31 de outubro de 2013

Drawing on Tradition. Manga, Anime, and Religion in Contemporary Japan. Jolyon Baraka Thomas (University of Hawai’i Press)

Nota inicial: a recepção deste texto foi feita a quatro mãos, com a investigadora Ana Matilde Sousa. Apesar da redacção do presente texto ser da nossa responsabilidade, algumas das ideias e mesmo palavras foram colhidas da sua lavra e/ou discutidas em parceria, ainda que tomemos nós toda a responsabilidade pelos erros ou más interpretações. Prevê-se uma versão em língua inglesa no International Journal of Comic Art, numa redacção de A. M. Sousa.

A exponenciação dos estudos de banda desenhada, como temos repetido, leva a que surjam cada vez mais estudos extremamente circunscritos e específicos, como é o caso de Drawing on Tradition. Juntamente com Graven Images, Do the Gods Wear Capes? e outros trabalhos, este volume vem juntar-se aos estudos cruzados de religião e banda desenhada. O seu autor está menos interessado em providenciar-nos uma tipologia de obras que seriam o resultado de uma análise de conteúdos, provinda de um corpus substancial, do que focar-se num estudo sobre usos. Drawing on Tradition, portanto, não será uma mera exposição de representações, isto é, registos, simbolizações ou retratos a posteriori de uma realidade preexistente e objectiva, mas uma leitura de textos que fazem parte da contínua performatividade da religiosidade e espiritualidade, entendida em termos muito precisos. Thomas distingue essas duas palavras, e alerta ao perigo em entendê-las dos seus modos correntes e diários. Como ele explica no capítulo introdutório, “este livro é sobre os modos diversos e criativos através dos quais os elementos constitutivos da cultura da mangá e do animé são lançados, recebidos, interpretados e como interagem mental e fisicamente com os seus conteúdos narrativos e visuais. Além disso, centra-se explicitamente como é que o cumprem de maneira a reflectir enquadramentos mentais religiosos [religious frames of mind]” (31-32).

Esta noção é algo complexa. Aliás, toda a discussão da religião abre inúmeras vias problemáticas, como se fosse possível opor um (suposto) conjunto de princípios religiosos puros e prístinos das fés e denominações, por um lado, e, por outro, as interpretações que poderiam emergir no seio de uma qualquer mangá ou animé, ou mesmo na leitura desses textos por uma determinada comunidade. No entanto, o autor tenta explicitar todos os termos o melhor possível. Em primeiro lugar, “O conceito do enquadramento mental religioso servirá de aparato crítico para a apreensão das várias formas como a mangá e o animé servem de mediação da recriação da religião” (27). Esta última, por sua vez, “é definida como um modo particularmente imaginativo com uma disposição inerentemente social que pode ser observada em rituais óbvios ou declarações públicas de crenças” (11). Portanto, quer a banda desenhada quer a animação japonesas são vistas aqui como meios em todo o seu sentido, isto é, enquanto media e enquanto mediadoras dessas mesmas experiências ou processos complexos de sociabilização e conceptualização da vida. Mas o paradoxo deve ser mantido, precisamente para alertar ao espectro de liberdade entre criação e recepção: “Eu junto as palavras shukyo (religião) e asobi (jogo {play]) no neologismo shukyo asobi (…) [o qual] também ilumina os aspectos similarmente imaginativos da religião e recriação, o que nos ajuda a elucidar os modos como um produto de um determinado meio pode ser percebido como, a um só tempo, divertido e piedoso pelo lado da produção ou frívolo e profundo da parte da recepção” (16).

O investigador especifica: “Um enquadramento mental religioso está presente quando uma determinada narrativa anima o público, inspirando actividades de devoção ou ritualísticas tais como a criação de tabuletas devotas (ema) em templos endereçadas, não às divindades [shinto, neste caso] mas às suas personagens favoritas” (31). De facto, o autor cita e mostra um par de exemplos disto, com uma fotografia de um ema dedicado a uma personagem das Sailor Moon (77), mas não é muito claro em como é que esse comportamento pode ser visto como “devoto”? Aliás, o autor chega mesmo a escrever que “estudos de religião e religiosidade não precisam do estudo de religiões formais e das suas doutrinas”. Porém, e admitindo abertamente a nossa ignorância neste campo, por exemplo do que constituiria uma “religião não-formal” ou “sem doutrina” de qualquer espécie, não compreendemos a possibilidade dessa ausência.

O autor não pretende ser exaustivo de alguma maneira, mas antes pertinente nas suas opções [afinal, pode-se identificar temas religiosos em quase qualquer texto, ancorado na vida quotidiana ou fantasioso, psicadélico como Ultraheaven ou action-packed como Gantz]. No entanto, mesmo que ele admita, por exemplo, não tratar a shoju ou a josei mangá de modo suficiente, por não estar tão familiarizado com essa produção, acaba por perder assim uma dimensão de inquirição extremamente interessante. A pergunta a colocar seria a de se a experiência da religião é presidida por questões de género/sexo. No quadro heurístico que J.B. Thomas apresenta, porém, uma leitura mais alargada do corpus possível poderia levar a apontar algumas ausências, especialmente no que diz respeito à ritualização, elemento fulcral na religião. Não sendo de forma alguma uma obra-prima da mangá ou animé de modo intrínseco (entenda-se isso de que maneira se desejar), Death Note é um modelo de comportamentos e imitações ritualizadas extremamente produtivo no quadro de uma investigação desta natureza [como a fabricação dos "cadernos"]. Mas se a obra em si é citada na investigação, o seu uso transformativo (também verificado em Portugal) está ausente dela. Já o cosplay surge não enquanto “acto religioso específico”, mas pelo menos sugerido enquanto “acto ritualizado através do qual os fãs entram em contacto com a sua personagem favorita” (76), ainda que o autor não providencie formas claras - que julgamos serem necessárias, mas podemos estar errados - de distinguir “modas passageiras” (mesmo que as entendamos com Baudelaire enquanto facetas de ideais eternos) de ritos religiosos propriamente ditos. Haverá seguramente diferenças entre processos históricos transculturais complexos e prolongados e tendências que mudam a cada cinco anos… A menção do surgimento de novos movimentos religiosos no Japão são fenómenos altamente interessantes, mas falta um ponto de comparação com situações ora similares noutros contextos, ora uma mais fincada explicação dessas emergências.

Em termos gerais, o que se passa são tratamentos algo sumários de certas questões, que parecem pedir por um desenvolvimento mais alongado. Digamos que o autor identifica com exactidão muitos dos pontos que se tornariam pertinentes neste enquadramento disciplinar, mas em vez de os transformar num projecto de análises mais estendidas, assinala-as e suspende esse desenvolvimento. A título de ilustração, reparemos na conclusão a que J. B. Thomas chega, depois de citar extensivamente um estudo de Philip Lutgendorf sobre um filme indiano: “A análise dele revela o processo recíproco e recorrente entre a doutrina existente e o ritual mediado, entre o novo ritual e a doutrina renovada (…). Os filmes podem então servir quer de pontos de passagem quer de criadores de culturas religiosas (…). Eu sugiro que os meios de comunicação [media] não usam ou criam religiões, mas são antes as pessoas que o fazem. Os autores, os artistas, os realizadores, e os públicos fazem-no através de actos pró-activos de execução e interpretação” (109). Mas qual será a diferença, então, entre o exemplo particular citado (o filme Jai Santoshi Maa), os vários casos de estudo de Thomas e, arrisquemos, The Rocky Horror Picture Show, que compreende visionamentos colectivos altamente ritualizados? Mesmo que aceitemos que os “filmes são muitas vezes usados ritualmente (repetidamente, como textos litúrgicos, como escritura) tanto para edificação como entretenimento (104)”, não haverá uma diferença na forma como repetimos o visionamento de um DVD em casa, ir ao cinema em grupo e vestido a rigor, mascararmo-nos de uma determinada personagem e repetir as frases mais célebres, por um lado, e ir à missa, discutir as Escrituras ou orar cinco vezes ao dia por outro? Uma ênfase mais forte em enquadramentos filosóficos, portanto, parece-nos estar ausente destas discussões.

Vejamos alguns outros exemplos, rapidamente. Quando se refere a Buddha, do “deus da mangá” Tezuka, Thomas escreve que esse texto é tratado como “sagrado” por si mesmo (91), mas não apresenta uma contextualização detalhada ou específica de como é que esse entendimento se poderá dar. Baseando-se num caso, aparentemente único, de um autor de mangá que se tornou líder religioso, Yamamoto Sumika, as generalizações que faz sobre esta arte fazer emergir “comunidades imaginadas” concretas a partir de rumores, e não de uma análise directa, não abona a favor da solidez da ideia. Um outro caso (o mangaka Kuroda Minoru, autor de histórias de contornos ocultistas e que fundaria a Subikari Koha Sekai Shindan ou Corporação Divina do Mundo das Onda de Luz de Su) é estudado, mas muitos detalhes estão omissos. O autor também parece confiar em demasia nas declarações de intenção dos autores e nas recepções dos espectadores, mais do que numa análise textual (vejam-se as leituras dos filmes de Miyazaki, no capítulo 3). É uma posição, e nem sempre a “falácia da intenção” pode ser sacrossanta, mas nós cremos que essa pressuposição pode levar a análises incompletas ou mesmo erradas.

O autor também não deixa de fazer algumas introduções como que incompletas, como quando escreve que “A mangá é um tipo específico de banda desenhada. São romances [novels] ilustrados e serializados que compreendem vinhetas colocadas lado a lado que combinam art [artwork] e texto” (3). Esta afirmação não apenas essencializa a banda desenhada japonesa como algo necessariamente diferente de qualquer outra coisa produzida pelo globo inteiro parecido com ela, como assuma algumas dessas características como necessárias em si mesmas - a serialização, a narrativa, a existência de texto -, prevenindo que outros objectos possam ser englobados nessa palavra. Aliás, há momentos em que o uso de palavras como “género”, “formato”, categoria”, “forma”, que não são sinónimos, criam uma amálgama mais indecisa do que clara. E apesar de ser verdade que na língua japonesa o termo “mangá” abraça certo tipo de textos que não seriam considerados banda desenhada noutras línguas, como os cartoons, por exemplo, ainda assim estabelece-se aí uma diferenciação escusada. Por outro lado, o autor também parece apoiar-se em demasia nos livros de Scott McCloud para o seu vocabulário e instrumentos teórico-analíticos específicos, empregando por atacado os grandes descritivos do artista-teorizador norte-americano da “clausura” ou “conclusão” [closure] e “composição” [compositing]. Ora, se Thomas estivesse mais familiarizado com os quadros teóricos que tem sido desenvolvidos nos Estudos de Banda Desenhada dos últimos anos, ele poderia ter feito um bom uso de conceitos tais como os da multimodalidade, da tressage/entraçamento, e até mesmo prestado maior atenção aos estilos específicos  a (alguma da) mangá da representação/figuração dos corpos, desde os chibi “queridos” às proporções de oito cabeças típicas da mangá shonen (que se revelaria mais uma vez produtivo para as questões de género, mas também de distribuição demográfica, estratégias narrativas e representacionais, e por aí fora). A sua breve história de várias tradições visuais ou visuais-narrativas autóctones ao Japão também faz emergir preocupantes aspectos de essencialização histórica, que mitifica o surgimento desta linguagem naquele país, evitando discutir as influências significativas por formas “estrangeiras” e criando um fictício contínuo entre as várias formas antigas, sobretudo se têm algum conteúdo religioso, com as novas “Apesar de diferirem significativamente de meios pré-modernos [como os citados emaki, etoki, kibyoshi e kamishibai], a mangá e o animé herdam o legado da ficção ilustrada vernácula japonesa, muita da qual se relaciona historicamente com a religião” (56).


Acima de tudo, e ainda por “responsabilidade” de McCloud, encontramos uma aceitação da teoria de identificação com as personagens, muito problemática, e que se verifica vezes sem conta na escrita sobre banda desenhada (e outros meios artísticos parentes), como aliás verificámos noutros casos anteriores. O problema desta teoria é que mistura a “identificação” semiótica com a psicanalítica, simplificando drástica, se não erroneamente, a complexa e multinivelada experiência cognitiva da relação que os leitores/espectadores estabelecem com as personagens. Ao aceitar a teoria de McCloud de que quanto mais são as personagens simples e/ou icónicas mais forte é a identificação dos leitores com essa mesma personagem, Thomas menciona a obra 20th Century Boys, de Urasawa, a qual “providencia distanciamento do antagonista [o Amigo]… através da sua representação sempre com uma máscara” (46). Mas essa máscara não acaba por simplificar ou “iconificar” o rosto, tornando-o mais simples, logo mais fácil de nos identificarmos com ele? Esta teoria de identificação parece ser tão generalizada que muito raramente encontramos sérias revisões dela (Jan Baetens, todavia, apresentou uma perfeita correcção dela, em The Language of Comics: Word and Image). O autor repete uma situação similar mais tarde, também deixada por analisar, quando escreve “o uso eficiente e efectivo do exagero e da hipérbole - ajuda a dissolver as fronteiras entre a personalidade da personagem e as do espectador” (49). Mas como é que isso sucede? Em que medida é que a leitura ou visionamento de uma obra ficcional, num processo particularmente regrado - numa sala de cinema, num sofá, etc. -, “apaga” a percepção de si mesmo?

Em termos gerais, a prosa de J. B. Thomas é muito legível e cativante, encontrando um balanço excelente entre, por um lado, um bom número de anedotas e experiências mais pessoais (que não apenas explicam situações como tornam o processo transparente), e por outro, a sua experiência académica especializada e resultados de trabalho de campo, tornando todo o livro num projecto muito acessível a leigos ou investigadores cujos interesses podem não coincidir totalmente (ora pela religião, ora pela mangá, ora pela cultura popular japonesa). Isso não significa que não haja lapsos em dimensões de  uma grande especialização mas que ficam por contextualizar ou introduzir, criando pequenos blocos de obscuridade (nomes de publicações, autores, etc.). Mesmo na era da Wikipédia, é aconselhável que os autores integrem melhores contextualizações dos elementos empregues nos seus discursos.

O autor baseia-se em algum trabalho de campo, ainda que ele próprio admita que essa dimensão seja “desenhada com imperfeição” (60), e surja mais enquanto uma espécie de carta de intenções para desenvolvimento futuro. Estamos longe da monumentalização sociológica de um Pellitteri. Porém, e apesar das limitações apresentadas, o seu corpus é impressionante, uma vez que não bebe somente daquela banda desenhada ou animação acessível em traduções inglesas ou divulgação oficial, mas também através de outros canais de acesso, mesmo que menos legais (torrents, fóruns, scanlations), já que eles fazem parte desta cultura específica. No entanto, por razões de clareza de argumentação, o autor optou por utilizar no mínimo obras de acessibilidade limitada (apenas existentes em japonês, de autores ou revistas mais obscuras, etc.), de maneira a permitir uma contra-proposta da sua leitura. Esta abarca uma variedade significativa, como dissemos, sobre a qual se propõe a fazer leituras muito estimulantes. Encontraremos o “Ciclo da Fénix” de Tezuka e o Death Note de Ohba e Obata, mas também o divertido Saint Young Men de Hikaru Nakamura, e filmes de animação tão famosos como Pom Poko de Takahata Isao ou Sen to Chihiro de Hayao Miyazaki como projectos mais obscuros (e muito provavelmente menos apelativos a um público alargado) como produções de algumas seitas particulares ora de banda desenhada (como por exemplo Metsubo no hi do culto Aum Shirinkyo) ora de animação (Eien no ho/The Laws of Eternity, do movimento “Ciência Feliz”, ou Kofuku no Kagaku).

O último capítulo é dedicado exclusivamente ao Aum Shinrikyo, tristemente célebres pelo ataque com gás sarin que levaram a cabo no metro de Tóquio em 1995. A relação deste culto - o autor explica rigorosamente o uso deste termo - com a mangá e o animé é relativamente conhecida e óbvia, uma vez que ele mesmo emergiu nas páginas de revistas ocultistas locais. Mas J. B. Thomas regressa a ele com um estudo atento e bem ancorado, por um lado perscrutando a banda desenhada e a animação que provavelmente terá influenciado os próprios princípios desse movimento (tais como Nausicaä e Akira), e por outro abordando as produções do próprio culto ou as formas como trabalhos de outros autores criariam representações ou directas ou baseadas no modo de funcionamento e pensamento do Aum, desde tratamentos superficiais como aqueles verificados em Charisma a tratamentos mais ambivalentes, como o de Urasawa em 20th Century Boys.

O autor conclui que a “mangá e o animé oferecem-nos uma vista para as complexas e mutáveis relações entre o secularismo, a religiosidade e o entretenimento que influenciam as atitudes contemporâneas concernentes às práticas e afiliações religiosas no Japão. (…) estes meios [são] ferramentas efectivas na disseminação de conteúdos religiosos” (152). Essa missão é de facto cumprida por este pequeno volume, mas algumas das dimensões fazem-nos desejar um espaço maior desse tratamento.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro, e a Matilde Sousa, pelo desafio aceite e a iluminação sobre muitos aspectos.

3 comentários:

José Sá disse...

Caro Pedro,

Ainda no seguimento do post e comentário anterior e nova referência ao "erro de identificação McCloud" (este apelido não pode ser por acaso :-), confesso estou muito baralhado e já não sei se terei interpretado muito mal a minha leitura do "Understanding Comics", pois compreendi na altura que a ideia que se pretendia transmitir era a de que a "iconização" da personagem permitiria ao leitor, através do distanciamento, atingir uma maior aproximação , não necessariamente da personagem em si, mas da verosimilhança da história ou, melhor ainda, uma maior eficácia na aceitação da mesma. Como no exemplo que dei do Santo António a pregar aos peixes, não é esse um caso em que “o uso eficiente e efectivo do exagero e da hipérbole ajuda a dissolver as fronteiras entre a personalidade da personagem e as do espectador"?
Podemos não concordar com esta "teoria da identificação", mas se, como dizes, J B Thomas escreve que aceita a máscara do "amigo" no 20th Century Boys como algo que providencia o afastamento que (lhe) permite o envolvimento na história, isso parece-me coerente com a interpretação da teoria e não uma falha de coerência na mesma.
A teoria nem é original, a mesma terá certamente sido utilizada para explicar técnicas de identificação noutras formas de expressão artística. Recordo-me, como exemplo, da banalização coreográfica da violência na 7ª arte, quer para os filmes do horror do "real/social", quer do do "ficcionado" ("Assassinos Natos" ou "Braindead", imensos outros). Lembro-me particularmente destes, porque na sala de cinema cheia eu devia ser uma das poucas pessoas que não ria, não porque não estivesse a apreciar os filmes, mas talvez por não me sentir confortável nesse processo de "identificação".
Penso, ou assim espero, compreender o teu desprezo muito justificável por esta teoria. Aceitá-la como regra, conforme é apresentada num gráfico em pirâmides de eixos cartesianos (se estou bem recordado), será sempre apontar um caminho redutor à produção de histórias de BD ou, já agora, de qualquer outra forma de expressão artística. Não precisamos que todas as histórias nos sejam contadas através de alegorias, parábolas e metáforas. Poderá o ego atingir um grau de emancipação, de secularização, face a estes expedientes litúrgicos de comunicação? Será o ideal de qualquer forma de expressão, a sua evolução final, o abandono do recurso aos mesmos? Seremos algum dia intelectualmente autossuficientes para que consigamos discutir valores e bem-estar social sem que precisemos de evocar personagens estranhas como peixes e santos e super-homens? (sim, poderemos também abandonar algum dia a retórica? :-))))))
Mas se até Nietzsche usava metáforas...
Parabéns pela crónica e pelo teu talento e erudição, obrigado pelo teu blogue e pela generosidade com que o escreves.
Abraço,
José

José Sá disse...

Já agora, mais acrescento que o Scot McCloud infantiliza ou nivela o leitor por baixo quando despreza a evolução e educação do gosto adquiridos pela multiplicação e diversificação de leituras feitas ao longo de uma vida. Será possível comparar, no meu caso particular, a identificação que encontro ao ler o ultrarrealista Harvey Pekar? Paralelamente a este argumento, o que dizer do desenho do mesmo Pekar pelos vários desenhadores? Devo sentir uma identificação crescente quando é desenhado pela Rebecca Huntington, pelo Crumb e depois pelo Chester? Ou devo sentir ambivalência de Cerebus entre os desenhos do Dave Sim e do Gerard? Seria necessário um novo gráfico tridimensional (tretadimensional, pelo trocadilho)que avaliasse essa distorção determinada pelo "estatuto" do leitor, ponderado pelo multiplicador do desenhador da personagem? Este axioma, em matemática, seria arrasado pela comunidade científica, pelo vezes para a qual não funcionaria. É natural que seja aceite como axioma pelos amadores, pelos comentadores, mas exige-se (percebo(-te)) uma maior elaboração por parte dos críticos da 9ª arte.
Prometo não voltar ao assunto.
José

Pedro Moura disse...

Caro José,
Confesso que tenho alguma dificuldade em seguir todos os pontos da tua argumentação, já que me parece haver alguns saltos menos claros. A ideia da "identificação" proposta por McCloud é a de que as personagens principais, quanto mais simples são, mais rapidamente nos sugam para o interior da história, e mais essa tal "identificação", que nunca é explicada cabalmente, tem lugar. O problema é que o processo a que se dá o nome de "identificação" nunca é explicado, e tendo em conta que ele tem sobretudo dois grandes significados de dois campos distintos, não se percebe: na psicanálise, "identificação" é um processo em que o analisando acaba por identificar-se como centro de todas as atitudes e palavras do analista, levando a projecções, confusões, malentendidos, etc., que devem e são utilizados no processo de terapia. É o único caso em que há, de uma forma simplista, uma confusão entre quem eu sou e outra pessoa. Na semiótica, porém, "identificação" tem simplesmente a ver com a economia dos meios: uma determinada personagem é principal porque aparece mais vezes, as acções são comandadas por ela ou gravitam em seu torno, há um maior tratamento de caracterização dela, e por aí fora. Por isso, mesmo que achemos mais fascinantes o Darth Vader do que o pãozinho sem sal Luke, é este último a personagem principal de "Star Wars". Ora, eu não "desprezo essa teoria", porque NÃO É UMA TEORIA. São apenas ideias confusas e simplórias, onde "identificação" quer dizer que os espectadores, leitores, etc., "vestem" as personagens principais como luvas, colocando-se no seu lugar. Mas sem qualquer explicação de como é que isto funcionaria. E, seja como for, isto não é totalmente verdade. Há uma gigantesca diferença entre empatia e simpatia, entre compreensão da diegese e confusão dos sentimentos. Quando vejo o "meu" herói a sofrer, nutro um forte sentimento pelo seu sofrimento, mas não sofro com ele. A narratologia cognitiva tem muitos estudos sobre estes mecanismos que não corroboram essa "teoria".
Volto a repetir: o McCloud tem lições importantes e esquemas extremamente iluminadores, mas tem outros aspectos que são mesmo muito fracos, como por exemplo a sua total falta de compreensão histórica, das necessárias contextualizações concretas de determinadas obras, da integração de mais exemplos alheios - em vez de os inventar ad hoc -, e de uma análise mais séria que não se entregue ao exercício, vão, de separar "forma" e "conteúdo".
Também continuo a não compreender totalmente a comparação ou uso do sermão, já que os seus recursos retóricos não têm nada a ver com os esquemas de que estamos aqui a falar, mais próximos de narrativas lineares, etc.
De resto, nunca virá a ser possível que contemos seja o que for sem retórica, já que esta não se limita a metáforas, expedientes ou embelezamentos: ela é a própria organização do discurso. Não existe sequer a possibilidade de um "discurso objectivo". Ou não seria discurso.
Haveria muito a debater, decerto, mas fico-me por aqui.
Obrigado pelas palavras.