Há
medida que o tempo passa, e os títulos se multiplicam, os géneros se atomizam,
os temas se encetam, e a variedade se procura, é expectável que venhamos a
cruzar-nos com trabalhos que tanto nos recordam títulos anteriores numa óptica
de modelos continuados como de variações tentadas. E nessa comparação haverá
sempre, inevitavelmente, aspectos que nos fazem compreender uma maturidade e
crescimento, se quisermos usar essas palavras, da forma de arte em questão, e
outras dimensões que nos fazem sentir alguma perda. (Mais)
Este
livro é a biografia de Hertzko Haft, um judeu polaco nascido nos anos 1920,
numa cidade perto de Lodz. Em 1941, já durante a ocupação nazi, o jovem Hertzko
foi levado para os campos de trabalho forçado em Poznan e Strzelin, e mais
tarde chegaria mesmo a Auschwitz-Birkenau. Para além do trabalho, uma espécie
de “apadrinhamento” por um oficial SS levou a que ele se tornasse um dos homens
que seria forçado a combates de boxe até à morte, para gáudio dos oficiais das
forças alemãs. Combates entre homens sem saúde nem alimentação que mereça esse
nome, transformados em bestas humanas. Quem ganhava, poderia esperar pelo
próximo combate. Quem perdia, quase sempre, era pura e simplesmente baleado.
Haft era suficientemente duro para aguentar esses combates e foi sobrevivendo
assim a esse horror, e a todos os outros que pautavam a sua vida enquanto
prisioneiro judeu da máquina de mortandade do nacional-socialismo e a
conivência em seu torno. Com o fim da guerra, e com fugas várias, Haft
conseguiu endireitar a vida, um pouco, com o seu irmão, aproveitando a presença
dos G.I.
norte-americanos, e o dinheiro ilegal que assim circulava. Mas foi sol de pouca
dura, e abrir-se-ia uma carreira desportiva, no boxe quase-profissional. Em
1946, Haft torna-se campeão da sua categoria num campeonato judeu de boxe. A
estrela de David que lhe havia sido imposta nas roupas na Polónia ocupada
tornava-se agora um símbolo de honra, orgulho e esperança na força. Seguir-se-ia
a imigração para os Estados Unidos, quase obrigatória. Nesse país, nascia assim
“Harry Haft”, que tentou a sorte nos combates locais. Apesar de ter tido alguns
combates com lutadores famosos na época, o que parece tê-lo marcado acima
de todos os outros foi o encontro com Rocky Marciano, ainda
no início da carreira deste, mas que se viria a tornar um campeão extremamente
famoso, uma das maiores referências deste desporto. Por isso, e devido ao facto
desse combate, que Harry perdeu, ter sido o selo na carreira de combate, é
Marciano que possivelmente se torna o símbolo do que não conseguiu conquistar.
Este
projecto de banda desenhada de Kleist está no seguimento de alguns dos seus
trabalhos anteriores, a saber, as biografias de Johnny Cash e Che Guevara. Neste caso em particular, a fonte é
única: Harry Haft: Auschwitz Survivor,
Challenger of Rocky Marciano é a
biografia escrita pelo próprio filho, Alan Scott Haft. Todos os acontecimentos
são, portanto, passados do pai para o filho em relato oral, e o filtro de Alan
Scott, que desconfia do pai, providencia Kleist com uma matéria literária que
sofre então um segundo grau de transformações. Pois uma coisa é ouvir as
histórias do pai, outra lê-las numa forma literária, outra ainda vê-las
traduzidas em imagens, que nos devolvem uma solidez, uma concretude muito
particular.
Há
portanto um modelo pouco oculto neste livro. Maus. Se bem que o livro de
Alan Scott Haft não seja uma “graphic novel”, a relação problemática com o pai,
a exposição do Hertzko/Harry mais velho como um homem bruto e intransigente,
senão mesmo egoísta, recordará muito o retrato de Vladek, pai de Art
Spiegelman. A transição para a banda desenhada aumenta os pontos e graus de
proximidade, ou de comparação possível (que se confundirão numa questão humana,
de experiência colectiva, de testemunho mas inevitavelmente também pelo filtro
artístico). Cria-se sempre uma distância entre os eventos representados – na
sua verdade e “presente” visual – e os graus que os poderão separar da “verdade
histórica”. O livro abre e fecha com um prólogo e epílogo no qual o foco
actancial é dirigido pelo jovem Alan Scott, que observa o seu pai, num episódio
na Florida repetido várias vezes, mas sempre com perspectivas ligeiramente
diferentes, como se se fossem desdobrando essas cenas numa composição mais
alargada. Alan acompanha o seu pai na busca, ainda incessante, por Leah – uma
jovem rapariga de quem se separara na vila natal quando foi preso, e que se
transforma no objecto de desejo e esperança durante a longa vida sofrida, mas
inconquistável; Harry casar-se-á com outra mulher, Miriam, já nos Estados
Unidos - , mas cujo encontro significa antes um incontornável e inultrapassável
fim, mais angustiante e trágico que qualquer outra coisa (apercebido como o
selo que confirma o falhanço, por assim dizer). É nesse momento em que é
vislumbrada alguma fragilidade em Harry, e é nesse momento também que Harry
promete ao filho que lhe contará tudo, um dia. Esse dia viria muito mais tarde
e daria azo ao livro escrito e, consequentemente, à história que compõe a parte
de leão de The Boxer. Mas mesmo assim, apesar das legendas na primeira
pessoa que vão acompanhando o relato, a intervenção dessa distância de Alan
Scott, e até mesmo as legendas deste último (nos prólogo e epílogo) são
explícitas sobre a sua desconfiança em relação aos “factos” que o pai conta.
Isto abre as imensas e preocupantes portas sobre a diferença entre a memória
dos sobreviventes em relação aos factos experienciados, a realidade histórica e
a possibilidade de negar essa mesma memória. Alguns dos mesmos problemas haviam
surgido em relação a Maus, quando este era vendido como se fosse
“ficção”, quase cortejando as ideias dos negacionistas do Holocausto.
Dos
estudos que existem em torno dos testemunhos dos sobreviventes do Holocausto,
um dos nomes mais conhecidos é o de Dori Laub, que estuda as entrevistas
guardadas no arquivo Fortunoff, de Yale. Uma dessas entrevistas, famosa no
círculo deste ramo de estudos, está o de uma mulher que se diz recordar das
quatro chaminés do seu campo deitando o fumo negro da combustão dos corpos das
vítimas. Factualmente, sabe-se que existia apenas uma chaminé. Mas será esse
“facto” motivo de “derrota” das memórias dessa sobrevivente? Laub, e outros,
compreendem que a questão não deve ser colocada nesses termos, falando antes da
“realidade de uma ocorrência inimaginável” e da “performatividade da narração
dela”. Isto é, essas transformações, ou distorções se preferirem, da realidade,
têm menos a ver com a mentira ou com o esquecimento propriamente ditos, do que
uma renegociação com a memória viva, com a re-experiência (típica do trauma,
que não é “enterrada” como “mero” acontecimento do passado) dela.
Antes
de avançar, é necessária uma brevíssima explicação técnica. Um dos textos
fundamentais de Freud para compreender estes mecanismos é “Erinnern,
Wiederholen und Durcharbeiten” [trad. Como “Rememoração, repetição e
perlaboração”], de 1914, em que se cria, não propriamente uma oposição
dicotómica, nítida e absoluta, mas antes um espectro em que se verifica ora uma
repetição [traduzindo wiederholen, em inglês “act out”] de uma
memória, isto é, em que uma rememoração tem lugar não com a distância de uma
memória mas com a mesma força psíquica, a mesma intensidade, da experiência no
seu momento de ocorrência, ora um trabalho que provoca distância dessa memória,
permitindo assim um afastamento dessa mesma intensidade e, por consequência, um
passo a caminho, não tanto da cura, mas de um restabelecimento de uma relação
com essa memória enquanto tal. De forma mais ou menos complexa, mas tornada
mais clara pelo trabalho posterior de Laplanche ou Klein, distinguir-se-á verarbeitung
[usualmente traduzido por “elaboração”, “working out”] de durcharbeiten
[“perlaboração”, “working through”], sendo esta última a mais radical das
resignificações da memória, e mais próxima de uma “cura” desse trauma.
É
sob a luz dessas distinções que Laub escreve ainda o seguinte, à guisa de
conclusão: “A capacidade de quebrar esta moldura persuasiva, ainda que apenas
falando sobre o acontecimento retrospectivamente e de uma forma determinada, é
sinal de que a mulher não está apenas a reviver ou a repetir [“acting out”]
compulsivamente o passado mas antes, até certo ponto, a elaborá-lo [“working it
over”] ou possivelmente a perlaborá-lo [“working it through”]”.
O
diálogo entre os estudos do trauma - cruzamento entre os estudos culturais,
literários, a psicanálise e outras disciplinas - e a banda desenhada ainda se
encontra num momento de transição e construção, mas sendo o Holocausto o tema
“favorito” dessa área disciplinar (o que leva a uma literatura impressionante,
mas igualmente a toda uma série de desequilíbrios de atenção, como tem sido
alvo de críticas de alguns investigadores e teóricos), não será de admirar que The
Boxer possa vir a tornar-se mais um objecto de estudo. Importa, portanto,
compreender em que medida é que ele difere ou dá continuidade de outros títulos
irmanáveis, de Maus a The Search, de Leben? Oder Theater? a They Spoke Out, de Yossel a We are on our own e outros. A tensão entre testemunho pessoal e investigação histórica,
experiência e documentação, dramatização e factualidade, emotividade e
estrutura, têm sempre lugar e dão azo a balanços bem diversos.
Do
ponto de vista de Harry Haft, parece existir uma espécie de filtro de
romantização suficientemente forte para pensar que mais do que uma “mera”
rememoração, o que temos aqui sendo (per)elaborado é uma negociação complexa
com a sua experiência, memória e necessidade de re-afirmação enquanto
sobrevivente, veterano de um desporto brutal, imigrante num novo país e pai de
uma criança sem qualquer sombra de experiência comparável. Essa romantização
passa não apenas pelo papel quase heróico dos vários episódios de sobrevivência
brutal durante os anos da guerra, e logo após ela, como a dramatização do seu
encontro com Marciano, que se tornaria famoso depois. Supostamente, Haft
terá perdido por ter medo de ser atacado pela Mafia, que protegeria Marciano.
Esse facto é o cerne da sua narrativa, que tem lugar de destaque no título do
livro original. Mas tratar-se-á simplesmente de uma “falsidade”? Ou será sinal
da perlaboração inevitável de Haft?
Seja
como for, o problema não está, naturalmente, no próprio Haft, e tampouco talvez
no livro do seu filho, mas na “tradução” em banda desenhada. Não há aqui
qualquer tentativa de tornar a história de Haft transparente ou compreensível
até ao ponto da “identificação”, que supostamente ocorre durante a leitura –
não cremos nisso, mas muitos leitores ainda pensam que ler sobre a vida de
alguém faz com que se instale um mecanismo de intimidade. É necessário
compreender a diferença entre os episódios atomizados da vida de cada um, e a
forma como essa vida se pode entrosar com traumas enquadrados no tecido
colectivo da história, como é o caso do Holocausto. Como escreve Dominick
LaCapra, outra das grandes vozes nestes assuntos, “[o] trauma histórico é
específico, e nem todas as pessoas estão sujeitas a ele ou têm o direito de
assumir uma posição-de-sujeito em relação a ele. É um acto dúbio o de se
identificar com a vítima a um ponto de se se considerar uma vítima por
procuração que tem o direito à voz da vítima ou à sua posição de sujeito.” Esta
lição (e toda aquela que a enquadra) deve recordar-nos que ainda que a obra
possa criar elos de empatia ou algum grau de compreensão, não nos dá direito de
nos identificarmos com o protagonista, de dizer que percebemos o escopo da sua
experiência, ou colocar-nos no grupo, seja ele qual for, que reclamaria esse
papel. Por isso é que a matização subjectiva da personalidade de Haft –
aproveitador dos privilégios mesmo no interior dos campos de extermínio, as
suas opções por negócios ilegais, os assassinatos que leva a cabo, a sua cabeça
quente e irascibilidade, a bruteza, a violência fácil, uma intransigência
abusiva, etc. - o torna mais humano. Não há uma busca por uma sua hagiografização,
bem pelo contrário.
Contudo,
tendo em conta os episódios em questão, alguns dos quais roçando o horror
incompreensível e obsceno (o morticínio de crianças, o canibalismo, a abjecta
violência, a desumanização absoluta), Kleist parece tratar tudo num tom
relativamente idêntico. Isso pode ser visto de modo positivo: não há uma
procura por instrumentos de dramatização excessiva, pelo melodrama fácil, pelas
fórmulas consabidas da criação de simpatia (precisamente os problemas que são
apontados à estrutura de Schindler's List, de Spielberg), nem tampouco
pela igualmente implacável distância da representação de um Lanzmann, no seu Shoah.
As coisas são tratadas como “matter of fact”, ainda que sem a textura de
documentação. Na nossa óptica, porém, há algo de banalização nessa construção
que é incómoda em relação a esta adaptação.
Os
desenhos de Kleist são algo rudes. As suas pinceladas a negro, sólidas,
expressivas, a um só tempo sucintas e detalhadas, seguindo estratégias mais ou
menos convencionais de composição, assim como dos desvios para significações
mais dramáticas, não se apresenta de forma alguma espectacular, mas tampouco se
diminui a uma mera representabilidade das personagens e espaços. Voga por entre
a ideia de uma concretude histórica e referencial – confirmada ou corroborada
pelas fotografias no apêndice do livro - , e uma expressividade de emoções
brutas, capazes de transmitir directamente a sua lição. The Boxer não
“se aproveita” do tema, de maneira alguma. Mas tampouco consegue uma
transposição que entendamos ser necessária ao autor, uma intensidade genuína. É
como se se tratasse de um bom, ou mesmo excelente, trabalho de adaptação, mas
onde a paixão, estranhamente, estivesse ausente nesse acto de transmissão. A
concentração está toda no tópico, e menos na matéria.
Ainda
assim, a possibilidade da banda desenhada contribuir para estes testemunhos
cada vez mais singulares e alargados faz com que se tente, proteladamente,
corrigir o último verso do famoso poema de Martin Biemöller, “e não havia
ninguém para falar por mim”.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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