Na física existe um fenómeno relativo
às frequências de ondas da luz, em função da velocidade relativa
existente entre a fonte dessa mesma luz e o observador. Bem mais
complexo do que o nosso uso metafórico poderá atingir, digamos
apenas que existem os “desvios para o vermelho” e “desvios para
o azul”, assinalando este último o caso em que a fonte dessa luz
se vem aproximando do espectador. Por outras palavras, o vermelho
seria sinal de expansão, ao passo que o azul de contracção. Muito
possivelmente, esta descrição e uso metafórico não tem qualquer
préstimo na leitura de O convidador de pirilampos, mas não
podemos deixar de sentir que a família cromática que alimenta o
“fundo” (já lá iremos) das imagens convida-nos a irmos além de
interpretações de representação superficial (cenas nocturnas)
para chegar a um gesto de convite, previsto no próprio título.
Tendo deixado uma nota brevíssima sobre este volume anteriormente,
voltamos aqui com uma leitura mais dirigida. (Mais)
Os protagonistas deste conto são um
avô e o seu neto, tal qual, vivendo numa casa isolada nas margens de
uma Floresta Grande. Quer a linguagem, que jamais personaliza as
personagens e locais, deixando-nos nos seus descritivos gerais, quer
as imagens, apresentadas sob a forma de silhuetas desenhadas a pincel
(ou com esses efeitos), remetem toda a estrutura a uma inscrição no
conto tradicional, sem marcadores de especificidade, tentando algum
grau de universalidade (ainda que, naturalmente, pequenos indícios
das “assinaturas” da linguagem e das imagens possam remeter a
intervalos expectáveis, já que uma total neutralidade cultural é
impossível). O convidador de pirilampos, portanto, poderia
ser lido como um conto inscrito na grande tradição do conto
tradicional europeu, ou de outras tradições. Mas Ondjaki é um
escritor que abre brechas na tradição para inserir nela factores
provenientes de outras tradições intelectuais e culturais. A
fantasia científica vem misturar-se com o absurdo numa matéria
densa, que altera a massa e sinal do conto, já que o jovem
protagonista é um verdadeiro inventor, mostrando-nos como funcionam
o “aumentador de caminhos”, um “unóculo” e finalmente o
“convidador de pirilampos”.
Isto torna o jovem menino numa espécie
de Bouvard e Pecuchet, interrogando – diz ele “cientistar” –
o mundo à sua volta através de estratégias estocásticas e
materialistas, as quais, funcionem bem ou funcionem mal, abrem com
efeito novos modos de aproximação a esse mesmo mundo natural e
real, personificado nos dois tipos de colépteros encontrados à
noite na floresta, não apenas os pirilampos, que brilham de acordo
com ritmos internos e precisos que o menino desvendará, como também
os pirivelhos, que não brilham, mas guardam em si histórias que
contam aos demais. A inversão de saberes e experiências é apenas
momentânea, pois a sabedoria do velho avô, se não é feita de
técnica, é, camonianamente, “um saber de experiência feito”...
primeiro, com perguntas que espevitam o menino, depois com reparos
que vão despertando uma empatia e compreensão dos outros, introduz
com efeito lições mais profundas.
Poderíamos ver o livro como contendo
duas partes, sendo a segunda aquela em que é introduzida finalmente
a voz dos próprios pirilampos, o que nos deverá alertar
precisamente para uma das forças do livro, que é a de não reduzir
qualquer dos papéis a funções sem direito ao seu próprio peso
actancial e de auto-determinação.
Como ocorre nos projectos anteriores da
colaboração dos dois autores (todas elas “estórias sem luz
elétrica”), que o tempo dirá, e uma análise cuidada confirmaria,
se se coalescerão numa unidade múltipla, O convidador é um
livro no qual todos os aspectos da materialidade inscrita das imagens
contribui para a lavra da interpretação e para os blocos de
sensações que atingirão os seus leitores-espectadores. Tal como no
famoso dictum de Roland Barthes, “A arte não tem ruído”,
o que nos deverá colocar na senda de atentar a todo e qualquer
elemento como confluindo para o sentido do livro. Mesmo que em termos
de produção possa haver “acidentes”, imprevistos, os seus
resultados passam a ser desde logo parte integrante da tarefa do
significado. Como escreveu José Gil há recente, é tipificado da
construção de uma obra de arte que vá “revelando a posteriori
uma necessidade que não existia a priori.”
Gonçalves não deixa de revisitar
muitas das suas estratégias visuais, mas há igualmente traços
distintos e específicos para este livro. As figuras humanas têm
contornos menos estilizados do que o costume, procurando-se aqui um
registo mais naturalista. O uso das silhuetas, não sólidas mas com
padronizações exímias e precisas para a folhagem das árvores, a
cobertura “a pincel” dos corpos e troncos, as interrupções a
branco da chuva, poças de água e luz despedida, colocá-lo-ia numa
família de artistas que mencionámos quando de um livro ilustrador por Jorge Nesbitt (Lotte Reininger, mas desviando-o ao mesmo tempo
dela, já que não se trata de recortes mas de marcações a linhas,
ainda que contra um fundo distinto. Este, como dizíamos, destaca-se
do plano figurativo pelo uso de cores suaves com efeitos de aguada.
Por vezes a cor invade a própria
figuração, como nas cenas contra a noite solidamente escura, em que
as cores da noite invadem os restantes objectos. As cores ficam-se
pelo azul, o violeta, o malva, que rastejam por todos os espaços, e
invadem todos os planos. É essa a nota ininterrupta deste conto
“nocturno”, e que sublinha aquele aspecto do convite de que
falámos acima. Apenas irrompem brancos e amarelos nos assaltos
súbitos das luzes dos pirilampos, e uma única explosão do
arco-íris integra-se na perfeição da acção espectacular e
inesperada do primeiro encontro entre o esforço cientistante
do menino e as criaturas que procura. Com poucas excepções em que
as páginas são arrancadas à representação dos espaços e acções,
quase todas elas se apresentam sob a forma de spreads,
dando-nos planos gerais do que vai sucedendo, também com algumas
excepções com maiores aproximações. E um caso ou outro tem o
texto abrindo dois espaços de representação na mesma dupla página.
A composição das páginas procura uma forma de integrar o texto
através de tarjas brancas, cortando a paginação, com
características tanto invasivas como elegantes.
Dito tudo isto, todavia, mais uma vez
fica a nota negativa, de forma veemente, como a editora opta por
secundarizar o nome do artista visual envolvido no projecto, como se
se tratasse tão-somente de um complemento às ideação e palavras
do escritor, em vez de se conformarem do acto criativo conjunto que
se passa entre as capas. Podia ler-se o livro em voz alta? Sim.
Perder-se-ia alguma dimensão nesse acto? Sim. Então compreenda-se o
que existe na união.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do livro.
Sem comentários:
Enviar um comentário