17 de outubro de 2013

Very Casual e outros títulos. Michael DeForge (Koyama Press/etc.)

Tal como Mere, também Very Casual se trata de uma antologia de bandas desenhadas curtas que DeForge havia criado nos últimos anos para as mais diversas plataformas, sejam elas mini-comics, revistas, ou as plataformas digitais do autor. Tendo em conta a profícua mão do autor, encontramos aqui, sem surpresas, e apesar das 150 páginas, apenas um fragmento da sua produção. No entanto, estando prevista a edição pela Drawn & Quarterly dos Ant Comics, acessíveis na internet, e o comic book mais ou menos regular Lose, assim como outras coisas espalhadas, queremos olhar para um conjunto mais alargado de trabalhos do autor. Seja como for, Very Casual é também um belíssimo livro em termos de design e de “mão”, de escolha de papel e paginação, nalguns aspectos mesmo melhorando a forma como estas histórias são ofertadas aos seus leitores, sejam estes novos ou repetentes. (Mais) 

DeForge pertence a este número de artistas que bebendo claramente de fontes da cultura popular, e este particularmente dos mundos da banda desenhada e dos desenhos animados infanto-juvenis, mas como se estivesse interessado em procurar entender o melhor possível as regras de construção dos corpos e objectos desses universos, para os melhor subverter num mundo de variações de pesadelos biológicos, cruzamentos teriomóficos, monstruosos, etc. Buscando reduzir esses mesmos corpos a princípios ou objectos-denominador mínimos, polivalentes, moduláveis, que os hipostasiem e permitam ser recombinadas e reempregues e relançadas. O seu emprego nessa mesma indústria (em Adventure Time) é revelado nas suas formas, mas ao mesmo tempo é como se estes trabalhos revelassem igualmente as liberdades com que sonha durante o emprego: tratar-se-ão estas pequenas histórias ou mesmo as sagas no seu percurso cartático? Esta dimensão morfológica em constante mutação interna é particularmente visível - porque explorada explicitamente - nas histórias “Spotting Deer”, “Queen”, “Cody”, todo o Ant Comics, etc. e a sua associação ao mundo da banda desenhada tem dois momentos particularmente vincados: a história “Incinerator”, na qual a personagem principal tem um tronco e braços parecidos com a silhueta do Snoopy visto por trás, e “Riders”, onde uma gangue de motociclistas vende a alma ao demónio através de acções criminosas e a travessia de um portal flamejante, que os transforma em criaturas demoníacas. Se as personagens, na sua primeira versão “motociclista”, parecem familiares, a travessia revela-os tal como os conhecemos: Bart Simpson, Gardfield, Charlie Brown, Dilbert, Nancy, Mickey Mouse… É claro que neste caso haverá aqui um comentário directo à indústria que estas personagens representam, mas pensamos que acima de tudo está este jogo morfológico, de permutações possíveis e reconhecíveis ainda que estranhas.

DeForge parece explorar, ou querer explorar, todos os formatos, estilos, e humores passíveis de existirem na banda desenhada. Tem pequenas anedotas, e conjuntos de variações de uma ideia, e até uma história com o Homem-Aranha, em que a Tia May e o Doctor Octupus se tornam amantes (com cenas brutalmente explícitas no estilo cute de DeForge). Mas se temos em Very Casual a recuperação de trabalhos publicados em antologias e revistas tão diversas quanto a Carousel Magazine a Basketball Comic, ou publicações da Koyama Press como a Wowee Zonk ou Spotting Deer, a portuguesa Lodaçal Comix e a inglesa Nobrow, já a sua revista Lose (também da Koyama), assim como o mais recente The Boy in Question (da Space Face Books), têm histórias mais longas, e de humores bem diversos entre si. Se bem que haja sempre um tom humorístico, ou mesmo sarcástico e até hilariante, de quando em vez DeForge experimenta tons mais soturnos e emocionais.

The Boy in Question é uma absurda história de ficção científica, misturando temas pós-apocalípticos, sexualidade bíblica e uma investigação sobre a mentalidade humana. Na Lose no. 3, por exemplo, para além de histórias curtas, há uma história de 20 páginas intitulada “Dog 2070”, a qual mistura de uma forma pouco confortável elementos de banda desenhada infantil, com cães antropomorfizados, uma paisagem terrível de um cataclismo social, mas para criar uma breve novela concentrada sobretudo nas relações pessoais, à moda típica da banda desenhada alternativa, de olho no quotidiano e nas crises tremendas que podem surgir nas relações mais usuais entre as pessoas. Não é que a forma procure um sentido à la Maus, mas é difícil de não compreender os contornos incómodos que surgem nesse mesmo tratamento.

As superfícies plásticas e “lisas” de DeForge parecem ser perfeitamente adequadas ás armadilhas que criam: se as figuras parecem ser inócuas, cute, na verdade é para nos fazerem cair num abismo de estranheza quase horripilante e de uma violência indizível, muitas vezes também sexualizada. Uma metáfora adequada seria a da flor carnívora, bela e colorida de  fora e de longe, mortífera de perto… E como ela, de certa forma, ao longe não faz imaginar as viscosidades e tricomas que, quando visíveis, já infligiram a sua mácula. DeForge cita muitos aspectos da nossa cultura do dia-a-dia, do mais mundano possível até, mas para revelar-lhe sombras que, por serem distorcidas até um ponto irreconhecível, ilustram os perigos e horrores que pode ocultar.

A leitura do trabalho de DeForge pode ser divertida ou incómoda, havendo uma quase natural apetência por nos aproximarmos das suas imagens mas um movimento quase reflexo de repulsa ao nos apercebemos o que representa. Muitas vezes, esses movimentos de divertimento e incómodo surgem embrulhados, reflectindo-se e reforçando-se.

6 comentários:

José Sá disse...

Olá Pedro,

O início deste post deixou-me um pouco atrapalhado à procura do "Mere" abandonado na primeira frase de forma very casual. Talvez seja um desejo inconsciente teu de nos pôr a nós leitores do blogue a meter pés ao caminho por um universo onde nos (eu) sentiremos desconfortáveis. Tenho muita dificuldade em aceitar a designação "art comics", mas será uma opção eficaz para nos transportar pelos vários perfis que nos ocorrem nos títulos apresentados: marginal, alternativo, artesanal (rudimentar nos meios), vanguardista, conceptual e por aí dentro. Mesmo àqueles (a quem dou aqui voz :-)) que são amadores de longa data do meio e que dele procuram uma fruição educada, mas que nunca atingirão aquela erudição sensível que resulta de um intenso estudo da história da arte, é importante de vez em "quando" (porque "sempre" levaria a um afastamento) fazer pelo seu próprio pé os percursos desviantes sugeridos pelos "gurus intelectuais" do meio (sem qualquer ponta de ironia). Perdoa-me o exagero de opinião mas para mim a grande utilidade do contacto com este tipo de abordagens ao meio são para mim, por comparação absurda, uma representação da metafísica fractal, a devolução à simplicidade original e à complexidade formidável a que atingimos pela sobreposição de objetos iguais ou semelhantes.
Sendo um detalhe marginal ao teu texto, mas exemplar para mim desse "fractal" que me aproxima do autor, não posso deixar de referir que o amour fou da May Parker com o Doc Ock aconteceu no mainstream e durou dois anos vindo a ter a sua conclusão num casamento não consumado representado nas páginas do Amazing Spiderman 131 de Abril de 74 (quanta liberdade!!!). Ao ler essas histórias lembro-me de ter paragens de leitura dostoievskianas próximas do artista em análise.
Muito obrigado pelo teu blogue. Abraço

José

Pedro Moura disse...

Ha! Erro de ordem... Na verdade, deveria ter colocado o texto sobre o "Mere" do C.F. antes, e depois com este do Michael DeForge essa refer~Encia serviria de link. Muitas vez escrevo alguns dos textos ao mesmo tempo (sobretudo nestas ocasiões "colectivas") para tentar criar redes de ideias que se reflictam, repitam, consolidem, etc., e neste caso houve apenas um problema de ordem, que resolvi ao colocar já o texto que apenas viria a lume amanhã...
Eu próprio não serei o adepto ou o defensor do termo "art comics", mas tem sido utilizado um pouco noutros círculos; digamos que é algo como "graphic novel": descritivos errados e algo tontos, mas que pegam e depois é difícil evitá-los, sobretudo no modo rápido como constituem uma ideia ou um corpus.
A história do DeForge saiu sem o aval da Marvel, claro (ver aqui: http://whatthingsdo.com/comic/peters-muscle/), mas recorda muitas coisas em torno desse universo de que já falei noutros locais. E, sim, tem de ser lido precisamente com esses conhecimentos dos textos originais, ganhando assim uma dimensão muito mais divertida.
Obrigado,
Pedro Moura

José Sá disse...

Apesar da história ter sido censurada pela Marvel (alerta: teoria da conspiração), pela cronologia dos acontecimentos, não consigo deixar de pensar que o Dan Slott lança uma pi(s)cadela de olho à censura e ao Peter's Muscle no momento REM do ASP #699.
Obrigado
José

Pedro Moura disse...

Não tendo lido o "Amazing Spider-Man" em questão, não posso dizer nada, mas desconheço em absoluto essa ideia de "censura". A história do DeForge não foi feita para a Marvel, por isso não havia censura. Que deverá haver conflitos de direitos de autor, sem dúvida, mas a Marvel não se vai mexer por causa disso (já a Disney...), mas nunca li sobre problemas a esse nível.
Pedro

José Sá disse...

A censura é sobre às reacções à história do Dan Slott, publicada já este ano (que também não li), que ele eventualmente queria provocar e a alusão que eu faço tem a ver com o momento na história em que o Peter Parker trocou de corpo com o Doc Ock e que, tendo acesso às memórias deste, recapitula rapidamente alguns momentos mais marcantes das recordações do Octupus, sendo que uma delas é a primeira vez nunca antes revelada em que tem relações sexuais com a Tia May. Esta recordação é logo interrompida por um Peter horrorizado. O paralelismo parece estar lá e tem muita gente criativa na Marvel (Bendis, que eu penso existirem vários) a admirar o DeForge.
José

Pedro Moura disse...

Já percebi. Peço desculpa pela ignorância, mas apesar de ler de quando em vez alguns títulos de super-heróis, não os acompanho a todos, e desconhecia isso. Hei-de procurar, se bem que duvide que leia com muita atenção... Veremos.
Obrigado,
Pedro