Com O livro dos dias, e
desdobrando-se numa série de exposições, palestras, workshops, e
outros gestos, sabíamos que o diálogo, senão mesmo entrega, de
Diniz Conefrey à cultura ameríndia era de uma intimidade absoluta. Não
se trata tão-somente de um “fascínio”, que já antes
descrevêramos como um prazer que advém da ignorância, mas um saber
que bebe de uma incessante pesquisa, inquirição e respeito. E
tampouco se trata, nunca!, de um mero aproveitamento superficial que
seria transformado em “tema recorrente” ou “assunto”, que
depois se exploraria de várias maneiras. Trata-se de facto de um
entrosamento e diálogo com aquela cultura para que se opere uma
transformação da matéria visual-textual do autor num hausto novo,
e seu, que se expressa de modos diferentes conforme o projecto.
Nagual é um conjunto de histórias curtas que se apresenta
então como novo ciclo dessa respiração. (Mais)
Este volume, com efeito, reúne cinco
relatos associados então a essa cultura, apenas um dos quais havia
sido publicado anteriormente, na revista Intervalo, mas que
sofreu alterações singulares a nível textual e visual. Mesmo
suspendendo aqui uma comparação dessas duas peças, assinale-se que
essa profusão de transformações editoriais, essa intervenção da
parte do autor, é significativa em si mesma. Não sendo inédita em
termos históricos e podendo comparar-se a práticas literárias ou
outras ao longo da história da possibilidade editorial, ainda assim
revela uma preocupação ética e estética da parte do autor que não
é comum. Como poucos, a obra de Conefrey não se subsume a uma
vontade de “contar histórias” ou “alimentar” um mecanismo de
expressão, mas antes a fomentar uma permanente pesquisa, a nível
gráfico, como é de esperar, mas igualmente a outros níveis.
Conforme lições directas e específicas aprendidas com o autor, tratam-se estes relatos de uma tradução poética dos mitos dos povos do México central (associáveis, mas anteriores, aos nahua e aztecas), cada capítulo, parte ou relato –
caberá ao leitor optar pelas relações de aliança entre essas
peças -, poderemos compreender o conjunto tanto como uma fluidez
narrativa integrada, como perspectivas distintas de facetas de uma
mesma realidade. Como reza na história “O segredo”, há aqui
algo “persistente na continuidade do seu silêncio observador”.
Por um lado, existem elementos que podemos considerar recorrentes,
desde estruturas frásicas, a “eventos”, passando mesmo por
personagens – os pássaros-jaguar, a serpente emplumada
Quetzalcoatl, a árvore-canção… -, mas, por outro, cada passo
parece regressar a um ponto de partida virgem. Essa ambivalência
organizativa é sublinhada pelas escolhas do autor em construir as
suas páginas com imagens que vivem numa espécie de tensão
permanente entre a abstracção estilizada (de onde emergem formas
florais, orgânicas, cósmicas, de fluxos dos elementos) e a
figuração, também ela estilizada, tudo elementos provenientes das
artes pré-colombianas daquela complexa e múltipla cultura.
Não temos aqui, de forma alguma, uma
narrativização e familiarização destas estruturas, uma espécie
de manual em que se possa consultar e ficar a conhecer as histórias
dos povos em questão. Há antes um encontro entre a lavra artística
e poética de Conefrey com essas respirações a que o autor tem
dedicado uma parte significativa da sua vida e interesses. Já a
propósito do seu Os labirintos da água, e a relação com
Herberto Helder, havíamos mencionado a prática de tradução deste
último poeta descrita como “poemas mudados para português”.
É essa ideia de mudança, de verter, que estaria prevista na prática
de Conefrey, e se em casos anteriores havíamos visto alguma ideia de
subsunção a um programa narrativo, aqui há uma abrangência mais
directa do que passaria por poeticidade plástica da banda desenhada.
Apesar da cultura a que estes contos dizem respeito, há algo próximo
da poeticidade abstracta e cósmica de São João Evangelista na
escrita de Conefrey, substanciada pelas imagens. Cada um dos relatos
remete a mitos originários (da chuva, do dia, das cidades, das
criaturas divinas que povoam aquele imaginário, das forças motrizes
daquela cultura), bastas vezes agónicos, nas quais o lirismo
acentua, e não desvigora, os conflitos entre as forças opostas que
fazem mover as narrativas.
Recordemos o significado desta palavra
grega, “mito”, que remete à ideia, primária e substancial, da
estruturação dos elementos narrativos, quer dizer, muthos
em si mesmo não é a narrativa, mas antes as escolhas que levaram à
sua própria constituição. Dessa forma, poderemos considerar que o
que Conefrey estará a operar é uma estruturação individual,
singular, artística, dos elementos que colhera do Período Clássico mesoamericano –
nomeadamente das suas narrativas míticas e bebendo em particular,
como anota no fim do volume, das impressionantes, hercúleas mas
ainda misteriosas pinturas murais de Teotihuacan, no México [veja-se, por exemplo, o mural Animais Mitológicos, de que o autor nos forneceu uma imagem, no fim].
A pesquisa visual, se ancorada de forma
clara, nítida, quase directa, sobre os murais, vai explorando
algumas das linhas abstracizantes que o autor tão bem expôs em
Metereologias. Aliás, algumas das considerações adiante são
também eco de alguns dos mecanismos de representação que operam
nessas bandas desenhadas abstractas.
Nada disto significa, todavia, que o
autor se escuse de se integrar nas tradições variadas da banda
desenhada. Na realidade, bem poderíamos considerar o seu trabalho
como corolário “natural” dos desenvolvimentos de autores que
experimentaram os vários caminhos das metamorfoses gráficas no
interior do emprego mais clássico, narrativo e até genérico desta
disciplina. Se pensarmos numa linha que fosse unindo autores como
Doré, Frost, Verbeek, Feyninger, Sterrett, entre tantos outros,
veríamos mais uma continuidade, do que revoluções radicais, apenas
perceptíveis como tal numa perspectiva lacunar da história. Mais
ainda, seria algo produtivo compreender em que medida é que alguns
dos momentos destas histórias de Conefrey, não tanto estabelecem
linhas de influência ou herança directa, mas estipulam afinidades
longas, com autores tais como Jack Kirby ou Jim Woodring, apontando
para a possibilidade de identificar um largo espectro que iria do
épico ao onírico. Lavrado numa só matéria pelo artista português.
O título da recolha, Nagual,
remete a uma palavra que diz respeito a uma espécie de reflexo,
totem ou imagem especular animal que pertencerá a cada ser. Seria
necessária uma compreensão maior e mais integrada da cultura mesoamericana para sermos exactos e equilibrados em relação ao papel dessa noção
nesse sistema, mas o que nos importa aqui sublinhar é então essa
ideia de um, se nos for permitido aproveitar um termo da filosofia
ocidental, e das suas inflexões desde Heráclito a Nietzsche e
finalmente Deleuze, dizíamos, a ideia de um devir-animal.
Isto é, a abertura ontológica ou dinâmica existencial de um
nomadismo do si, em que linhas de força de outra existência, que
não-humana, se vêem entrosar na identidade de partida. Recordemos
que na sua discussão da relação entre a orquídea e a vespa, tanto a
vespa devia-orquídea quanto a orquídea devia-vespa. O que ocorria
era uma desterritorialização mútua, e não uma mera ”imitação”
uma da outra, mas uma relação que se intensificava à medida que
ocorria, ao ponto dos elementos criados nesses devires não ser
atribuível ou subjectificável a nenhuma das identidades de partida.
Ainda que não exista propriamente um
protagonista comum nestas histórias, e não se preveja nenhuma
personagem humana com um papel hierárquica ou actancialmente
superior (com a excepção de “Zacuala”, em que o factor humano é
introduzido de forma mais directa, mas mesmo assim irmanado à figura
do coiote), não deixa de haver uma permanente tensão, ou fluxo
aberto, entre identidades florais, arbóreas, animais, minerais,
cósmicas, que se vão encaixando entre si. É o devir da chuva. É a
transformação da pele escamada da serpente em plumas. São as
conchas dos moluscos empregues enquanto origem da música e do vento
e, quem sabe, do movimento do tempo. É a árvore que é canção e
se desdobra em ramificações permanentes, tentáculos que se
estendem, rios que desaguam e se estendem. De certa maneira, há aqui
uma dinâmica fluxional que nos faz recordar algumas ideias expostas
no Gaïa de de Th. Cheyrol, permitindo assim a uma ideia muito
alargada de um espectro holístico, de que o humano faria parte, mas
não se destacaria de forma privilegiada ou central. Um fundo comum,
que noutras ocasiões equacionámos ao “Mundo das Madres” de
Goethe, onde se encontram em potência todas as formas. E que
vislumbramos aqui e ali nestas histórias, numa “matéria
impalpável de segmentos trémulos e vitais”.
Resta, então, mergulhar nesse fluxo e
não temer onde a leitura nos possa levar.
Nota final: agradecimentos ao
autor-editor, pela oferta do volume, e estes esclarecimentos.
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