Seja como for, há três fases profissionais decisivas na vida de Mouly, que a tornam uma referência importantíssima. A da revista Raw, que pode ser descrita como um dos mais importantes gestos editoriais da banda desenhada norte-americana contemporânea, cujos contornos influenciariam muitas das possibilidades que se lhe seguiriam; a do papel de Mouly enquanto directora artística da revista New Yorker, o que lhe incutiria uma nova vida, sobretudo mais politizada e vincada (se bem que não para todos os gostos, sobretudo aquele brando posicionamento que teve durante as décadas de 1970 e 1980); e a dos novos projectos de banda desenhada de qualidade para crianças, com os Toon Books.
Com a distância de algumas belas décadas, é algo difícil olhar para a Raw e compreender o papel de pedra de toque que essa revista teve na transformação radical do modo como a banda desenhada era olhada nos Estados Unidos (e mais além), quer enquanto modo de expressão, disciplina artística passível de experimentações formais, e veículo para qualquer desejo temático e pessoal. Ao mesmo tempo, também não se pode escamotear as críticas que se lhe poderiam fazer, quer pelo preço (Charles Burns queixa-se disso, neste livro), quer pela criação de uma certa sobranceria e presunção elitista que veiculava, quer ainda pela forma como pretendiam fazer circular a banda desenhada fora do seu circuito habitual mas por isso mesmo sublinhando a sua natureza fora da maturidade das outras artes… Um pouco como a insistência de exemplos de banda desenhada “matura” - e não nos retiramos do número de pessoas que o fazem - apenas confirma que isso ainda tem de ser dito. Recordemo-nos, por exemplo, da maneira como Clowes gozava com a Raw e o seu editor mais famoso, ao introduzir a sua personagem Dan Pussey num mundo não muito velado desse círculo, com o editor Gummo Bubbleman. Clowes, em entrevista, chegou mesmo a criticar a Raw por ser “um objecto que as pessoas gostam de ter e mostrar aos outros [até por ter o mesmo formato que a super-in Interview, de Andy Warhol], em vez de um comic desgraçado que se esconde atrás do radiador”. No entanto, se não fosse o território inaugurado pela Raw, poder-se-ia imaginar a linha de continuidade assegurada pela Pantheon (imediata herdeira dos seus projectos), da Fantagraphics e da Drawn & Quarterly ou PictureBox? Até mesmo a linha editorial - autores contemporâneos altamente formalistas norte-americanos, autores franceses adeptos de uma linguagem forte, politizada e culturalmente relevante, autores japoneses afastados das mais comuns categorias ficcionais - seria repetida e retomada por essas outras plataformas.
O envolvimento de Spiegelman com um nascente interesse na experimentação formal, política, expressiva e estética da banda desenhada informaria Mouly na sua “aprendizagem” da banda desenhada nos Estados Unidos, mas os conhecimentos desta, cidadã francesa, das tradições europeias também informariam Spiegelman na sua busca por uma voz própria; e ambos nutriam um interesse vivo por uma aprendizagem profunda, diversa e “engajada” da história da banda desenhada, da ilustração, do cartoon, e até do processo industrial-artesanal da fabricação de uma publicação, etc. Por exemplo, influenciada pelas estratégias formais e experimentais dos autores com que estava rodeada, Mouly atreveu-se, e com bons resultados, a criar uma pequena banda desenhada, de uma página, de tons autobiográficos: “Industry News and Review no. 6”, imediatamente no primeiro número da mítica revista, na qual tira partido de uma imagem de um guia de uma Heidelberg, criando variações de enquadramento sobre essa imagem para dar conta de um estranho avanço temporal e impressionista da protagonista.
No que diz respeito à New Yorker, seria necessário reportarmo-nos à historia da própria revista para compreender o impacto que a entrada de Mouly teve na sua dimensão visual. Esta revista, que foi a plataforma original de textos fundamentais no século XX, desde a literatura(/reportagem) com In True Blood de Truman Capote à reportagem(/literatura/ensaio) de Eichmann in Jerusalem de H. Arendt, teve a participação de grandes desenhadores, acima de todos, talvez, Saul Steinberg. Mouly veio abrir as portas (e as capas) a novos talentos, como o próprio Spiegelman, mas também R. Sikoryak, Barry Blitt, Maira Kalman e Rick Meyerowitz, Jorge Colombo, Chris Ware, Adrien Tomine, Ivan Brunetti, Daniel Clowes, e David Hockney, mas onde cada um viria a contribuir com imagens nem sempre inócuas, mas bem pelo contrário, transparentes na sua posição face aos acontecimentos políticos e sociais no momento, transformando a sua presença numa opinião forte e vincada. Há aspectos muito reveladores neste livro, como sabermos das duas ou três capas feitas pela própria Mouly, entre as quais aquela que assinala o 11 de Setembro de 2001, que é na verdade uma colaboração com Spiegelman (mas não uma obra pensada por este sozinho), ou algumas das estratégias do trabalho de edição, verdadeiramente colaborativa e activa junto aos artistas. Por exemplo, a forma como Mouly explica que elas são pensadas a longo prazo, e não individualmente, de maneira a criar uma espécie de seuquência ou pelo menos série, e não apenas projectos isolados a cada edição: “Paulatinamente, é claro para mim que as capas da New Yorker têm um valor enquanto conjunto de imagens, mais do que uma só imagem”, afirma ela (105)…Um seu outro projecto recente, Blown Covers, que antologia sobretudo ilustrações pensadas para capas que acabaram por não ser usadas (muitas das quais levam a mal-entendidos ou discussões acesas, como aquela que Crumb criara a propósito do casamento homossexual nos Estados Unidos), desdobra e ilumina esse papel fundamental da edição (no sentido de editing, de trabalhar, melhorando, procurando acentuar vertentes, enfatizando dimensões visuais, etc.).
Aliás, a metáfora da cirurgia surge várias vezes, não apenas nas palavras do próprio Heer como de Spiegelman, que compara o trabalho de edição (de novo, editing) a essa outra actividade de precisão e risco, chegando-se mesmo ao ponto de afirmar (67 e ss.) que o tipo de “edição literária da banda desenhada” não existia antes de Mouly, dando-se variadíssimos exemplos, sobretudo no seio da Raw e depois da New Yorker, em que a intervenção “invisível” de Mouly conseguia colocar os autores e artistas a fazer melhor o seu próprio trabalho, em que estes acabariam por entrar melhor na sua própria idiossincrasia autoral. O que é, de resto, o melhor resultado do trabalho de edição: levar a que alguém descubra na perfeição a sua própria linguagem. E são vários os autores que se encontrarão nesse grupo, como Burns, Sue Coe, e até Chris Ware nos seus primeiros trabalhos (na Raw), ou depois na New Yorker, vários ilustradores (uma pequena mas incrível informação sobre uma capa de Sykoryak é muito explícita desse papel). Mesmo algumas intervenções de Mouly na colorização das capas da revista sobre desenhos de Joost Swarte e Gary Panter sublinham a natureza específica de cada um destes nomes, e não uma “solução comum” sobre e ao lado deles.
Sendo uma biografia, sente-se ao longo da leitura do livro que as informações nascem, obviamente, de toda uma série de entrevistas. E se se considerar de facto interessante as anedotas da infância de Mouly, as suas experiências enquanto assistente do pai, cirurgião plástico (de onde parte a tal metáfora), estudante de arquitectura, colorista da Marvel (na qual a sua decisão em pintar carros da polícia de rosa não foi bem vista), desenrascada em Nova Iorque, há um crescente desejo em ter tido acesso à voz primeira dessa narrativa. De certo modo, há um desejo que Jeet Heer tivesse criado uma condição em torno da voz original de Mouly (vem-nos à mente o livro de Giacometti, já antes citado neste espaço, Je ne sais ce que je vois qu’en travaillant, ou a entrevista a Crumb por H.-U.Obrist). Ainda que não concordemos com algumas das posições críticas de Heer em relação a determinados circuitos de produção da banda desenhada (por exemplo, não concordamos que Bluberry, série a qual não é apenas de Jean Giraud, seja uma série feita de “clichés”, pois bem pelo contrário o trabalho de Charlier tentou inflectir essa noção do western, e apesar de concordarmos que o mainstream de super-heróis é muitas vezes apresentado como único género da banda desenhada nos Estados Unidos, e a sua esmagadora produção seja fraca narrativa e visualmente, não vale a pena, julgamos, deitar fora o bebé com a água do banho), no entanto, o trabalho deste autor, como lhe é reconhecido em vários círculos, é feito com grande rigor, uma muito sólida contextualização histórica, social e política e uma belíssima prosa.
Nota: agradecimentos ao autor, pela facilitação em aceder ao seu projecto, e à editora, pela oferta do livro. A Coach House, é preciso recordar, foi (e é) uma casa importante da edição independente canadiana, com uma atenção particular para com círculos artísticos e poéticos alternativos, e foi quem publicou em 1975 a edição original do monumental The Cage, de Martin-Vaughn-James.
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