Existem toda uma série de fenómenos,
ditos “entópticos”, em que parecemos ver algo pelo canto do olho
mas, ao virarmo-nos, não vemos nada: serão apenas impressões que
não compreendemos, serão sombras que não mapeamos, ou serão
fantasmas que habitam os nossos espaços e nos rodeiam?
Independentemente do território que a ciência pode iluminar, a
impressão duradoura dessas mesmas sombras é quase indelével no
tecido da cultura. Não cremos em bruxas, mas que as há... Lugar
Maldito é um livro que revela a mais profunda verdade, e corrige
aquela frase conhecida (ainda que mal citada) de Jean-Paul Sartre:
não, o Inferno não são os outros. Somos nós. (Mais)
Depois de Tormenta, fruto da
colaboração dos mesmos autores, Lugar Maldito mantém o
curso de algumas das pesquisas e preocupações do argumentista e do
artista. Do lado de André Oliveira, as interrogações sobre os
limites da felicidade, a noção do regresso, o preço que se paga em
nome de uma suposta maturidade, a entrada na vida adulta, a conquista
de uma família nova, estão todas presentes, e aqui particularmente
à flor da pele. Acrescenta a isto um interesse, que é partilhado
por um número de outros argumentistas de banda desenhada
contemporânea em Portugal, de prestar uma atenção precisa à nossa
cultura rural, a tradições mais ou menos desavindas da experiência
urbana, e à ausência de romantismo em decisões, aparentemente,
heróicas.
É assim que vemos Samuel e Maria, um
jovem casal mergulhado numa crise que nunca chega a ser explicitada –
tornando-os numa espécie de Romeu e Julieta, mas sem a poeticidade
do casal italiano, e somente amargurados pela impossibilidade de
consolo –, a mergulharem numa fuga e num terror crescendo de
isolação, nas encostas do Douro, a meados dos anos 1990. Ele é
mais velho, com alguma experiência profissional, mas está
mergulhado numa sombra negra muito própria, cheia de
arrependimentos, hesitações, ódios e coisas mal-resolvidas. A
forma como ele responde às coisas em torno é abrupta, como um
animal acossado, revelando nesses gestos toda uma história pesada
que o assombra, persegue e esmaga. Ele tem fantasmas nos bolsos e não
se apercebe.
Talvez Samuel acreditasse que Maria, e
o bebé que tiveram juntos, fossem factores suficientes de conquista
de uma vida mais feliz, mas acabam por se tornar os escolhos da sua
descida. Neste aspecto, há um paradoxo emocional que o aproxima de
Jack Torrance, o protagonista de The Shining. Maria, por sua
vez, ainda é uma miúda, deixa-se arrastar, oscila ao sabor dos
ventos dos conselhos que escuta, mas acaba por saber qual a
importância central na sua vida, e que a ancorará à pouca sanidade
que lhe é possível. Ambos estão num novelo embrulhado de sagas
familiares, rivalidades e casos de polícia. A “fuga para o Egipto”
de ambos, todavia, não auspicia nada de glorioso, mas somente uma
descida a zonas sombrias.
Aumentando o grau de possibilidade de
conhecermos as psiques destas personagens, vamos tendo acesso a um
diário, muito possivelmente escrito por Samuel, cheio de impressões
pouco claras, ilusões, poemas tardo-adolescentes, em que se poderia
desejar que se exorcizassem os seus fantasmas, mas acabam antes por
se conformar no proverbial abismo que nos olha de volta quando o
olhamos.
André Oliveira, mais uma vez, como em
A Volta e Milagreiro, introduz a esfera da fantasia, ou
melhor dizendo, se naqueles livros explora o maravilhoso e os
contactos directos entre a superfície da realidade humana e outros
mundos e experiências sobrenaturais, aqui apenas estipula um espaço
de ambivalência suficiente que serve de armadilha aos protagonistas.
Se o leitor poderá decidir que existem forças exteriores ao casal
exercendo a tensão crescente, também deverá ser atento ao facto de
que é Samuel quem se entrega de corpo e alma à espiral descendente
e trágica que o encerra. Apesar do “rapaz de carvão” - a figura
mítica central na economia dos eventos do livro, quer os do presente
quer os do passado, quer aqueles relativos ao casal quer às
restantes personagens, quer consequência de crime ou causa deles,
quer fonte de augúrio quer de esperança -, o crime e sentença não
se deve a mais ninguém senão ao próprio Samuel.
Graças a esta matéria, ou de forma a
consubstanciar esta matéria, João Sequeira procura sublinhar ainda
mais a sua proficiência com o pincel negro: os contrastes são
absolutos, a exploração das sombras, negativos, texturas rugosas e
brutas acentuadas, aumentando o peso das emoções que crescem.
Sequeira mantém o rumo de uma abordagem à figura algo expressiva e
estocástica, mas encontram-se aqui instrumentos de um maior rigor na
manutenção das formas, e cujos desvios são sempre significativos.
O trabalho de composição é contido,
a partir de um princípio de grelhas regulares que vai permitindo
excepções, splash pages e spreads, sempre empregues
com pertinência, na maior precisão em termos da intriga ou do
impacto emocional desejado. Tormenta também obedecia a este
princípio, mas aqui encontra uma maior proficiência e controlo
nessa gestão, além de que, com quase 100 pranchas, ganha uma outra
corporalidade e permanência.
Viagem ao fim da noite ou ao coração
das trevas, o Lugar Maldito está afinal nos nossos peitos, e é por
vezes inevitável dar um passo em falso.
Nota final: agradecimentos aos autores,
pela oferta do livro.
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