11 de outubro de 2013

The From Hell Companion. Eddie Campbell e Alan Moore (Top Shelf)

É curioso notar como a expansão da atenção para com a banda desenhada não signifique somente o aumento das vozes que se expressam através dela, nem dos estilos nem dos géneros ou possibilidades narrativas, temáticas e estruturais, mas igualmente das discussões disciplinares em seu torno, o que se vem demonstrar igualmente por estas abordagens a que podemos chamar de edições críticas. Este termo quer dar a entender, de uma forma simples, a publicação de um determinado texto, mas procurando uma sua fixação ancorada por estudos e sustentações críticas e analíticas da sua matéria. No caso das edições da literatura, existe toda uma tradição de aparatos críticos textuais consabidos, mas no caso da banda desenhada isso ainda é relativamente recente. Podemos pensar em Autopsie d’une adaptation, de Jean-François Douvry (um estudo sobre a adaptação do romance 120, Rue de la Gare, de Léo Malet, à banda desenhada por Tardi) ou nas edições The Complete Maus/MetaMaus como gestos conducentes a essa situação. Mais recentemente, temos The Daniel Clowes Reader, de Ken Parille, que abordaremos atempadamente, e este The From Hell Companion.Apesar dos dois nomes na capa, este livro é sobretudo coordenado pelo autor Eddie Campbell, mas que no projecto de From Hell poderá ser tratado como “artista”, sem diminuir a sua força participativa, e cuja relação com a Top Shelf já vem de longe (tendo publicado a integral de Alec e estando para breve a de Bacchus).
From Hell é, possivelmente, uma das obras mais monumentais e majestosas da banda desenhada moderna. As comparações directas entre textos diversos é sempre falha, mas a razão dessa apreciação global não terá a ver com a longevidade ou fama do trabalho (se bem que foi produzida ao longo de dez anos, termina num tomo imponente, e passados mais de vinte anos desde o seu início, ainda continua a ser uma referência para os seus leitores atentos), nem com estratégias de espectacularidade (se bem que possamos ler alguns episódios, das visões de Jahbulon à “apoteose” de Gull, passando pela obscena e ritual matança das mulheres pelo médico), nem com experimentações formais nítidas (como em Watchmen, mas ainda assim tendo soluções magníficas) e muito menos com o facto de ter conquistado “traduções” (o filme baseado nele é, numa palavra, medíocre, para não dizer pior). From Hell é um gesto de uma elegância narrativa e visual muito raro (como esta  página, que Campbell usa como exemplo de leitura pluridireccional, inclusive em termos do texto). Não é um policial, pois sabemos quem é o assassino - isto é, a exploração fictícia dessa hipótese, Moore e Campbell são claríssimos que não pretendem criar uma solução, mas sim uma obra ficcional - Jack, the Ripper, desde o início; não é uma obra de horror, pois as emoções que se pretendem estimular não são essas súbitas alavancas e desconfortos, mas antes uma protelada angústia em nos aproximarmos de uma realidade que jamais compreenderemos na totalidade; não é uma biografia, se bem que se arrolem factos e ideias em torno das mais variadas personagens históricas e da cidade de Londres do final do século XIX; não é uma teoria, se bem que a sua trama e matéria visual provoque uma tessitura fortíssima nesse sentido. Como o primeiro episódio escrito por Moore para Swamp Thing, no qual ele coloca todas as perguntas mais importantes para compreender a personagem principal, mas necessariamente mergulhando num acto de violência desapaixonada, From Hell é antes uma lição de anatomia. É também, sob a influência assumidíssima da obra literária e cinematográfica de Ian Sinclair, um gigantesco passeio psicogeográfico pela cidade de Londres, que se torna assim, tal como apontado por tantos críticos, mais uma, senão a principal, personagem desta obra. Aliás, em 1001 Comics You Must Read Before You Die, uma das obras apontadas como similares é Berlin, de Jason Lutes. E se bem que a pesquisa do autor norte-americano seja uma mais circunscrita pesquisa histórica, a polifonia dessa outra obra é comparável, mesmo que From Hell provoque um escopo mais alargado e mais profundo para com a matéria que constitui a própria existência humana, as dores que infligimos uns aos outros, e as desigualdades sociais que empregamos para o fazer. Enfim, uma obra feita por dois soberbos autores britânicos para o mercado norte-americano, mas que mergulhava na Inglaterra vitoriana e, como apontado pelo próprio texto, e outros críticos, acaba por ser uma dissecação e trabalho de parto dos horrores do século XX, uma espécie de interrogação sobre o (falso) estado de civilização a que pensávamos (e ainda hoje pensamos) ter atingido.
Se se pode falar de dissecação, anatomia revelada, esses gestos são cumpridos para que se provoque um choque de destruição de ilusões. Numa das muitas partes em que Eddie Campbell tece comentários mais filosóficos sobre as implicações desta obra, e mais concretamente sobre a necessidade que as pessoas parecem ter em nutrir teorias da conspiração, implicações maquiavélicas da Maçonaria ou outras ordens “controlando os fios”, escreve o autor: “A humanidade sente um profundo terror em relação ao insondável, e por isso inventamos deuses e conspirações. Preferimos acreditar que pessoas velhacas controlam as coisas do que considerarmos a possibilidade que ninguém o faz” (259). Esta é uma ideia que Moore, de resto, havia explorado na própria obra, algo que, admite o escritor, escreveu para efeito, mas quando se apercebeu da sua verdade profunda - a de que os deuses existem mesmo, mas na nossa imaginação, e é em nome deles que tanta mortandade e crime se cometeu - foi “forçado”, digamos assim, a viver essa mesma verdade. Poder-se-á dizer que foi graças a From Hell que Moore, aos 10 anos, tomou a decisão de se tornar um mago.
Essa é também uma das razões pelas quais o William Gull fictício - não podemos parar de insistir neste aspecto - é um vilão muito mais bem construído e interessante e eficaz e memorável do que todos aquelas figuras pré-fabricadas (zombies, lobisomens, nazis). E a sua apoteose final, em que Gull se torna uma espécie de criatura semi-divina, a quem as várias figuras do seu panteão sincrético lhe dá as boas-vindas, mesmo que apenas na ilusão no interior da sua mente , é ainda mais tocante. Como se cita de uma entrevista com Roger Sabin, as constelações são padrões impostos sobre as longínquas estrelas pela nossa própria perspectiva e circunstância, e é isso o que os “caçadores de gaivotas” Moore e Campbell fazem com From Hell, magistralmente. Um padrão.
O presente livro é divido em várias partes, que correspondem aos capítulos da obra original, parte nas quais Campbell tenta identificar os temas que se concentram nesses agrupamentos, como “a cidade de Londres” ou “princípios cinemáticos”, por exemplo. No entanto, para uma simplicidade de consulta e acompanhamento ou releitura da obra, está tudo organizado pela ordem dos capítulos. Existem interlúdios com imagens das mais diversas naturezas (ver adiante), mas tudo isto contribui para aquela imagem do “floco de neve de Koch” que é explicitamente citado no epílogo da obra, corroborando a forma como vamos espiralando através de informações (recordemo-nos dos magníficos apêndices textuais de cada livro) até um hipotético “centro” que, como quer o poema de Yeats citado, jamais se sustenta.
Além do mais, juntam-se os complementos expectáveis: novas aguarelas, as capas e ilustrações a cores feitas por Moore e Campbell para as publicações originais ou outras plataformas, material promocional, as fotografias tiradas pelos autores ou amigos (a ideia de Jamie Delano servindo de chauffeur é impagável), os rascunhos nos blocos de apontamentos de Moore, algumas sinopses ou tratamentos alternativos das versões finais, informações sobre o caso real contrastando com as opções literárias e artísticas dos autores, comparações ou menções - sarcásticas e corrosivas - à patética versão cinematográfica do livro, trechos das mais diversas entrevistas ou artigos sobre a obra e os autores, e até desenhos da filha de Campbell, Hayley, que, tendo acompanhado o pai nesta aventura desde os 3 anos, desenhava pelos 6, 7 anos de idade cenas retiradas directamente das cenas mais escabrosas da magnum opus…
O primeiríssimo capítulo de From Hell saíria na revista Taboo no. 2, a Setembro de 1989, a qual era coordenada por Steve Bissette mas que atravessaria variadíssimos problemas de calendarização, circulação e vendas (aprendemos aqui que várias empresas de acabamento se recusavam a aceitar o livro dado o seu conteúdo potencialmente controverso, tal como os “conteúdos” de From Hell levantariam alguns obstáculos na sua importação na África do Sul, Austrália, ou mesmo no Reino Unido), ao ponto de Campbell apelidar a revista de “antologia trimestral que sai uma vez por ano”. Foi nessa mesma revista que as primeiras páginas de Lost Girls sairiam, na sua primeiríssima versão, depois abandonada. Mas mesmo com a transformação do projecto numa espécie de magazine irregular, os vários livros de From Hell atravessariam dois projectos editoriais (a Tundra e depois a Kitchen Sink), e apenas passados dez anos seria a obra, como um todo, publicada num imenso volume único pelo selo do próprio Campbell. Talvez o seu impacto junto a um público mais alargado tenha apenas surgido depois dessa sua existência em um volume, e será a ele que haverá sempre novas conquistas de leitores.
Para quem havia lido o primeiro volume (de uma série que jamais viu continuidade) dos The Complete Scripts desta obra, pouco adiantará este novo volume em termos de aproximação e aprendizagem do método do escritor (já para não falar dos materiais espalhados noutros locais, como os livros de homenagem, a monografia de Millidge, etc.), mas como o próprio Moore indica em relação ao seu processo de trabalho, tendo uma ideia da imagem geral desde o primeiro momento mas à medida que avançava se ia apercebendo cada vez melhor dos pormenores, também esta leitura nos vai dando aos poucos novos elementos. Para além do acesso aos scripts até agora nunca revelados, parte de leão desta obra, outra significativa parte desses elementos partem de Eddie Campbell, que não apenas providencia novos desenhos ou material de preparação, como comentários, muitos dos quais hilariantes, mas que vão iluminando o processo de trabalho e de colaboração, as circunstâncias desses mesmo trabalho, e outros faits divers. Ainda assim, esta é uma oportunidade para compreender que Moore cria um género muito particular de escrita. Ao lermos os argumentos, apercebemo-nos da sua forma literária, que parece ir muito além da “necessidade” de criar informações visuais para o artista cumprir; não tem apenas a ver com informações impossíveis de colocar no papel, desde sons a cheiros, impressões ou pormenores detalhadíssimos, é a própria linguagem burilada. Exemplo clássico e várias vezes repetido: “Um outro escritor poderia dizer-te ‘está a chover’, mas no argumento de Alan Moore está escrito que o seu ruído é ‘como código Morse para um romance russo imenso e depressivo’” (85). Por outro lado, há como que uma convergência entre a escrita literária, auto-suficiente, a dimensão das pistas ou desejo visual - que Campbell ora constrói na perfeição, ora suficientemente, ora mudando as estratégias, ora mesmo “falhando”, mas o que não impede a emergência de uma imagem justa… -, e ainda a parte de correspondência pessoal com o artista, na qual o escritor propõe explicações, posicionamentos teórico-estéticos, ideias de esclarecimento diegético, político ou de representação histórica, ou mesmo troca galhardetes e jocosidades pessoais, etc. Campbell mostra ainda alguns dos materiais de referência, fotografias ou outros, enviados por Moore a Campbell (que já vivia na Austrália, na época), ou as correcções de Campbell em relação a uma qualquer rua ou edifício; uma imagem da carruagem a cair da ponte do Tamisa, meio-construída, arrastando Netley e Gull, “corrige” com humor uma impossibilidade histórica. É nesse interstício de literatura epistolar - “Desculpa, temos aqui mais uma página de nove vinhetas” (154) - e documentos técnicos que emerge um dos processos de trabalho de Moore, mas também a amizade terna, dialogante e colaborativa, entre os dois autores. De facto, se o full script - de que Moore é talvez o cultor mais famoso (ainda que não único) - é um fortíssimo instrumento para tornar visível a “visão interna” do autor, tem de haver sempre alguma margem de aceitabilidade de entrada do artista, pois por vezes existirão desvios possíveis, melhorias consideráveis, ou então pura e simplesmente esforços impossíveis de alcançar (e Campbell vai deixando claro o que ele “não respeitou” temerariamente, mas também se sente o tom exasperado: “tanto disto está para além da [sua possibilidade de] ilustração”, 167). Todavia, se aceitamos que o texto final é que deve surgir de modo inconsútil e justo em si mesmo, o desvendamento da estrutura e processo nos bastidores não retira a sua “magia” final. De forma alguma, faz-nos antes compreender mesmo as maravilhas da colaboração entre dois autores inteligentes. Ainda assim, é muito revelador entender os problemas de representação, ou as posições dos autores - a escrita “cinematográfica” de Moore e a posição “anti-cinematográfica” de Campbell, problemas de (que o artista nos perdoe) raccord, e ainda os enigmas que se mantêm para além das “soluções” propostas pela obra.
Aquela dimensão de colaboração, expansão ou desvio em relação aos scripts leva a que haja aqui muito do material em que Campbell refazia ou corrigia páginas ou vinhetas. Podemos mesmo imaginar, tal como dissemos ao início, numa possibilidade futura em que as “edições críticas” de banda desenhada contemplariam a presença de todo o material alternativo, versões, correcções, etc. As informações dadas por Campbell abarcam ainda questões técnicas (que tipo de papel usava, como empregava as tintas e aguarelas, quais eram os seus assistentes e o que preparavam, como integrava o material de referência na textura das imagens, etc.) que são extremamente iluminadoras para com o processo social, igualmente. Quando ele, muito rapidamente, explica como se preparavam as pranchas com grelhas regulares sobre as quais depois procurava os desvios necessários, Campbell acaba por provar algumas das abordagens de Renaud Chavanne, no que diz respeito à “arqueologia” a fazer sobre os materiais originais dos autores, para nos apercebermos do processo de emergência das composições.
Aprende-se muito, portanto, nesta leitura e observação ultra-estimulada das páginas, sobre teoria, estruturação, composição e possibilidades de leitura. Campbell, aliás, tem uma expressão repetidamente usada, que é “grafismo da teoria e conjectura”, em que vai tentando demonstrar como a pesquisa de criação visual ajudava aos problemas de identificação de determinadas personagens, sobretudo no par Mary Kelly/Emma (o nome que ela dá a Abberline, iniciando uma estranha relação com o detective e Julia, hipoteticamente a última vítima de Gull. Eis uma frase iluminadora a esse respeito: “A minha noção sobre o livro era que precisava de um estilo de desenho que pudesse abarcar a ambiguidade e a hipótese ao mesmo tempo que apresentasse uma narrativa literal a desenvolver-se à nossa frente” (133).
Se existe uma miríade de pormenores importantes, como as imagens das capas, a questões várias como a(s) plataforma(s) de edição, os prémios ganhos, pensamos que o mais sumarento são mesmo as discussões de Campbell sobre a representação diegética, desde pormenores sobre a geografia e arquitectura da cidade de Londres nos anos 1880 ao emprego de Netley…
Apesar de Alan Moore, quando propôs a Campbell este projecto para participarem na Taboo, ter já atrás de si (parte d)os dividendos e a fama angariada por Watchmen e outros trabalhos, o seu afastamento da DC e a busca por canais alternativos de produção e distribuição não lhe sorririam. Apesar dos conselhos impagáveis que lhes haviam sido dados por Dave Sim, autor de Cerebus e mentor de muita gente em optarem pela  auto-publicação (e cuja correspondência com Moore sobre From Hell é importantíssima, e disponível online), as coisas não correram de feição para os autores ingleses nos seus projectos individuais. Não esqueçamos que o novo grande projecto de Moore da época, Big Numbers, só veria dois números publicados pela sua própria Mad Love, e depois teria um fim desastroso (recontado por Campbell em Alec: How to be an Artist). Isso reflectiu-se na maneira como cada novo capítulo de From Hell ia chegando às mãos dos seus leitores ávidos, através das confinadas redes das encomendas por catálogo que estavam disponíveis nos anos iniciais ou imediatamente anteriores à expansão paradigmática da www. Num aspecto muito pessoal, o confronto com esta obra obrigou a (mais) uma mudança paradigmática da forma como se apreciava a banda desenhada, assim como à compreensão do que lhe era possível enquanto matéria narrativa. Se num momento inicial se estranhava a opção de Moore por um artista aparentemente rudimentar, essa impressão errónea foi lavada à medida que mergulhávamos, ao ritmo de uma lâmina penetrante, sob a mera superfície até à medula de uma obra. E esse é mesmo o mecanismo de From Hell, que poderá começar num nível de representação diurna, social, epidérmica, para depois descer pelas vísceras até às mais sombrias e ocultas dimensões do humano (e não é esse o cerne da famosa página quasi-abstracta aqui ao lado, lida excelentemente por Matt Seneca?).
Se Watchmen é continuamente elogiado pela sua estrutura elegante, de “cristais” e “entraçamentos” complexíssimos, From Hell, apresenta-se igualmente como uma obra de um outro tipo de elegância. Menos em termos de intertextualidade e de referências simbólicas como V for Vendetta, ou enquanto sinfónico de formas e géneros como Swamp Thing, ou enquanto espelho reflector da história interna do género de super-heróis como Watchmen, Miracleman e Supreme, etc., esta obra monumental é talvez a mais acabada de Moore em termos do modo como responde à realidade cultural do seu mundo. É a mais filosófica, sem dúvida, se suspendermos o inacabado Big Numbers, que poderia vir a ser o seu mais preciso documento em relação à sua contemporaneidade real. Em vários momentos, não sem humor, Campbell diz que se alguém achar aborrecidas as cenas de diálogos - as quais são brilhantes, fundamentais e profundas - que regressem aos seus “jogos vídeo”. Aliás, ele faz uma rápida comparação entre os “mecanismos de tempo” das duas obras: o relógio atómico de Watchmen e o cacho de uvas em From Hell, que seria empregue no fecho dos capítulos na Taboo, mas os autores abandonaram a ideia, possivelmente por entenderem que esse tipo de marcação rítmica não teria o mesmo lugar significativo na fluidez da sua obra. Pedia um outro tipo de seriedade.
E, de facto, é como um monumental romance polifónico: há que atender a todas as vozes que o constituem para que a imagem geral, final e absoluta, surja na sua estrutura gloriosa.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do projecto em formato digital, assim como os complementos do dossier de imprensa, empregues neste post.

4 comentários:

Loot disse...

Lá terei de comprar isto, tal como o Pedro também sou um profundo admirador de "From Hell".

O que me lembra que já o livro trazia um apêndice fantástico onde Moore nos guiava quase vinheta a vinheta para nos explicar as suas opções.

abraço

José Sá disse...

Caro Pedro,

Brilhante mais uma vez, uma crónica muito esclarecedora e, assim, quase limitadora à ânsia de possuir este livro :D. Já tive a curiosidade há uns meses atrás de ir espreitar as primeiras páginas disponíveis no site da amazon e é mais um da minha wish list.

Recordo quando li pela primeira vez o From Hell. Guardei-o, como habitualmente faço com as obras que espero me venham a ser importantes, para umas férias especiais. Li-o entrecortado com as notas do apêndice, ou seja, com muitas pausas. Lembro-me de em muitas dessas quebras de leitura, calcorreando as páginas de trás para a frente e da frente para trás (o que nos pode fazer perder a noção do raccord:))), o comparar com o livro que a minha mulher lia na altura, de uma autora perfeitamente desconhecida para nós europeus àquela data, mas que volvidos uns meses se tornaria num fenómeno de vendas mundial, mormente entre as leitoras femininas. O meu livro grosso, uma capa rude de um homem a empunhar uma faca a pingar de sangue, os desenhos aparentemente descuidados. Nas mãos da minha mulher um trade de volume adequado, uma capa elegante, desde logo, exibindo uma gravata de azuis e cinzentos metálicos, contendo o seu interior uma história, para dizer o mínimo, extremamente sedutora.
A minha mulher antes tinha tentado ler o From Hell e abandonou-o após as primeiras cinquenta páginas, as mais cinzentas provavelmente, eu tentei ler o livro dela e nem por sombras cheguei ao final do primeiro capítulo. Em sua defesa devo dizer que anteriormente já lhe sugerira os Watchmen e que ela os leu por 3 vezes até hoje.
Lembro-me também de imaginar-me já nas férias seguintes a visitar Londres seguindo o percurso dos crimes de Whitechapel, conforme sugerido no apêndice, particularmente, um passeio madrugador à arrepiante Christ Church Spitalfields.

Mais memórias da altura... Os desenhos, em particular o artista, fizeram-me lembrar um dos meus discos preferidos, Lady in Satin, Billie Holiday com a orquestra de Ray Ellis. Nesse álbum, à (minha) primeira vista (audição), julgamos encontrar somente uma intérprete com um aparelho vocal totalmente desfeito pelos vícios de uma vida a ser acompanhada por uma orquestra que parece tocar do céu desligada do que se passará cá em baixo. Uma segunda leitura (audição) faz perceber que est(ou)amos perante uma cantora no pico da sua maturidade, do domínio da sua arte, inspiradora àqueles que a acompanham. Quis contribuir nos comentários com as minhas memórias mais antigas, não seria capaz/audaz de acrescentar uma linha ao teu texto.

Este post está tão bom que merecia uma segunda parte... Bem sei, não trabalhas para os discos pedidos. Em alternativa irei relê-lo maaaaaais algumas vezes, sem dúvida ;-)

Obrigado, Um Abraço
José



Pedro Moura disse...

Caro José Sá,
Agradeço as palavras, se bem que sejam algo exageradas. Na verdade, limito-me aqui a seguir o "guião" permitido por este volume, e estou muito, muito aquém da leitura que o próprio "From Hell" permitiria. A comparação do papel dos desenhos de Campbell com a voz roufenha mas sedutora de Holiday é perfeita!
Não quero fazer comparações com o mundo da literatura, pois essa discussão é sempre perigosa, pois são dois continentes afastados em termos sociais e históricos, independentemente dos elementos comuns. Por isso, muito sinceramente, falar das "Sombras de Grey" para falar de "From Hell" é uma não-argumentação. O primeiro trata-se provavelmente de um desses romances que titilam os seus leitores na contemporaneidade imediata e que depois são totalmente esquecidos (não se fala hoje de Jean M Auel nem de Reis Ventura nem de "Christiane F."), por exemplo). O segundo é um marco histórico e particularmente transformador do seu meio.
E se se achar que é presunção e intelectualismo não ler Brown, Clancy, Robin Cook ou Jackie Collins, por se conhecer e preferir Cioran, Rilke, Schulz ou Lanchester ou Virgílio Ferreira, a única resposta a dar é mesmo uma presunçosa: "estudassem". Porque nos haveríamos de envergonhar por ter uma capacidade de leitura que nos dá acesso a outros níveis de exigência cultural, entrega emocional e compreensão da complexidade do ser humano? Temos toddos de bater palmas pelos efeitos de "plot" e a espectacularidade que apenas nasce da ignorância humana? Muitos desses sucessos nascem precisamente pela razão que se discute no artigo: a necessidade de ver padrões e levá-los a sério. É mais seguro imaginar uma conspiração milenar de ordens ocultas da igreja do que crer que um judeu da Palestina do século I levou a peito toda uma série de belas lições de vários abis da sua época, e que iria influenciar um punhado de zelotas, sobretudo um tresloucado e aculturado Paulo, que fundaria uma nova seita romana... E o interesse pelo sexo dos outros, sobretudo o "louco", revela muito a falta de entrega ao sexo que se tem e se pode.
Enfim, um tema que me ferve o sangue! (o da literatura, entenda-se!)
Obrigado e até breve!
Pedro

José Sá disse...

Caro Pedro,

Para mim resultou sempre mais difícil perceber por que, apesar de ser muito (ou um pouco) mais complicado ler a Bíblia que o "Assim falava Zaratrusta", livros que abordarão a mesma temática de forma inversa (opinião muito discutível), a maior parte de nós compreende e aceita o primeiro livro e rejeita ou pretere o segundo. Homens mais eruditos terão inspirado a mesma fórmula de Paulo. Como exemplo (arriscado, outra vez), talvez também Platão, um pensador brilhante, sentiu que as suas ideias não seriam sustentáveis sem a criação de um "filho de deus" e do seu sacrifício. Para mim, ainda é difícil compreender os oximoros inultrapassáveis que encontrei ao longo das coisas que fui lendo e vendo de pessoas mil vezes mais espessas que aquilo que eu poderia ambicionar. A lucidez crente e a profundidade tangente, só para brincar em verso e impregnar de alguma circularidade conciliadora as minhas palavras ;-), habita no nosso eu e protege-nos dos abismos. E, juntando algo que não está assim tão ligado ou afastado, não te "rendes também à espectacularidade do Batman" no cinema? (talvez só o 2º do Nolan :-)

Aligeirando ainda um pouco mais, em semana de nobéis, venho juntar-me ao coro (certamente que existe nem que seja o da Church Spit by the Fields) dos que exigem que o Alain Moore seja integrado a uma short list para a categoria de literatura no próximo ano com o From Hell. Sem dúvida é dos autores de bd aquele que mais consensualmente aliará a notoriedade aos requisitos exigidos pelo fundador da instituição relativamente à reunião das qualidades literária e humana no conjunto da sua obra. Não sendo tão perentório ao afastar a(lguma) bd da arte sequencial literária, será de uma brejeirice iconoclasta recordar que o primeiro Shrek foi candidato a melhor filme pela academia de hollywod?

Pressenti que o teu sangue iria ferver, por isso evitei de forma tão subtil o título do livro :DDDD.

Muito Obrigado pela tua resposta,
Bom fim-de-semana
José