A última autora de que falaremos [nesta constelação das últimas duas semanas] é a portuguesa-chilena Amanda Baeza, cujo trabalho surgiu há relativamente pouco tempo na cena pública, mas tem angariado não apenas atenção nos circuitos alternativos mais atentos, como ainda tem mostado uma versatilidade suficientemente grande para conseguir projectos publicados nas mais diversas plataformas a nível internacional. É muito curioso encontrar esta espécie de conquistas rápidas, merecedoras pelas suas qualidades intrínsecas, mas que também demonstram que o “sucesso” pode por vezes revestir-se de contornos menos usuais, mas não menos intensos, interessantes e diversificados. Essa é outra das dimensões bem estruturadas do círculo a que podemos continuamente chamar de “art comics”.
O primeiro aspecto fascinante do trabalho de Baeza está na produção de Mr. Spoqui, que é um fanzine familiar (o vídeo mostra a selecção da última dezena, e há um site). A leitura das biografias de muitos autores contemporâneos, de Robert Crumb a CF, revelará que muitos deles criavam pequenas publicações na infância, as quais eram “distribuídas” pelos membros familiares ou amigos imediatos, mas seja como for, eram desde logo uma exposição e experiência à ideia de reprodutibilidade dos trabalhos gráficos. Ora Mr. Spoqui é precisamente uma pequena publicação criada por Amanda Baeza e os seus três irmãos, Blanca, Milena e Tiago, que rondam as idades dos 14 aos 20 e poucos anos. Nele, reúnem desenhos, bandas desenhadas, pequenos textos, colecções de citações, colecções de objectos (caricas, selos, folhas), receitas, fotografias, colagens, objectos transformados, ilustram-se uns aos outros, fazem pequenas entrevistas, etc. Os mais recentes números têm expandido o número de colaboradores, e tem ganho igualmente a proeminência de temas. Havendo números dedicados à magia, à comida de plástico, à cerâmica, à casa, aos aniversários, à memória, ao bigode ou às ilhas (o último é dedicado à dança, sobretudo por ser uma disciplina perseguida por uma das irmãs, Blanca), espera-se que todos os trabalhos que incluam abordem esses temas dos modos mais díspares, englobando reportagens e entrevistas a projectos em torno da arquitectura, de modas, da expressão pessoal através de alterações do corpo, ou várias disciplinas artísticas. Além disso, sendo todos montados à mão, alguns deles têm intervenções manuais e físicas que se destacam de imediato, dando uma dimensão háptica aos objectos - de resto, explorando um design simples mas extremamente eficaz e elegante (veja-se o logotipo, que sublinha o carácter familiar, colectivo, e até “comensal” do projecto). Podem ser marcas de cor (sempre sobre uma capa numa cartolina de cor), selos ou autocolantes, comprados e feitos à mão, bonecos articulados de papel, ou dedadas a dourado. O interior também oferece ilustrações feitas a picotado, pop-ups, pequenos encartes, etc., sendo as folhas ora coloridas, ou de várias cores, etc. A variedade é assombrosa, mas sem nunca se abandonar a questões de espectacularidade desprovida de sentido. É mesmo uma espécie de celebração contínua das vontades do momento.
Em si mesmo, Mr. Spoqui é um projecto que mereceria um lugar de destaque quando se discutem as possibilidades comunicativas, políticas, de emancipação, de criação de comunidade, mas igualmente enquanto espaço de liberdade estética total. Ma sem colocar na pessoa de Amanda Baeza o papel solitário de editora - é ela a mais velha, mas acreditamos que muitas das decisões sejam tomadas colegialmente -, é ela quem se destacará naturalmente como a artista mais desenvolta (pelo menos, por agora).
Uma reunião dos trabalhos dela de Mr. Spoqui numa só publicação singular seria um gesto justo, e que mostraria desde logo algumas das linhas de força que constituem a sua linguagem. Em termos gerais, Amanda Baeza constrói as suas figuras a partir de figuras geométricas muito simples, diagramáticas, sobre as quais intervém com outros traços gráficos, também eles simples, muito breves, súbitos, para a sua personalização (quer dizer, no sentido de diferenciação mas também no de emergência de uma personalidade, como queriam Töpffer e, através deste, Gombrich). Como se as construísse a partir de um barato brinquedo de formas de plástico e depois as animasse por um meio mágico. Na verdade, a sua abordagem lembra algumas daquelas estratégias muito modernas de ultra-estilização, que terão começado nos anos 1950 e 1960 (da UPA a Jim Flora), e que têm encontrado no mundo da publicidade, das mascotes, de uma certa escola contemporânea da animação (sobretudo em Flash), e uma ilustração internacional - veja-se a discussão havida a propósito de Como as cerejas - os seus cultores e mantenedores principais.
Tendo em conta a diversidade de temas e o facto de num número criar uma banda desenhada de algumas páginas com uma história relativamente linear, e noutro espalhar várias ilustrações sem nexo aparente entre si, é algo complicado encontrar características comuns. No entanto, as suas figuras geométricas permitem-lhe estudar variações entre as imagens, que corroboram as acções das personagens, ou então lhe abrem a possibilidade de criar exercícios de múltiplos corpos desdobrando-se, ou figuras e fragmentos pululando em torno dos espaços. Estes são muitas vezes uma mescla divertida entre locais humanos e a natureza, como um solo em grelha de onde saem plantas similares a infografias, ou um conjunto de edifício onde pequeníssimos pormenores dão um toque de vida não-controlável.
Mas para além dos trabalhos de Mr. Spoqui, importa igualmente ver os trabalhos que a autora tem conseguido fazer individualmente, livrinhos a solo lançados por várias plataformas editoriais estrangeiras.
Our Library/Musu biblioteka (Kus!) Esta editora tem nesta colecção precisamente o mesmo formato que a inaugural Patte de Mouche, da L’Association, subsequentemente imitado pela Quadradinho, a Minitonto, O Filme da Minha Vida, entre outros. Existindo vários títulos de muitos autores diversos, que esperamos poder vir a abordar num futuro próximo, fiquemo-nos pelo livro de Baeza. Neste projecto, a autora concentra-se numa experiência havida no Porto, que apesar de não se referir a ela por nome, será a Biblioteca Popular Infantil no Marquês, afecta ao projecto Es.Col.A (também explorado, noutros parâmetros e facetas, pelos participantes da Buraco). O livro é composto por imagens singulares que ocupam cada página, jamais se optando pelos modos habituais - uma constante que nasce do encontro entre a relativa falta de familiaridade com as convenções da banda desenhada normativa e as explorações que o treino artístico lhe permitem, com resultados felizes. Em muitos aspectos, a sua abordagem geometrizante encontra aqui uma exploração frisada, intensificada (sobretudo pela possibilidade de trabalhar com cor, a qual, sendo simples, é judiciosa e suavemente aplicada), e que se vai expressar pela maneira “mágica” de representar os intervenientes, os espaços, os objectos envolvidos, e sobretudo a tradução que faz dos conceitos envolvidos no projecto: o “espaço… para a comunidade! Para o conhecimento! Para a liberdade!”, mundos e conceitos. Our Library é menos uma reportagem do que uma ficcionalização dramatizada do “assassinato de uma ideia”, mas ao mesmo tempo é como que uma celebração de uma possibilidade, de um futuro, mesmo na sombra da impossibilidade desse mesmo futuro, impossibilidade criada pelos discursos hegemónicos da política e da economia actuais, que sublinham continuamente a “inevitabilidade” das suas soluções e da falta de oportunidade dessas alternativas. Mas sendo as ideias impossíveis de assassinar, Our Library é também uma prova da sua sobrevivência.
Nubes de talco (bombas para desayunar). A mais autobiográfica das bandas desenhadas que nos foram dadas a ler da autora, esta remete possivelmente a experiências no Chile. Não havendo confirmação textual absoluta de se tratar de uma autobiografia, existem porém aspectos que permitem essa abordagem, e uma breve nota extratextual sobre um colégio em Viña del Mar ajuda-nos a essa ideia. Seja como for, a história aqui em questão é a de uma menina num colégio católico, menina que não crê em Deus, o que a coloca numa posição algo marginal junto às outras meninas, isolando-a no recreio, o que a permite por sua vez entregar-se ao que parecem ser encontros fantasiosos. Além da invenção extraordinária de cigarros de algodão que deitam “fumo de talco”, a questão principal é que a invenção de amigos imaginários é uma condição intrínseca à vida humana, e que a criação de Deus não está distante dessa necessidade ou gesto. Reproduzido em fotocópias algo simples, o arranjo da capa, o contrastante uso do preto e branco, e algumas soluções de composição de página - ora imagens únicas ocupando todo o plano, ora divisões convencionais mas sem intervalos, ora estruturas geometrizadas que roçam o simbólico - Nubes de talco é um objecto intrigante e delicado, como um poema narrativo de Kavafis, em que uma forma moderna serve de veículo para algo arcaico que sobrevive no humano.
Más grandes y viejos, com María (el monstruo de colores no tiene boca). No seio do grande projecto de Roger Omar de construir presenças textuais dos sonhos de crianças, que já discutíramos anteriormente, surge este livro-acordeão, “traduzindo” um sonho de María. A diferença fundamental, em relação aos outros livrinhos, é que neste caso o sonho é apenas um, mas que é estendido a uma narrativa maior, ou então que se presta a desdobramentos temporais mais desenvoltos. Baeza, tal como outros autores da colecção, tira partido do formato em acordeão para criar uma paisagem ininterrupta, com a curiosa excepção da entrada da gruta, que estabelece um filamento branco como ponto de passagem, e depois da extremidade do papel para criar o ponto de viragem na história. Também como nos restantes projectos, imaginando que apenas existirá o texto original, mas sem nenhuma espécie de indicações visuais, de um argumento ou script, partimos do pressuposto que toda a camada visual será da responsabilidade da artista, que “traduz” e interpreta as palavras. Logo, quer a protagonista, que fala na primeira pessoa, quer as criaturas com que se cruza, absorvem as formas expectáveis de Baeza. A história em si tem todos os ingredientes de um sonho: uma premissa absurda e fantástica, uma breve consideração afectiva muito tocante e uma conclusão que resulta num desvio ainda mais absurdo. ´
Nota final: agradecimentos à autora pelo empréstimo dos Mr. Spoqui, e pela cópia de Our Library, e a Roger Omar pela oferta de Más grandes y viejos.
25 de outubro de 2013
Vários títulos. Amanda Baeza (VVEE)
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:10 da manhã
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