos, provinda de um corpus substancial, do que focar-se num estudo sobre usos. Drawing on Tradition, portanto, não será uma mera exposição de representações, isto é, registos, simbolizações ou retratos a posteriori de uma realidade preexistente e objectiva, mas uma leitura de textos que fazem parte da contínua performatividade da religiosidade e espiritualidade, entendida em termos muito precisos. Thomas distingue essas duas palavras, e alerta ao perigo em entendê-las dos seus modos correntes e diários. Como ele explica no capítulo introdutório, “este livro é sobre os modos diversos e criativos através dos quais os elementos constitutivos da cultura da mangá e do animé são lançados, recebidos, interpretados e como interagem mental e fisicamente com os seus conteúdos narrativos e visuais. Além disso, centra-se explicitamente como é que o cumprem de maneira a reflectir enquadramentos mentais religiosos [religious frames of mind]” (31-32).
Esta noção é algo complexa. Aliás, toda a discussão da religião abre inúmeras vias problemáticas, como se fosse possível opor um (suposto) conjunto de princípios religiosos puros e prístinos das fés e denominações, por um lado, e, por outro, as interpretações que poderiam emergir no seio de uma qualquer mangá ou animé, ou mesmo na leitura desses textos por uma determinada comunidade. No entanto, o autor tenta explicitar todos os termos o melhor possível. Em primeiro lugar, “O conceito do enquadramento mental religioso servirá de aparato crítico para a apreensão das várias formas como a mangá e o animé servem de mediação da recriação da religião” (27). Esta última, por sua vez, “é definida como um modo particularmente imaginativo com uma disposição inerentemente social que pode ser observada em rituais óbvios ou declarações públicas de crenças” (11). Portanto, quer a banda desenhada quer a animação japonesas são vistas aqui como meios em todo o seu sentido, isto é, enquanto media e enquanto mediadoras dessas mesmas experiências ou processos complexos de sociabilização e conceptualização da vida. Mas o paradoxo deve ser mantido, precisamente para alertar ao espectro de liberdade entre criação e recepção: “Eu junto as palavras shukyo (religião) e asobi (jogo {play]) no neologismo shukyo asobi (…) [o qual] também ilumina os aspectos similarmente imaginativos da religião e recriação, o que nos ajuda a elucidar os modos como um produto de um determinado meio pode ser percebido como, a um só tempo, divertido e piedoso pelo lado da produção ou frívolo e profundo da parte da recepção” (16).
O investigador especifica: “Um enquadramento mental religioso está presente quando uma determinada narrativa anima o público, inspirando actividades de devoção ou ritualísticas tais como a criação de tabuletas devotas (ema) em templos endereçadas, não às divindades [shinto, neste caso] mas às suas personagens favoritas” (31). De facto, o autor cita e mostra um par de exemplos disto, com uma fotografia de um ema dedicado a uma personagem das Sailor Moon (77), mas não é muito claro em como é que esse comportamento pode ser visto como “devoto”? Aliás, o autor chega mesmo a escrever que “estudos de religião e religiosidade não precisam do estudo de religiões formais e das suas doutrinas”. Porém, e admitindo abertamente a nossa ignorância neste campo, por exemplo do que constituiria uma “religião não-formal” ou “sem doutrina” de qualquer espécie, não compreendemos a possibilidade dessa ausência.
O autor não pretende ser exaustivo de alguma maneira, mas antes pertinente nas suas opções [afinal, pode-se identificar temas religiosos em quase qualquer texto, ancorado na vida quotidiana ou fantasioso, psicadélico como Ultraheaven ou action-packed como Gantz]. No entanto, mesmo que ele admita, por exemplo, não tratar a shoju ou a josei mangá de modo suficiente, por não estar tão familiarizado com essa produção, acaba por perder assim uma dimensão de inquirição extremamente interessante. A pergunta a colocar seria a de se a experiência da religião é presidida por questões de género/sexo. No quadro heurístico que J.B. Thomas apresenta, porém, uma leitura mais alargada do corpus possível poderia levar a apontar algumas ausências, especialmente no que diz respeito à ritualização, elemento fulcral na religião. Não sendo de forma alguma uma obra-prima da mangá ou animé de modo intrínseco (entenda-se isso de que maneira se desejar), Death Note é um modelo de comportamentos e imitações ritualizadas extremamente produtivo no quadro de uma investigação desta natureza [como a fabricação dos "cadernos"].
Mas se a obra em si é citada na investigação, o seu uso transformativo (também verificado em Portugal) está ausente dela. Já o cosplay surge não enquanto “acto religioso específico”, mas pelo menos sugerido enquanto “acto ritualizado através do qual os fãs entram em contacto com a sua personagem favorita” (76), ainda que o autor não providencie formas claras - que julgamos serem necessárias, mas podemos estar errados - de distinguir “modas passageiras” (mesmo que as entendamos com Baudelaire enquanto facetas de ideais eternos) de ritos religiosos propriamente ditos. Haverá seguramente diferenças entre processos históricos transculturais complexos e prolongados e tendências que mudam a cada cinco anos… A menção do surgimento de novos movimentos religiosos no Japão são fenómenos altamente interessantes, mas falta um ponto de comparação com situações ora similares noutros contextos, ora uma mais fincada explicação dessas emergências.
Em termos gerais, o que se passa são tratamentos algo sumários de certas questões, que parecem pedir por um desenvolvimento mais alongado. Digamos que o autor identifica com exactidão muitos dos pontos que se tornariam pertinentes neste enquadramento disciplinar, mas em vez de os transformar num projecto de análises mais estendidas, assinala-as e suspende esse desenvolvimento. A título de ilustração, reparemos na conclusão a que J. B. Thomas chega, depois de citar extensivamente um estudo de Philip Lutgendorf sobre um filme indiano: “A análise dele revela o processo recíproco e recorrente entre a doutrina existente e o ritual mediado, entre o novo ritual e a doutrina renovada (…). Os filmes podem então servir quer de pontos de passagem quer de criadores de culturas religiosas (…). Eu sugiro que os meios de comunicação [media] não usam ou criam religiões, mas são antes as pessoas que o fazem. Os autores, os artistas, os realizadores, e os públicos fazem-no através de actos pró-activos de execução e interpretação” (109). Mas qual será a diferença, então, entre o exemplo particular citado (o filme Jai Santoshi Maa), os vários casos de estudo de Thomas e, arrisquemos, The Rocky Horror Picture Show, que compreende visionamentos colectivos altamente ritualizados? Mesmo que aceitemos que os “filmes são muitas vezes usados ritualmente (repetidamente, como textos litúrgicos, como escritura) tanto para edificação como entretenimento (104)”, não haverá uma diferença na forma como repetimos o visionamento de um DVD em casa, ir ao cinema em grupo e vestido a rigor, mascararmo-nos de uma determinada personagem e repetir as frases mais célebres, por um lado, e ir à missa, discutir as Escrituras ou orar cinco vezes ao dia por outro? Uma ênfase mais forte em enquadramentos filosóficos, portanto, parece-nos estar ausente destas discussões.
Vejamos alguns outros exemplos, rapidamente. Quando se refere a Buddha, do “deus da mangá” Tezuka, Thomas escreve que esse texto é tratado como “sagrado” por si mesmo (91), mas não apresenta uma contextualização detalhada ou específica de como é que esse entendimento se poderá dar. Baseando-se num caso, aparentemente único, de um autor de mangá que se tornou líder religioso, Yamamoto Sumika, as generalizações que faz sobre esta arte fazer emergir “comunidades imaginadas” concretas a partir de rumores, e não de uma análise directa, não abona a favor da solidez da ideia. Um outro caso (o mangaka Kuroda Minoru, autor de histórias de contornos ocultistas e que fundaria a Subikari Koha Sekai Shindan ou Corporação Divina do Mundo das Onda de Luz de Su) é estudado, mas muitos detalhes estão omissos. O autor também parece confiar em demasia nas declarações de intenção dos autores e nas recepções dos espectadores, mais do que numa análise textual (vejam-se as leituras dos filmes de Miyazaki, no capítulo 3). É uma posição, e nem sempre a “falácia da intenção” pode ser sacrossanta, mas nós cremos que essa pressuposição pode levar a análises incompletas ou mesmo erradas.
O autor também não deixa de fazer algumas introduções como que incompletas, como quando escreve que “A mangá é um tipo específico de banda desenhada. São romances [novels] ilustrados e serializados que compreendem vinhetas colocadas lado a lado que combinam art [artwork] e texto” (3). Esta afirmação não apenas essencializa a banda desenhada japonesa como algo necessariamente diferente de qualquer outra coisa produzida pelo globo inteiro parecido com ela, como assuma algumas dessas características como necessárias em si mesmas - a serialização, a narrativa, a existência de texto -, prevenindo que outros objectos possam ser englobados nessa palavra. Aliás, há momentos em que o uso de palavras como “género”, “formato”, categoria”, “forma”, que não são sinónimos, criam uma amálgama mais indecisa do que clara. E apesar de ser verdade que na língua japonesa o termo “mangá” abraça certo tipo de textos que não seriam considerados banda desenhada noutras línguas, como os cartoons, por exemplo, ainda assim estabelece-se aí uma diferenciação escusada. Por outro lado, o autor também parece apoiar-se em demasia nos livros de Scott McCloud para o seu vocabulário e instrumentos teórico-analíticos específicos, empregando por atacado os grandes descritivos do artista-teorizador norte-americano da “clausura” ou “conclusão” [closure] e “composição” [compositing]. Ora, se Thomas estivesse mais familiarizado com os quadros teóricos que tem sido desenvolvidos nos Estudos de Banda Desenhada dos últimos anos, ele poderia ter feito um bom uso de conceitos tais como os da multimodalidade, da tressage/entraçamento, e até mesmo prestado maior atenção aos estilos específicos a (alguma da) mangá da representação/figuração dos corpos, desde os chibi “queridos” às proporções de oito cabeças típicas da mangá shonen (que se revelaria mais uma vez produtivo para as questões de género, mas também de distribuição demográfica, estratégias narrativas e representacionais, e por aí fora). A sua breve história de várias tradições visuais ou visuais-narrativas autóctones ao Japão também faz emergir preocupantes aspectos de essencialização histórica, que mitifica o surgimento desta linguagem naquele país, evitando discutir as influências significativas por formas “estrangeiras” e criando um fictício contínuo entre as várias formas antigas, sobretudo se têm algum conteúdo religioso, com as novas “Apesar de diferirem significativamente de meios pré-modernos [como os citados emaki, etoki, kibyoshi e kamishibai], a mangá e o animé herdam o legado da ficção ilustrada vernácula japonesa, muita da qual se relaciona historicamente com a religião” (56).
Acima de tudo, e ainda por “responsabilidade” de McCloud, encontramos uma aceitação da teoria de identificação com as personagens, muito problemática, e que se verifica vezes sem conta na escrita sobre banda desenhada (e outros meios artísticos parentes), como aliás verificámos noutros casos anteriores. O problema desta teoria é que mistura a “identificação” semiótica com a psicanalítica, simplificando drástica, se não erroneamente, a complexa e multinivelada experiência cognitiva da relação que os leitores/espectadores estabelecem com as personagens. Ao aceitar a teoria de McCloud de que quanto mais são as personagens simples e/ou icónicas mais forte é a identificação dos leitores com essa mesma personagem, Thomas menciona a obra 20th Century Boys, de Urasawa, a qual “providencia distanciamento do antagonista [o Amigo]… através da sua representação sempre com uma máscara” (46). Mas essa máscara não acaba por simplificar ou “iconificar” o rosto, tornando-o mais simples, logo mais fácil de nos identificarmos com ele? Esta teoria de identificação parece ser tão generalizada que muito raramente encontramos sérias revisões dela (Jan Baetens, todavia, apresentou uma perfeita correcção dela, em The Language of Comics: Word and Image). O autor repete uma situação similar mais tarde, também deixada por analisar, quando escreve “o uso eficiente e efectivo do exagero e da hipérbole - ajuda a dissolver as fronteiras entre a personalidade da personagem e as do espectador” (49). Mas como é que isso sucede? Em que medida é que a leitura ou visionamento de uma obra ficcional, num processo particularmente regrado - numa sala de cinema, num sofá, etc. -, “apaga” a percepção de si mesmo?
Em termos gerais, a prosa de J. B. Thomas é muito legível e cativante, encontrando um balanço excelente entre, por um lado, um bom número de anedotas e experiências mais pessoais (que não apenas explicam situações como tornam o processo transparente), e por outro, a sua experiência académica especializada e resultados de trabalho de campo, tornando todo o livro num projecto muito acessível a leigos ou investigadores cujos interesses podem não coincidir totalmente (ora pela religião, ora pela mangá, ora pela cultura popular japonesa). Isso não significa que não haja lapsos em dimensões de uma grande especialização mas que ficam por contextualizar ou introduzir, criando pequenos blocos de obscuridade (nomes de publicações, autores, etc.). Mesmo na era da Wikipédia, é aconselhável que os autores integrem melhores contextualizações dos elementos empregues nos seus discursos.
O autor baseia-se em algum trabalho de campo, ainda que ele próprio admita que essa dimensão seja “desenhada com imperfeição” (60), e surja mais enquanto uma espécie de carta de intenções para desenvolvimento futuro. Estamos longe da monumentalização sociológica de um Pellitteri. Porém, e apesar das limitações apresentadas, o seu corpus é impressionante, uma vez que não bebe somente daquela banda desenhada ou animação acessível em traduções inglesas ou divulgação oficial, mas também através de outros canais de acesso, mesmo que menos legais (torrents, fóruns, scanlations), já que eles fazem parte desta cultura específica. No entanto, por razões de clareza de argumentação, o autor optou por utilizar no mínimo obras de acessibilidade limitada (apenas existentes em japonês, de autores ou revistas mais obscuras, etc.), de maneira a permitir uma contra-proposta da sua leitura. Esta abarca uma variedade significativa, como dissemos, sobre a qual se propõe a fazer leituras muito estimulantes. Encontraremos o “Ciclo da Fénix” de Tezuka e o Death Note de Ohba e Obata, mas também o divertido Saint Young Men de Hikaru Nakamura, e filmes de animação tão famosos como Pom Poko de Takahata Isao ou Sen to Chihiro de Hayao Miyazaki como projectos mais obscuros (e muito provavelmente menos apelativos a um público alargado) como produções de algumas seitas particulares ora de banda desenhada (como por exemplo Metsubo no hi do culto Aum Shirinkyo) ora de animação (Eien no ho/The Laws of Eternity, do movimento “Ciência Feliz”, ou Kofuku no Kagaku).
O último capítulo é dedicado exclusivamente ao Aum Shinrikyo, tristemente célebres pelo ataque com gás sarin que levaram a cabo no metro de Tóquio em 1995. A relação deste culto - o autor explica rigorosamente o uso deste termo - com a mangá e o animé é relativamente conhecida e óbvia, uma vez que ele mesmo emergiu nas páginas de revistas ocultistas locais. Mas J. B. Thomas regressa a ele com um estudo atento e bem ancorado, por um lado perscrutando a banda desenhada e a animação que provavelmente terá influenciado os próprios princípios desse movimento (tais como Nausicaä e Akira), e por outro abordando as produções do próprio culto ou as formas como trabalhos de outros autores criariam representações ou directas ou baseadas no modo de funcionamento e pensamento do Aum, desde tratamentos superficiais como aqueles verificados em Charisma a tratamentos mais ambivalentes, como o de Urasawa em 20th Century Boys.
O autor conclui que a “mangá e o animé oferecem-nos uma vista para as complexas e mutáveis relações entre o secularismo, a religiosidade e o entretenimento que influenciam as atitudes contemporâneas concernentes às práticas e afiliações religiosas no Japão. (…) estes meios [são] ferramentas efectivas na disseminação de conteúdos religiosos” (152). Essa missão é de facto cumprida por este pequeno volume, mas algumas das dimensões fazem-nos desejar um espaço maior desse tratamento.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro, e a Matilde Sousa, pelo desafio aceite e a iluminação sobre muitos aspectos.
31 de outubro de 2013
Drawing on Tradition. Manga, Anime, and Religion in Contemporary Japan. Jolyon Baraka Thomas (University of Hawai’i Press)
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30 de outubro de 2013
Autobiographical Comics. Life Writing in Pictures. Elisabeth El Refaie (University Press of Mississippi)
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A autora elegeu cerca de 80 títulos de bandas desenhadas autobiográficas, o mais diversas possíveis em termos de época, nacionalidades, estilos e humores, ainda que não tenha procurado, por um lado, uma exaustão impossível mas, por outro lado, que pouco seria reveladora. Por exemplo, não existem referências a trabalhos japoneses ou coreanos, apesar da sua relativa acessibilidade através de traduções, e tampouco de trabalhos de línguas que, imaginamos, a autora não domine (português, por hipótese). No entanto, a ausência ou presença deste ou daquele título é menos importante do que a forma como a autora os trata. Ora, El Refaie apresenta menos uma colecção de close readings de cada um do que vai tecendo considerações gerais e alargadas, que criam um tecido no qual os elementos desses mesmos livros estão presentes. Em vez de criar fichas de leitura, ela vai citando-os aqui e ali à medida que deles precisa para sustentar uma ideia, ou por vezes cria mesmo noções a partir de alguns modelos exemplares. Assim sendo, é óbvio que haja uma série de títulos repetidos várias vezes em diferentes contextos, tais como Fun Home ou Persepolis, ao passo que outros trabalhos são apenas citados uma vez.
Na verdade, não estamos seguros se esta é uma boa estratégia, já que algumas das noções apresentadas, sendo de uma extrema pertinência e frutíferas em investigações futuras, carecem de uma imediata aplicabilidade ou explicação mais clara, que estaria garantida se tivesse sido tentada pela própria autora junto a um conjunto mais alargado de trabalhos. Não há afinal uma procura por uma distinção mais clara entre esse agrupamento de trabalhos, mas antes uma amálgama deles no descritivo “autobiografia”. Ainda que autora deixe algumas anotações sobre a sua intenção e atenção para com as diferenças entre trabalhos, uma mais nítida explicitação entre os fitos ontológicos diversos de uma abordagem jornalística (Sacco, Rall, outros) e entre um projecto de auto-questionamento levaria de certeza a resultados estimulantes. Seja como for, uma vez que todos estes trabalhos, sendo eles publicados, estão sob “um processo de ‘comemoração’, no sentido em que memórias privadas são moldadas numa narrativa para consumo público”, como escreve a autora na página 8, estes são passíveis de um tratamento aberto enquanto parte de um corpus maior, a partir do qual se podem auscultar noções transversais.
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No entanto, parece-nos que El Refaie não procura uma mais vincada exploração das questões de autoria, do papel do autor propriamente dito, sobretudo quando isso se torna crucial em projectos menos óbvios como os dois grandes projectos de Emannuel Guibert, La guerre d’Alan e Le photographe. Apesar da autora os citar, e trabalhar, assim como a falsa autobiografia de Judith Forest, por exemplo, não se dá aqui uma discussão mais prolongada sobre as implicações ontológicas de um e outro caso. Aliás, ela acaba por colocar mesmo de lado os conceitos de “monstrador” e “meganarrador” - que haviam sido tentados pelos paladinos da semiótica na banda desenhada, como Ph. Marion, Th. Groensteen, etc. - por considerá-los demasiados “desajeitados” (cumbersome, 58), preferindo antes regressar à noção do “autor implícito”. Se não deixa de ser verdade que eles não são imediatamente transparentes, a verdade é que se tratam de tentativas de teorizar e criar conceitos necessários para chegar a uma clareza maior na discussão e compreensão das especificidades formais e processuais da banda desenhada. Ao se discutir, por exemplo, a banda desenhada de Harvey Pekar, temos sempre de ter em mente que os desenhos que estamos a ver/ler foram criados por outra pessoa que não Pekar, e que esse(s) filtro(s) mediador(es) criarão seguramente inflexões sobre o que está a ser contado. Por hipótese, não haverá mais leitores interessados em verem as histórias de Pekar ilustradas por Crumb e Sacco do que artistas menos famosos (e, discutivelmente, menos impressionantes)? Ou bem pelo contrário, não haverá uma “cegueira” particular para aqueles leitores que se centram na experiência de Pekar independentemente da camada visual?
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A segunda noção investigada pela autora é a maneira como o tempo é gerido na banda desenhada autobiográfica, a negociação permanente entre, como reza o título do capítulo, a “comemoração do passado” e a “antecipação do futuro”. Quer dizer, ainda que este género, enquanto parte daquilo que se chama “life writing” ou “escrita de vida”, tenha uma dimensão sobretudo retrospectiva, há uma outra dimensão, de antecipação, que tem um papel fundamental (103) e que muitas vez serão essas “esperanças e projecções futuras que também estão cheias de história e fantasia” (106) que irão presidir à construção estruturação da narrativa ofertada. Se as close readings de El Refaie, neste outro ponto, são muito boas, existem alguns momentos em que se instalam pequenas dúvidas sobre o seu tratamento geral. Acima de tudo, se por um lado nos parece que alguns trabalhos - no caso, discute-se Satrapi - não apenas exploram “resistências de representação”, mas transformam essas resistências em elementos constitutivos do próprio trabalho, por outro não nos parece que seja uma boa estratégia - e muito menos em círculos académicos - essencializar as dimensões associativas e fragmentárias da banda desenhada para a tornar o veículo “ideal” para a representação do trauma (v. pg. 133-134). Se é verdade que a banda desenhada é usualmente constituída por múltiplas imagens pequenas isoladas, o que leva ao surgimento e uma estrutura por partes e elipses, nem todas as narrativas acentuam essa fragmentação, havendo mesmo muitas que tentam ocultar essa dimensão através de estratégias de continuidade, fluidez e transparência narrativa, “naturalidade”, e por aí fora. Aqui depende muito do trabalho específico de que se está a falar.
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Adicionalmente, a discussão - que bebe da psicanálise - da mistura entre facto e ficção, fantasia e descrição, tem um papel importante na fabricação dos discursos de autenticidade, mas que é impossível expor e discutir neste espaço.
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A questão da empatia é muito interpelante, sobretudo quando se aborda a limitação de sentirmos essa emoção tão forte e tão profunda em relação a personagens não-reais (mesmo no caso da autobiografia, não estamos a falar de uma confrontação directa com alguém, mas antes com uma construção textual e visual).
O livro de El Refaie é um contributo importantíssimo para a contínua discussão de vários pormenores teóricos deste género em particular (e dos possíveis cruzamentos ou contaminações dele com outros). Não é, de forma alguma, um volume de introdução ao género, pois ele exige desde logo alguma familiaridade com um grupo considerável de textos primários, e até mesmo alguma intimidade com os elementos comuns entre eles, assim como com alguns dos textos inaugurais da sua abordagem crítica. Além disso, não é de forma algum um gesto isolado, antes vindo colocar-se ao lado de projectos tais como Graphic Women, Graphic Subjects, ou mesmo monografias como aquela sobre Lynda Barry.
E se muitas das questões parecem relativamente insuficientemente enquadradas, ou seguem ideias anteriormente expostas e criticáveis, o livro possui um número suficientemente de ideias estimulantes, e uma estruturação clara, para o tornar parte de uma biblioteca crescente neste tópico específico.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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Etiquetas: Academia, Autobiografia
29 de outubro de 2013
The Daniel Clowes Reader. Ken Parille, ed. (Fantagraphics)
É óbvio que esta é uma questão extremamente complicada, uma vez uma definição curta e consensual de edição crítica não é possível mesmo nos seus campos mais habituais, como a literatura ou, a origem, os estudos bíblicos. Por exemplo, a escolha do aparato crítico (notas de rodapé, notas finais, variações, manuscritos, notas contextualizadoras, glossários, etc.) pode ser discutível, ou a inclusão ou não de ensaios especializados ou uma longa introdução. O próprio texto original pode levar a dimensões diferentes, se se está a falar de um texto obscuro que precisa de uma grande contextualização (ex. Alan Dunn), ou de algo que teve tantas versões que precisa de uma navegação específica (a questão ne varietur, se se mergulha na crítica dita “genética”, se se presta atenção para com a transmediação, etc., ex. as versões de Tintin), ou até de algo que pensamos ser muito familiar mas precisa de um reenquadramento (quando existe uma história de recepção complicada, por exemplo, A Contract with God). Numa entrevista dada a Tom Spurgeon, Parille afirmou o seguinte: “Queríamos usar o termo ‘reader’ [antologia] e ‘edição crítica’ porque estas palavras significam alguma coisa junto a algumas pessoas. Mas porque elas não significam nada para outras, usámos o nosso subtítulo para explicar os conteúdos: este livro tem banda desenhada, mas também ensaios, entrevistas, e notas. Uma vez que este tipo de antologias é algo novo na banda desenhada/crítica de banda desenhada - a maior parte das antologias ou juntam materiais primários (banda desenhada) ou material secundário (ensaios, etc.) - tínhamos de ser explícitos. E uma vez que Ghost World é a obra mais conhecida de Clowes e ele está no The Reader, também aparece no título”. Por isso Parille optou por incluir excertos ou citações de entrevistas, ensaios anteriormente publicados ou novos para a colecção (com abordagens pessoais, históricas, técnicas, que mergulham na teoria literária, em interpretações psicanalíticas, etc.).
Sendo Ken Parille autor de toda uma série de textos que revelam uma brilhante capacidade de análise, como já havíamos notado a propósito da sua participação em The Art of Daniel Clowes, Modern Cartoonist, de facto, não é apenas o seu trabalho de edição, revelando fontes, desdobrando referências relativamente obscuras, explicando citações internas, assinalando pistas autobiográficas meio-veladas de Clowes nas suas histórias (sem nunca abusar desse aspecto para a interpretação) que torna este volume numa excelente adição a essa compreensão, mas os seus gestos de close reading, ou deveríamos antes dizer “very” close reading, gestos esses supernos. De facto, como qualquer boa leitura interpretativa e argumentada de banda desenhada (ou de uma qualquer obra de arte), Parille obriga-nos não apenas a reler a obra, para notar mesmo as pistas que ele desvenda, como a reler sempre qualquer obra com o seu nível de atenção.
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Como escreve Parille, Clowes é um “artista igualmente realizado em formas longas [da banda desenhada] como a ‘graphic novel’ [cujo termo o artista não gosta, mas aceita como descritivo], mas também histórias curtas, bandas desenhadas de uma página, e o formato da tira de jornal” (25). Talvez seja essa a razão de dividir o livro em três secções, depois de uma introdução já em si variada. A primeira secção é dedicada a Ghost World, mas também ao seu tema principal, a da adolescência, sobretudo feminina. Reúnem-se entrevistas, ensaios pessoais, ensaios críticos ou históricos, e material de referência, como glossários ou notas. Alguns dos materiais são coligidos de publicações anteriores, outros são inéditos. A segunda secção concentra-se em histórias curtas, providenciando-se as histórias (e suas anotações respectivas) “Blue Italian Shit”, “The Party” e “Black Nylon”. A terceira secção é dedicada a histórias ainda mais curtas, algumas de duas ou uma ou mesmo meia-página, revisitando-se a famosa “Art School Confidential”, por exemplo (que foi adaptada ao cinema, num resultado algo mediano). Esta divisão em formatos ou escalas é justa, já que há uma claríssima dificuldade em dividir a obra de Clowes de acordo com os mais regulares princípios do género, pois eles acabam misturados: é “Art School Confidential” estritamente autobiográfico? Ou é uma curta sarcástica que apresenta uma galeria de estereótipos? Ou é antes humor, simplesmente? E Ghost World será descritível suficientemente como “não-ficção”, quando esse termo pouco significa? Funcionará Bildungsroman quando a economia sexual do livro mas também a ausência de um evento dramático retira muita da força com que esse termo literário muitas vezes se reveste? Será que apelar para designações superficiais e circunstanciais é iluminador: “geração X”, “hipsters”, “slackers”?
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Uma última parte re-apreoveita declarações de Clowes para The Comics Journal sobre o seu processo criativo, onde ele explica os seus métodos desde a escrita à planificação das pranchas, das artes-finais à coloração, passando por todos os materiais técnicos e trabalho final de edição, e até formas de desenhar perspectivas, personagens, dobras de tecidos, sombras e luz. Além de iluminador, e sendo apenas um processo, é igualmente útil, até para reler a sua obra à luz das pequenas informações que nos dá (como o facto de que a arte original tem aumentado de tamanho progressivamente e, portanto, o consequente grau de redução ), obrigando-nos a termos pelo menos a mesma atenção na leitura que o autor teve na sua criação. Portanto, se o título diz Reader, não é de somenos que todos estes materiais coligidos nos façam, sobretudo, reler.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
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Pedro Moura
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28 de outubro de 2013
In Love with Art. Jeet Heer (Coach House)
Seja como for, há três fases profissionais decisivas na vida de Mouly, que a tornam uma referência importantíssima. A da revista Raw, que pode ser descrita como um dos mais importantes gestos editoriais da banda desenhada norte-americana contemporânea, cujos contornos influenciariam muitas das possibilidades que se lhe seguiriam; a do papel de Mouly enquanto directora artística da revista New Yorker, o que lhe incutiria uma nova vida, sobretudo mais politizada e vincada (se bem que não para todos os gostos, sobretudo aquele brando posicionamento que teve durante as décadas de 1970 e 1980); e a dos novos projectos de banda desenhada de qualidade para crianças, com os Toon Books.
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Nota: agradecimentos ao autor, pela facilitação em aceder ao seu projecto, e à editora, pela oferta do livro. A Coach House, é preciso recordar, foi (e é) uma casa importante da edição independente canadiana, com uma atenção particular para com círculos artísticos e poéticos alternativos, e foi quem publicou em 1975 a edição original do monumental The Cage, de Martin-Vaughn-James.
Publicada por
Pedro Moura
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25 de outubro de 2013
Vários títulos. Amanda Baeza (VVEE)
A última autora de que falaremos [nesta constelação das últimas duas semanas] é a portuguesa-chilena Amanda Baeza, cujo trabalho surgiu há relativamente pouco tempo na cena pública, mas tem angariado não apenas atenção nos circuitos alternativos mais atentos, como ainda tem mostado uma versatilidade suficientemente grande para conseguir projectos publicados nas mais diversas plataformas a nível internacional. É muito curioso encontrar esta espécie de conquistas rápidas, merecedoras pelas suas qualidades intrínsecas, mas que também demonstram que o “sucesso” pode por vezes revestir-se de contornos menos usuais, mas não menos intensos, interessantes e diversificados. Essa é outra das dimensões bem estruturadas do círculo a que podemos continuamente chamar de “art comics”.
O primeiro aspecto fascinante do trabalho de Baeza está na produção de Mr. Spoqui, que é um fanzine familiar (o vídeo mostra a selecção da última dezena, e há um site). A leitura das biografias de muitos autores contemporâneos, de Robert Crumb a CF, revelará que muitos deles criavam pequenas publicações na infância, as quais eram “distribuídas” pelos membros familiares ou amigos imediatos, mas seja como for, eram desde logo uma exposição e experiência à ideia de reprodutibilidade dos trabalhos gráficos. Ora Mr. Spoqui é precisamente uma pequena publicação criada por Amanda Baeza e os seus três irmãos, Blanca, Milena e Tiago, que rondam as idades dos 14 aos 20 e poucos anos. Nele, reúnem desenhos, bandas desenhadas, pequenos textos, colecções de citações, colecções de objectos (caricas, selos, folhas), receitas, fotografias, colagens, objectos transformados, ilustram-se uns aos outros, fazem pequenas entrevistas, etc. Os mais recentes números têm expandido o número de colaboradores, e tem ganho igualmente a proeminência de temas. Havendo números dedicados à magia, à comida de plástico, à cerâmica, à casa, aos aniversários, à memória, ao bigode ou às ilhas (o último é dedicado à dança, sobretudo por ser uma disciplina perseguida por uma das irmãs, Blanca), espera-se que todos os trabalhos que incluam abordem esses temas dos modos mais díspares, englobando reportagens e entrevistas a projectos em torno da arquitectura, de modas, da expressão pessoal através de alterações do corpo, ou várias disciplinas artísticas. Além disso, sendo todos montados à mão, alguns deles têm intervenções manuais e físicas que se destacam de imediato, dando uma dimensão háptica aos objectos - de resto, explorando um design simples mas extremamente eficaz e elegante (veja-se o logotipo, que sublinha o carácter familiar, colectivo, e até “comensal” do projecto). Podem ser marcas de cor (sempre sobre uma capa numa cartolina de cor), selos ou autocolantes, comprados e feitos à mão, bonecos articulados de papel, ou dedadas a dourado. O interior também oferece ilustrações feitas a picotado, pop-ups, pequenos encartes, etc., sendo as folhas ora coloridas, ou de várias cores, etc. A variedade é assombrosa, mas sem nunca se abandonar a questões de espectacularidade desprovida de sentido. É mesmo uma espécie de celebração contínua das vontades do momento.
Em si mesmo, Mr. Spoqui é um projecto que mereceria um lugar de destaque quando se discutem as possibilidades comunicativas, políticas, de emancipação, de criação de comunidade, mas igualmente enquanto espaço de liberdade estética total. Ma sem colocar na pessoa de Amanda Baeza o papel solitário de editora - é ela a mais velha, mas acreditamos que muitas das decisões sejam tomadas colegialmente -, é ela quem se destacará naturalmente como a artista mais desenvolta (pelo menos, por agora).
Uma reunião dos trabalhos dela de Mr. Spoqui numa só publicação singular seria um gesto justo, e que mostraria desde logo algumas das linhas de força que constituem a sua linguagem. Em termos gerais, Amanda Baeza constrói as suas figuras a partir de figuras geométricas muito simples, diagramáticas, sobre as quais intervém com outros traços gráficos, também eles simples, muito breves, súbitos, para a sua personalização (quer dizer, no sentido de diferenciação mas também no de emergência de uma personalidade, como queriam Töpffer e, através deste, Gombrich). Como se as construísse a partir de um barato brinquedo de formas de plástico e depois as animasse por um meio mágico. Na verdade, a sua abordagem lembra algumas daquelas estratégias muito modernas de ultra-estilização, que terão começado nos anos 1950 e 1960 (da UPA a Jim Flora), e que têm encontrado no mundo da publicidade, das mascotes, de uma certa escola contemporânea da animação (sobretudo em Flash), e uma ilustração internacional - veja-se a discussão havida a propósito de Como as cerejas - os seus cultores e mantenedores principais.
Tendo em conta a diversidade de temas e o facto de num número criar uma banda desenhada de algumas páginas com uma história relativamente linear, e noutro espalhar várias ilustrações sem nexo aparente entre si, é algo complicado encontrar características comuns. No entanto, as suas figuras geométricas permitem-lhe estudar variações entre as imagens, que corroboram as acções das personagens, ou então lhe abrem a possibilidade de criar exercícios de múltiplos corpos desdobrando-se, ou figuras e fragmentos pululando em torno dos espaços. Estes são muitas vezes uma mescla divertida entre locais humanos e a natureza, como um solo em grelha de onde saem plantas similares a infografias, ou um conjunto de edifício onde pequeníssimos pormenores dão um toque de vida não-controlável.
Mas para além dos trabalhos de Mr. Spoqui, importa igualmente ver os trabalhos que a autora tem conseguido fazer individualmente, livrinhos a solo lançados por várias plataformas editoriais estrangeiras.
Our Library/Musu biblioteka (Kus!) Esta editora tem nesta colecção precisamente o mesmo formato que a inaugural Patte de Mouche, da L’Association, subsequentemente imitado pela Quadradinho, a Minitonto, O Filme da Minha Vida, entre outros. Existindo vários títulos de muitos autores diversos, que esperamos poder vir a abordar num futuro próximo, fiquemo-nos pelo livro de Baeza. Neste projecto, a autora concentra-se numa experiência havida no Porto, que apesar de não se referir a ela por nome, será a Biblioteca Popular Infantil no Marquês, afecta ao projecto Es.Col.A (também explorado, noutros parâmetros e facetas, pelos participantes da Buraco). O livro é composto por imagens singulares que ocupam cada página, jamais se optando pelos modos habituais - uma constante que nasce do encontro entre a relativa falta de familiaridade com as convenções da banda desenhada normativa e as explorações que o treino artístico lhe permitem, com resultados felizes. Em muitos aspectos, a sua abordagem geometrizante encontra aqui uma exploração frisada, intensificada (sobretudo pela possibilidade de trabalhar com cor, a qual, sendo simples, é judiciosa e suavemente aplicada), e que se vai expressar pela maneira “mágica” de representar os intervenientes, os espaços, os objectos envolvidos, e sobretudo a tradução que faz dos conceitos envolvidos no projecto: o “espaço… para a comunidade! Para o conhecimento! Para a liberdade!”, mundos e conceitos. Our Library é menos uma reportagem do que uma ficcionalização dramatizada do “assassinato de uma ideia”, mas ao mesmo tempo é como que uma celebração de uma possibilidade, de um futuro, mesmo na sombra da impossibilidade desse mesmo futuro, impossibilidade criada pelos discursos hegemónicos da política e da economia actuais, que sublinham continuamente a “inevitabilidade” das suas soluções e da falta de oportunidade dessas alternativas. Mas sendo as ideias impossíveis de assassinar, Our Library é também uma prova da sua sobrevivência.
Nubes de talco (bombas para desayunar). A mais autobiográfica das bandas desenhadas que nos foram dadas a ler da autora, esta remete possivelmente a experiências no Chile. Não havendo confirmação textual absoluta de se tratar de uma autobiografia, existem porém aspectos que permitem essa abordagem, e uma breve nota extratextual sobre um colégio em Viña del Mar ajuda-nos a essa ideia. Seja como for, a história aqui em questão é a de uma menina num colégio católico, menina que não crê em Deus, o que a coloca numa posição algo marginal junto às outras meninas, isolando-a no recreio, o que a permite por sua vez entregar-se ao que parecem ser encontros fantasiosos. Além da invenção extraordinária de cigarros de algodão que deitam “fumo de talco”, a questão principal é que a invenção de amigos imaginários é uma condição intrínseca à vida humana, e que a criação de Deus não está distante dessa necessidade ou gesto. Reproduzido em fotocópias algo simples, o arranjo da capa, o contrastante uso do preto e branco, e algumas soluções de composição de página - ora imagens únicas ocupando todo o plano, ora divisões convencionais mas sem intervalos, ora estruturas geometrizadas que roçam o simbólico - Nubes de talco é um objecto intrigante e delicado, como um poema narrativo de Kavafis, em que uma forma moderna serve de veículo para algo arcaico que sobrevive no humano.
Más grandes y viejos, com María (el monstruo de colores no tiene boca). No seio do grande projecto de Roger Omar de construir presenças textuais dos sonhos de crianças, que já discutíramos anteriormente, surge este livro-acordeão, “traduzindo” um sonho de María. A diferença fundamental, em relação aos outros livrinhos, é que neste caso o sonho é apenas um, mas que é estendido a uma narrativa maior, ou então que se presta a desdobramentos temporais mais desenvoltos. Baeza, tal como outros autores da colecção, tira partido do formato em acordeão para criar uma paisagem ininterrupta, com a curiosa excepção da entrada da gruta, que estabelece um filamento branco como ponto de passagem, e depois da extremidade do papel para criar o ponto de viragem na história. Também como nos restantes projectos, imaginando que apenas existirá o texto original, mas sem nenhuma espécie de indicações visuais, de um argumento ou script, partimos do pressuposto que toda a camada visual será da responsabilidade da artista, que “traduz” e interpreta as palavras. Logo, quer a protagonista, que fala na primeira pessoa, quer as criaturas com que se cruza, absorvem as formas expectáveis de Baeza. A história em si tem todos os ingredientes de um sonho: uma premissa absurda e fantástica, uma breve consideração afectiva muito tocante e uma conclusão que resulta num desvio ainda mais absurdo. ´
Nota final: agradecimentos à autora pelo empréstimo dos Mr. Spoqui, e pela cópia de Our Library, e a Roger Omar pela oferta de Más grandes y viejos.
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Pedro Moura
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23 de outubro de 2013
In the Up Part of the Wave e Paranoid Apartment. Lala Albert (Floating World/Secret Prison)
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Pedro Moura
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3:35 da tarde
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Etiquetas: EUA, Experimental
21 de outubro de 2013
The Blonde Woman e Q. Aidan Koch (Auto-edição e Floating World)
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Pedro Moura
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10:13 da manhã
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Etiquetas: EUA, Experimental