Mais do que uma convergência, ou
acumulação de referências, este livro maior de Pedro Cobiaco
assinala uma possibilidade de cruzamentos frutíferos entre o que
pareceria, até há uns anos, linhas de desenvolvimento temático,
formas de pesquisa formal e conteúdos emotivos e conceptuais
distintos, ou até mesmo incompatíveis. Mas uma das qualidades da
contemporaneidade tem precisamente a ver com uma ultrapassagem de
fronteiras que, até esse momento, pareciam seguras, sólidas e bem
delineadas. Após a sua travessia, notam-se como sendo tão naturais,
tão necessárias na obra, que o seu questionamento se dissipa
de imediato na sua leitura. (Mais)
Aventuras da Ilha do Tesouro
parecerá, na sua superfície, algo de leve, disseminado, inócuo.
Como uma delicada película de gasolina boiando sobre água, deixando
apenas uns efeitos de arco-íris, mas deslizando de tal forma que
possui uma velocidade diferente da corrente. Todavia, a toxicidade
está ali e o mergulho que se faz esconde os perigos, desvendados
sempre tarde demais.
Em termos de imaginário, Aventuras
associa-se a cruzamentos entre uma cultura urbana, jovem, com sinais
externos de sub-culturas específicas e vários tipos de fantasia,
recordando algumas das séries-bandeira da Cartoon Network, por
exemplo. Os (personagens que parecem ser os) protagonistas
encontram-se numa floresta/praia encantada em busca de uma abelha e a
cada novo passo embrenham-se em paisagens mais mágicas que a
anterior. A pequena “comunidade de jovens marginais” que
estrutura a cultura dos protagonistas poderia recordar alguns
contornos da dos Meninos Perdidos
de Peter Pan, e com essa obra da literatura infanto-juvenil
também partilha bastos elementos. Naturalmente que há uma maior
maturidade tópica e de representação do trabalho de Cobiaco,
incluindo questões sobre a sexualidade e os papéis identitários
(já presentes na obra de Barrie, naturalmente, mas tornados mais
explícitos na pós-modernidade), lançando as personagens numa maior
ambivalência e problematização de papéis expectáveis em relação
à distribuição mais clássica entre sexo e funções actanciais.
A “história” ou “intriga”
total não é linear nem clara. Cada capítulo funciona quase como
uma unidade de acções episódicas que se compreendem somente na sua
movimentação, mas não na sua coordenação. De certa forma, podiam
ler-se os capítulos como relatos distintos, até de géneros
diferentes, desde o conto tradicional e mágico ao autobiográfico
metafórico, do observacional realista ao fantasioso. Em parte, isso
espelha a sua produção original, publicando-se por partes online.
Porém, não se trata essa “descoordenação” de uma “falha”
estrutural, ou outro juízo similar. Há partes mesmo que parecem
remeter a possibilidades meta-textuais, em que uma das personagens
assume um papel que poderia ser chamado de “pai”, “autor”,
“demiurgo”, “criador” e que não apenas cria páginas de
banda desenhada como abre espaço à invasão de referências, a
saber, às figuras de Corto Maltese e Rasputin e os instrumentos
expressivos da tinta-da-China de Pratt. Essa brecha servirá,
portanto, ou talvez, a uma possibilidade de ler a própria narrativa
como fruto de um desdobramento interno do próprio acto de criação
da banda desenhada, reforçando o classicismo da ideia de “aventura”
e traduzindo metaforicamente a “Ilha do Tesouro” (que, de certa
forma, também se poderia ler como eco intertextual de Stevenson) na
própria textualidade da banda desenhada. Mas à medida que
atravessamos cada um desses capítulos, novas dimensões ou camadas
são reveladas que complicam o lugar dos capítulos anteriores: serão
algumas partes histórias contadas por personagens das outras? Serão
apenas momentos distintos de uma cronologia desarrumada? Alguns deles
terão contornos oníricos, e paralelos, mostrando alternativas de
desenvolvimento que depois não se verificam como reais? Qual a
relação entre a faixa do que parece ser o avatar do narrador
externo e aquela da história do Capitão? Uma ficção dentro de uma
“realidade”? Duas ficções? Uma metaforização ou poetização
da vida de uma das personagens?
Na verdade, acreditamos que as relações
entre todas estas linhas narrativas, cuja própria consubstanciação
se misturará com a sua interpretação – isto é, o próprio facto
de as identificarmos, nomearmos e diferenciarmos ou coordenarmos
entre si é fruto não somente de uma leitura “passiva” (nunca o
sendo) mas de escolhas específicas –, é da ordem do compossível.
Quer dizer, o Capitão tanto se sacrificou na “Revolução dos
Cabeças-de-Abóbora” como passou para um mundo irreal, ou tanto
envelheceu e manteve uma vida banal, como tudo não passa de uma
projecção fantasista de um filho saudoso.
E se podemos escolher este tal filho
saudoso como o grande nexo de toda a estrutura – o narrador
externo?, o demiurgo destes universos? “mero” avatar do autor? –
ele afinal está sempre coberto de uma máscara que tanto tem de
suave (uma superfície aparentemente lisa, de ecrã) como de mutável
(as paisagens que vai mostrando, como se espelhasse estados de alma).
Mais uma vez, a questão da identidade vem à tona, tal qual se
expressa nas transformações sucessivas do corpo do Capitão.
Cobiaco é um destes autores cuja
assinatura gráfica se pauta por uma fluidez e descontração da
figuração que marca tantos nomes contemporâneos, sem os subsumir a
um estilo comum ou epigonismos. Tem isto a ver, de certa forma, com
aquilo a que chamámos várias vezes de “desenho caligráfico”, a
propósito de Joann Sfar e outros autores, mesmo que haja aqui
pequenas diferenciações. A questão está no equilíbrio entre o
sólido desenho, as estratégias de representação que estão em
potência nas linhas de Cobiaco, mas a escolha de um lançamento
muito próximo do esboço. Com um trabalho de composição sóbrio e
legível e, acima de tudo, uma paleta de cores soberba, múltipla,
veraneante e contagiante invadindo todo o projecto (repare-se na
transformação do logo da editora portuguesa), Aventuras
torna-se um clássico instantâneo.
Graças à presença do autor, e suas
publicações, no Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja,
tivemos acesso a uma outra publicação sua, Cais, com Janaína
de Luna, com a qual Aventuras partilha uma certa qualidade
musical-textual. Não é apenas a divisão dos capítulos se chamarem
“canções”, mas outras pequenas estruturações e estratégias
internas a eles. E até o uso da própria linguagem. Apesar de
existirem muitos diálogos, consequentes e activados nas acções
visíveis, neste novo livro, se bem que também mais páginas
“silenciosas” (de resto, estamos a falar de um livro dez vezes
maior), há ainda assim um enquadramento feito por uma voz narradora
externa e elevada da acção principal. Poderemos considerá-la como
partindo do jovem da máscara? Projecto semi-autobiográfico do
autor?
Se o título parece apontar para uma
composição explicada logo à partida, na verdade o grau de
experimentação e ambivalência revelar-se-á bem complexo e que
obrigará o leitor a fazer uma leitura pausada, cuidada e
possivelmente obrigada a repetir-se. Não para descobrir a solução
ao enigma, tornando tudo unilateral e solucionado, mas para
reintensificar as passagens várias que se operam nestas páginas.
Nota final: imagens misturadas entre fotografadas e da internet.
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