Num momento em que uma ícone – independentemente do que se julgue ou se goste dela, é quem ocupa um dos nichos da hora – como Miley Cyrus relança discussões sobre o modo como a sexualidade se mistura com outras áreas de talento (suspendamos agora a sua presença ou ausência em Cyrus), ou a forma como ela é um ingrediente quase necessário para a venda de qualquer produto, seja de sabões ou canções, automóveis ou gadgets, e, como vimos há semanas, até eleições, é muito curioso pensar onde se encontrará a origem desse laço. Se bem que a comercialização dos corpos e do sexo é algo antigo (por alguma razão se fala da “mais antiga profissão do mundo”), queremos aqui aproximar-nos da noção marxista da transformação do corpo-sexo num bem transaccionável (ou a chamada “comodificação”), o seu uso enquanto elemento publicitário, forma de conquistar fama, e com isso contractos chorudos. Uma das possíveis fontes disso é a passagem do século XIX/XX nos Estados Unidos da América, com a sua “American Eve”. Ostensivamente, este livro é uma biografia de Evelyn Nesbitt, a qual se poderá descrever como um dos primeiros ícones, identificados por nome, de beleza “comercial”, “capitalista”, “comodificada”, dos mundos a que mais tarde se chamariam de “publicidade” e de “modelo fotográfico”. Nascida em 1884 em Pittsburgh e órfã de pai, Evelyn viu-se quase como que arrastada aos 16 anos para a cidade de Nova Iorque, num dos seus primeiros picos de conquista de papel cultural à escala global: a Belle Époque é possivelmente o momento em que essa cidade começa confortavelmente a conquistar o seu papel enquanto metrópole mundial da economia e da cultura. E pode-se considerar que Evelyn se encontraria num dos proverbiais centros do furacão.

Mas há ainda um outro ingrediente indispensável na “fórmula” que se viria repetida no século que se seguiria, um padrão verificável nos dias de hoje. A sua ascensão em determinados mundos sociais e culturais em Nova Iorque (o mundo dos espectáculos da Broadway, da publicidade, etc.) foi feita igualmente com o seu envolvimento amoroso com Stanford White, arquitecto poderoso na sua cidade, que a “apadrinha” e amantiza – uma sequência que o mostra, ainda que diegeticamente num espectáculo dado na sua casa, mascarado de lobo para apanhar a jovem Eva Capuchinho Vermelho a cair do famoso baloiço de veludo vermelho (que dá nome ao livro, e também título a um filme com Joan Collins, adaptação livre da sua história, tal como um outro filme recente de Claude Chabrol) não deixa muito espaço à imaginação do leitor à leitura que a autora pretende. Aliás, essa imagem do baloiço, reforçada pela representação da capa, poderá aliar-se a um outro jogo de revelação erótica num baloiço, o famoso quadro de Fragonard. A agravante, todavia, nesse enleio amoroso, está na forma de “cegueira” a que a mãe se entrega, garante dos caminhos afortunados que a filha, e ela própria, continuariam a trilhar. Mais tarde, após as necessárias e rocambolescas reviravoltas, Eve casa-se com um milionário, Harry Thaw, o que lhe garante uma estabilidade material, mas ao mesmo tempo um afastamento do mundo maravilhoso a que se vira habituada antes. O tal ingrediente é, claro está, a sensacionalista – é nesta época, iniciada já no século XIX pela “imprensa amarela”, que a nova cultura mediática dos tablóides começa a acalorar a sua natureza predatória - queda e desgraça do ícone, a qual teve lugar com o assassinato de White por Thaw, surgindo assim a desculpa para demolir o ícone que tanto fora levantado. Por outro lado, é necessário temperar esta clara narrativa, já que na verdade Evelyn apenas conquistaria a fama precisamente por causa do caso judicial, e não tanto pela sua carreira, apesar da ubiquidade do seu rosto (o qual, sendo desenhado ou atravessando vários filtros altamente convencionais e estilísticos, surgiria mais idealizado do que “verdadeiro”).

Mas se não há uma atribuição monocausal de responsabilidades pela situação, tampouco os intervenientes saem incólumes, já que o que se explora, para além da biopic de Nesbit, são os mecanismos de construção e ascensão de um ídolo moderno, e os modos que ele lança as suas ligações com a sociedade na qual não só emerge, como reflecte e que também constitui. Como se compreende da obra de Uruburu, este caso é o “início da uma obsessão nacional pela juventude, a beleza, e celebridade e o sexo”.
Há um aspecto importante nesta mulher para a história da ilustração, mormente aquela a que se poderia chamar de “de moda” ou “da publicidade”. É que, não tendo sido ela nem a única nem a primeiro modelo para os desenhos de Charles Dana Gibson, foi uma das que mais se encaixaria na padronização do seu famoso trabalho. Ela era mesmo um modelo “clássico” de Gibson, nas palavras de Trina Robbins, importante historiadora da banda desenhada, mormente de uma perspectiva dos Estudos da Mulher. Num blog existe uma análise detectivesca que procura essas ligações. As Gibson girls eram um modelo de beleza, assim como outras tipologias como as Vargas girls, as Nell Brinkley girls, etc., todas elas estudadas por Trina Robbins, que destrinça as suas diferenças particulares quer em termos físicos quer comportamentais, ainda que à distância de mais de um século, uma breve consideração desses ícones nos possa levar a pensar serem permutáveis entre si (mas isso seria errado). A diferença maior entre as figuras desenhadas por Gibson e Brinkley não estava tanto nos traços físicos como nas actividades em que as personagens se encontravam (se bem que os fulvos caracóis da segunda, soltos, indomesticados, sublinham essas mesmas acções): se Gibson mostra as suas girls a andar de bicicleta, na praia ou a dar ordens aos seus admiradores, Brinkley lança-as no centro de dinamismos totalmente autónomos e selváticos, saltando, dançando, brincando, transmitindo uma alargada expressividade e vivacidade com os seus rostos, ao contrário de Gibson, de rostos mais hieráticos e fleumáticos. De certa forma, a figura de Eve Nesbitt encontra-se num hipotético centro dessa “transformação” – ainda que as imagens e a própria expressão Gibson girl seja mais perene e tenha sobrevivido melhor do que a de Brinkley girl, recuperada pelos livros monográficos de Robbins (Nell Brinkley and The New Woman in the Early 20th Century, e, mais tarde, pela Fantagraphics, The Brinkley Girls).

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro, e a Trina Robbins, não apenas pelas várias informações trocadas por email, como pela imagem de Nell Brinkley.
6 comentários:
Lateralmente, gostava de referir a tua utilização de duas palavras neste texto, por frivolidade apenas :-) :
Não fiquei fã da "comodificação". Como antigo estudante de economia (desisti ao 3º ano do curso por não aguentar tanta liturgia e tão pouca ciência), continuo a associar commodities a mercadorias e, assim de chofre, a palavra soa-me mal. Espero que não seja um daqueles anglicismos que estão a pegar.
A outra palavra é o tropical "tampouco" que me recordo de utilizar há muitos anos num exame de português do 7º ano, certamente influenciado pelos gibis que lia na altura e que fez com que a professora usasse o seu lápis lazúli (ou larosso) por todo o teste e me desse a única negativa que tive algum dia num teste a português. Assim sendo, desde aí, também passei a usar muitas vezes o "tampouco" como expressão da minha revolta com causa.
Pentelhices à parte, para citar um famoso oligarca de uma das mais necessárias commodities dos nossos dias, penso que "acertaste com a linha na agulha" ;-) quando, relativamente às "formers" jovens artistas da Disney, afirmas que elas já se prostituiam na Disneylândia e que esta mercantilização da sua sexualidade é um prolongamento do comportamento que já decorria na infância. Parece que estou a ver uma Minie numa esquina mais recuada do Castelo Encantando a bater perna para Patetas solteiros ávidos de sexo e com dinheiro para gastar.
Gostei muito da apresentação do livro como proposta de apresentação da transição do erotismo para a modernidade, ou pelo menos do ideal de beleza, o abandono da voluptuosidade em favor de um novo "pedoerotismo", se é permitido dizer. No caso concreto é, sem moralismo e somente pela metáfora, mais um crime de Whitechapel a apresentar ao século XX uma nova relação com a sexualidade. Partilho, ainda que num plano muito inferior (sinceras genuflexões), a tua imodesta ignorância histórica para as razões desta mudança de padões estéticos. Atrevo-me a pensar, por mera intuição, que é um regresso aos clássicos gregos, e à sua opção por jovens imberbes e doces tanagras (apesar do corrector prefiro este grafismo). Certamente, penso, os avanços civilizacionais permitem fases mais hedonísticas, que nos levam a encarar a sexualidade como algo afastado da mera reprodução da espécie e fazem a transição da vénus de Willendorf para a de Milo.
Não estou à espera, como percebi pela tua descrição, de um "From Hell", mas vou à procura deste livro.
Aí está a importância da divulgação, e da deste blogue em particular.
No pares, sigue, sigue :-)
Obrigado e um abraço.
Caro José Sá,
Há muito que responder, e agradeço o desafio. Terei de ser breve, porém:
1. não gosto igualmente da palavra "comodificação", tal como de "mass media", por isso as emprego entre aspas, e quase sempre a seguir da expressão mais comprida em português. Quanto ao "tampouco", é português de lei. Independentemente do policiamento torto de certos professores.
2. É óbvio que há um grau de diferença do que se mostra ou explora entre o mundo patrocinado pela Disney e aquele que dele se deseja libertar, mas a questão de fundo é a mesma, a capitalização e transformação em bem de representações sociais. Além disso, a imagem que indicou já existe: procure "Disney Memorial Orgy", de Wally Wood!
3. De facto, o conhecimento histórico para ser sólido tem de ter em conta toda uma série de factores, os quais estão fora do meu alcance, e por isso posso estar enganado em ver essa transformação nesta personagem (além de que é sempre redutor, historicamente, querer ver "causas únicas"). No entanto, é por aí que se vê essa transformação... Já quanto à Grécia antiga, discordo, pois aí existe mesmo um contexto totalmente diferente no que diz respeito à sexualidade e à "moralidade" que diz respeito às idades... Mas isso seria uma outra pesquisa...
4. Não pensando que este livro seja uma obra-prima incontornável, ele será um bom livro. Não podemos estar sempre à espera de recordes.
Obrigado,
Pedro Moura
Pedro, obrigado por mais uma resposta generosa. Só respondo novamente para dizer que fiquei assustado ao consultar a imagem que sugeriste. Nunca a tinha visto, tudo bem que a piada estava relativamente escancarada ;-), mas, mais uma vez, a total coincidência de pormenores perante o que tinha escrito deixou-me arrepiado. A perversidade deve fazer parte do código de informação genética transmitido através das gerações...
Obrigado, obrigado.
Interssante. A história, que desconhecia, atribiu mais peso ao termo "plus ça change, plus c'est la même chose".
Muito obrigado por esta referência.
Je regrette infiniment de ne pas comprendre mieux le portugais, mais merci pour cette jolie et intelligente critique de mon livre. (aviez-vous lu le livre de Paula Uruburu?) Nathalie Ferlut
Chère Natalie Ferlut,
C'est moi que vous remercie de nous avoir confié cette livre. Non, je n«ai pas lu le livre de Uruburu, mais seulement quelquer entretiens et quelques parties du livre dans l'internet, critiques, etc. A propos, votre livre serait envoyé maintenant à Trina Robbins. Elle est très curiouse de votre livre.
Merci et je vous souhaite beaucoup de succés avec "Eve" (et toutes les autres livres, bien sûr).
Pedro
Enviar um comentário