20 de junho de 2017

O convidador de pirilampos. Ondjaki e António Jorge Gonçalves (Caminho)

Na física existe um fenómeno relativo às frequências de ondas da luz, em função da velocidade relativa existente entre a fonte dessa mesma luz e o observador. Bem mais complexo do que o nosso uso metafórico poderá atingir, digamos apenas que existem os “desvios para o vermelho” e “desvios para o azul”, assinalando este último o caso em que a fonte dessa luz se vem aproximando do espectador. Por outras palavras, o vermelho seria sinal de expansão, ao passo que o azul de contracção. Muito possivelmente, esta descrição e uso metafórico não tem qualquer préstimo na leitura de O convidador de pirilampos, mas não podemos deixar de sentir que a família cromática que alimenta o “fundo” (já lá iremos) das imagens convida-nos a irmos além de interpretações de representação superficial (cenas nocturnas) para chegar a um gesto de convite, previsto no próprio título. Tendo deixado uma nota brevíssima sobre este volume anteriormente, voltamos aqui com uma leitura mais dirigida. (Mais) 

Os protagonistas deste conto são um avô e o seu neto, tal qual, vivendo numa casa isolada nas margens de uma Floresta Grande. Quer a linguagem, que jamais personaliza as personagens e locais, deixando-nos nos seus descritivos gerais, quer as imagens, apresentadas sob a forma de silhuetas desenhadas a pincel (ou com esses efeitos), remetem toda a estrutura a uma inscrição no conto tradicional, sem marcadores de especificidade, tentando algum grau de universalidade (ainda que, naturalmente, pequenos indícios das “assinaturas” da linguagem e das imagens possam remeter a intervalos expectáveis, já que uma total neutralidade cultural é impossível). O convidador de pirilampos, portanto, poderia ser lido como um conto inscrito na grande tradição do conto tradicional europeu, ou de outras tradições. Mas Ondjaki é um escritor que abre brechas na tradição para inserir nela factores provenientes de outras tradições intelectuais e culturais. A fantasia científica vem misturar-se com o absurdo numa matéria densa, que altera a massa e sinal do conto, já que o jovem protagonista é um verdadeiro inventor, mostrando-nos como funcionam o “aumentador de caminhos”, um “unóculo” e finalmente o “convidador de pirilampos”.


Isto torna o jovem menino numa espécie de Bouvard e Pecuchet, interrogando – diz ele “cientistar” – o mundo à sua volta através de estratégias estocásticas e materialistas, as quais, funcionem bem ou funcionem mal, abrem com efeito novos modos de aproximação a esse mesmo mundo natural e real, personificado nos dois tipos de colépteros encontrados à noite na floresta, não apenas os pirilampos, que brilham de acordo com ritmos internos e precisos que o menino desvendará, como também os pirivelhos, que não brilham, mas guardam em si histórias que contam aos demais. A inversão de saberes e experiências é apenas momentânea, pois a sabedoria do velho avô, se não é feita de técnica, é, camonianamente, “um saber de experiência feito”... primeiro, com perguntas que espevitam o menino, depois com reparos que vão despertando uma empatia e compreensão dos outros, introduz com efeito lições mais profundas.

Poderíamos ver o livro como contendo duas partes, sendo a segunda aquela em que é introduzida finalmente a voz dos próprios pirilampos, o que nos deverá alertar precisamente para uma das forças do livro, que é a de não reduzir qualquer dos papéis a funções sem direito ao seu próprio peso actancial e de auto-determinação.


Como ocorre nos projectos anteriores da colaboração dos dois autores (todas elas “estórias sem luz elétrica”), que o tempo dirá, e uma análise cuidada confirmaria, se se coalescerão numa unidade múltipla, O convidador é um livro no qual todos os aspectos da materialidade inscrita das imagens contribui para a lavra da interpretação e para os blocos de sensações que atingirão os seus leitores-espectadores. Tal como no famoso dictum de Roland Barthes, “A arte não tem ruído”, o que nos deverá colocar na senda de atentar a todo e qualquer elemento como confluindo para o sentido do livro. Mesmo que em termos de produção possa haver “acidentes”, imprevistos, os seus resultados passam a ser desde logo parte integrante da tarefa do significado. Como escreveu José Gil há recente, é tipificado da construção de uma obra de arte que vá “revelando a posteriori uma necessidade que não existia a priori.”

Gonçalves não deixa de revisitar muitas das suas estratégias visuais, mas há igualmente traços distintos e específicos para este livro. As figuras humanas têm contornos menos estilizados do que o costume, procurando-se aqui um registo mais naturalista. O uso das silhuetas, não sólidas mas com padronizações exímias e precisas para a folhagem das árvores, a cobertura “a pincel” dos corpos e troncos, as interrupções a branco da chuva, poças de água e luz despedida, colocá-lo-ia numa família de artistas que mencionámos quando de um livro ilustrador por Jorge Nesbitt (Lotte Reininger, mas desviando-o ao mesmo tempo dela, já que não se trata de recortes mas de marcações a linhas, ainda que contra um fundo distinto. Este, como dizíamos, destaca-se do plano figurativo pelo uso de cores suaves com efeitos de aguada.


Por vezes a cor invade a própria figuração, como nas cenas contra a noite solidamente escura, em que as cores da noite invadem os restantes objectos. As cores ficam-se pelo azul, o violeta, o malva, que rastejam por todos os espaços, e invadem todos os planos. É essa a nota ininterrupta deste conto “nocturno”, e que sublinha aquele aspecto do convite de que falámos acima. Apenas irrompem brancos e amarelos nos assaltos súbitos das luzes dos pirilampos, e uma única explosão do arco-íris integra-se na perfeição da acção espectacular e inesperada do primeiro encontro entre o esforço cientistante do menino e as criaturas que procura. Com poucas excepções em que as páginas são arrancadas à representação dos espaços e acções, quase todas elas se apresentam sob a forma de spreads, dando-nos planos gerais do que vai sucedendo, também com algumas excepções com maiores aproximações. E um caso ou outro tem o texto abrindo dois espaços de representação na mesma dupla página. A composição das páginas procura uma forma de integrar o texto através de tarjas brancas, cortando a paginação, com características tanto invasivas como elegantes.

Dito tudo isto, todavia, mais uma vez fica a nota negativa, de forma veemente, como a editora opta por secundarizar o nome do artista visual envolvido no projecto, como se se tratasse tão-somente de um complemento às ideação e palavras do escritor, em vez de se conformarem do acto criativo conjunto que se passa entre as capas. Podia ler-se o livro em voz alta? Sim. Perder-se-ia alguma dimensão nesse acto? Sim. Então compreenda-se o que existe na união.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.  

Sem comentários: