Adaptação. Versão.
Devaneio. Fantasia. Comentário. Alegoria. Todas e quaisquer destas palavras
serviria para presidir a uma descrição deste volume, ou talvez melhor uma
mistura entre elas, procurando as linhas de força conceptuais de cada uma,
operando sobre alguns dos elementos que a compõe. Uma obra primitiva do famoso
Manara a caminho da sua primeira maturidade, numa colaboração com Silverio
Pisu, autor de experiências variadas e que se exprimem neste livro. O título
original é Lo scimmiotto, literalmente “macaquinho”, que também era o
título pelo qual o clássico chinês, atribuído a Wu Cheng-en, Viagem ao
Ocidente, havia sido traduzido à época em Itália. Na verdade, já nos
referimos a esta obra há uns anos, quando da leitura de uma versão feita por Terada Katsyua, e a ela remetemos para devolução de um breve contexto da obra.
Até certo ponto, poder-se-ia dizer que este volume é uma adaptação desse
escrito literário, já que as personagens, os episódios, as expressões e apodos,
os contornos fantásticos, se repetem a par e passo conforme a primeira parte da
obra chinesa. Mas a adaptação de Pisu e Manara não apenas se mantém na primeira
parte, até ao castigo de Buda que aprisiona o Rei Macaco sobre uma nova rocha
(recordemos que ele nasceu de uma pedra, havendo portanto um pequeno ciclo de
regresso à origem neste episódio), como transforma toda a novela dessa figura
numa plataforma para a criação de uma alegoria política. (Mais)
Aparentemente, o
livro conta então a origem do Rei Macaco, a figura mitológica Sun Wukong, os
seus primeiros embates com os seres celestiais da corte do Imperador de Jade,
as suas conquistas de fama e fortuna, o seu estranho papel enquanto líder de
uma tribo “inocente”, a sua ascensão nos escalões do poder mas igualmente a sua
natureza de poucos compromissos e, finalmente, o seu derradeiro castigo.
Todavia, se se repetem muitos dos elementos previstos no clássico, inclusive a
sua inscrição visual numa China mítica e histórica, a um só tempo, Pisu e
Manara aproveitam para instilar toda uma série de elementos que o tornam uma
espécie de alegoria e celebração das ideologias progressistas de uma esquerda
generalizada, maoísta ou trotskista, que serve de heróica resistência a uma
hegemonia avassaladora e imparável da cultura hegemónica norte-americana.
Visualmente, os
autores não perdem um passo para introduzir de forma quase sistémica elementos
que remeterão para essa economia de representações: a mercantilização da
cultura, o consumo desenfreado, a alienação das várias gerações, a falta de uma
ideia de comunidade internacional, são os rolos compressores que estão no lugar
do grande poder, sobretudo expresso pela classe inútil, empoeirada e
destruidora da burocracia do império celeste, que se tornam os verdadeiros
obstáculos do rei macaco. Com efeito, este confronta-se com toda uma série de
personagens, mas é a apatia e inércia desse poder instituído que o acaba por
minar de forma mais célere. Não deixaria de ser possível reler toda esta
narrativa à luz dos vários governos nacionais ou instituições supra-nacionais
hodiernas. Há mesmo uma personagem secundária que, a dado momento, se revela
como um dragão de três cabeças, cada uma delas mostrando ser um militar, um
clérigo e um capitalista de cartola. Se essa imagem poderá parecer um “cliché”,
um símbolo que poderia ter tido lugar desde meados do século XIX até àquela
data, passando pelo Assiette au Beurre,
ela não é de todo deslocada deste contexto, que opera entre ideias
contemporâneas e referências clássicas, imagens novas e um fundo comum, etc.
Quase todas as personagens
secundárias não passam disso e são, muitas vezes, descartáveis mal os seus
papéis se esgotam. Todavia, isso é adequado à natureza literária original, que
não se conduzia por regras que adviriam com o mais tardio realismo social e
psicológico do romance europeu, como com a própria natureza, algo panfletária e
combativa, destas mesmas histórias. O rei macaco surge como uma figura
contraditória, já que se por vezes surge como um campeão das sensações e dos
prazeres simples, por outras opera como a voz dos oprimidos e um paladino de
noas justiças sociais de redistribuição e da autodeterminação dos povos (na
época, uma questão “quente”). Com Manara ao desenho, é mais do expectável de
que as figuras femininas, sejam de que etnia forem, partilhem certas
características corpóreas que as transforma em objectos de prazer e desejo, não
transformando este livro propriamente num combate particularmente preocupado
com a identidade feminina na sua própria independência, mas isso é também sinal
de uma certa esquerda (ainda hoje nem sempre ultrapassado) de se bater pela
liberdade enquanto cega a certos sectores onde ela poderia chegar (historicamente isso significou uma cegueira à cor de pele, ao sexo, à sexualidade, etc.).
O livro tem uma
estrutura claramente episódica, de 8 em 8 pranchas, notando-se como as páginas
iniciais remetem a uma breve sinopse e um relançamento das acções anteriores,
espelhando assim a sua publicação capitular nas revistas alterlinus e,
depois de mudar de nome, a alteralter. Este contexto é importante, não
apenas pelo papel que terá tido na própria carreira de Manara como em termos
mais generalizados. Em relação a Manara terá a ver com o facto deste estar a
começar a criar livros de algum impacto político e visual. Depois de uma
passagem por toda uma série de títulos comerciais, dos ditos fumetti neri,
Manara trabalhou em colaborações com argumentistas vários, das quais esta é um
dos frutos. Apenas após estas experiências, em 1978, com H.P. e Giuseppe Bergman,
verdadeiro modelo de banda desenhada metatextual, arrancaria com as suas
grandes obras a solo. É verdade que a sua grande fama seria angariada sobretudo
pelas obras eróticas e pornográficas (uma dimensão que está sempre presente nos
seus títulos, inclusive o presente, um tique por vezes gratuito e irritante e
que, no fundo, acabou por lhe tomar outras possibilidades experimentadas), como
O Clic, que não serão o seu melhor trabalho nem na lavra literária nem
visual, mas quanto a nós parece-nos que os seus trabalhos mais acabados foram
aqueles que sempre mantiveram laços com argumentistas de renomes e com os quais
criou alguns marcos na banda desenhada italiana contemporânea (O Burro de Ouro de Apuleio, O Verão índio e O homem de papel continuam a ser livros merecedores da nossa
revisitação). Todavia, é de facto nesta fase do final dos anos 1970 que Manara
toma mais riscos, por exemplo, na composição de páginas, e estratégias
“cheias”.
Com efeito,
muitas das páginas mais interessantes desta pequena saga pautam-se pelos
momentos em que o protagonista, dada a obrigatoriedade das suas deslocações
pelos vários espaços, correspondendo igualmente a várias etapas e encontros com
uma verdadeira galeria fantástica de personagens míticas, se depara com planos
de conjunto e de paisagem. Sobretudo quando a linha de horizonte permite
panoramas imensos, em que se revelam edifícios, construções ou paisagens
naturais ou semi-mágicas populadas, o artista preenche o espaço com um
rendilhado de pormenores exímio, e que obriga a micro-leituras recompensadoras
(aliás, é nessa detecção que descobriremos o “sabor” da sua época, desde referências
remetendo à cultura hippie e consumidora de erva dos anos 1960-70 a Claire Bretécher
e outras dimensões da cultura popular e política de então, como vimos). E há também
composições “decorativas”, como quando o rei macaco adquire a sua arma de
eleição, o bastão mágico, num piscar de olho a Druillet ou mesmo a ilustrações
mais clássicas. Isto não significa que haja momentos de menor gestão da estruturação, com vinhetas "fora do sítio" de uma leitura mais natural, ou disposição de balões que não é equilibrada em relação à ordem, e cujas soluções de caudas serpeantes não é a melhor...
Quanto ao
contexto mais geral da banda desenhada, temos de criar alianças extremamente
fortes e produtivas entre Itália e França, sobretudo, mas não descurar todo o
contexto internacional. Estamos a falar, afinal, da década após as experiências
do pós-1968, com a emergência dos underground comix e de títulos tais
como a Métal Hurlant. O projecto da linus, discutivelmente mais
dedicado a uma ideia (então) dos “clássicos”, abre uma porta com o seu novo
título para prestações mais contemporâneas, trabalhando não apenas com
traduções mas trabalhos locais originais (afinal, é aí que Pazienza publicou,
recordando algumas das palavras que deixámos sobre essa publicação a propósito
de um seu título). Mesmo que a narrativa do “crescimento” da banda desenhada
seja algo perigoso enquanto discurso, se seguirmos as lições de Christopher
Pizzino em Arresting Development (e de que daremos notícias em breve),
não se pode negar que havia surgido toda uma geração de autores europeus ou na
Europa interessados em pesquisar uma “maturidade” do meio que não se expressava
pelo sexo e violência gratuitos, ou não integrados num programa maior de
narração e representação políticas, mas por uma sofisticação mais elaborada em
termos dos seus instrumentos de texto e imagem. Falamos de autores tais como
Jean Vautrin e Jean Teulé, Alex Barbier, Chantal Montellier e os Bazooka, Muñoz
e Sampayo, entre outros possíveis.
O rei macaco é assim um objecto cheio de contradições
internas. Por um lado, é um dos primeiros grandes trabalhos de Manara enquanto
artista visual com uma atenção particular para o pormenor, os planos de conjunto
e a composição, por outro uma obra ancorada na época em que se pensava a banda
desenhada como possível veículo de uma discussão e popularização política
através da fantasia de modos mais explícitos, mas por outro ainda um objecto de
grandes fragilidades nessa mesma missão.
A edição
presente, materialmente irrepreensível e com uma tradução sólida do francês
(apenas escapou um “non!” à revisão), inclui ainda toda uma série de imagens
criadas pelo artista em torno desta personagem, em vários momentos da sua
carreira. A edição é também feliz por ter escolhido uma belíssima capa mais
consentânea com o seu interior do que muitas das versões estrangeiras, inclusive
italianas, que optam antes por uns desenhos que assinalam um erotismo pacóvio
ou uma relação, fora de carácter, entre o protagonista no seu mais bestial e o
sexo. A opção portuguesa não seguiu, portanto, uma mera estratégia facilitista,
mas sim respeitadora do livro, o qual, ainda que fruto da sua época, não deixa
de ter dimensões ainda hoje urgentes. Fica apenas o senão de secundarizarem o
nome do argumentista, e não de o terem colocado a par do do artista, já que o
esforço criativo aqui deve ser repartido, e não compartimentado em hierarquias.
Nota final: agradecimentos à
editora, pela oferta do livro.
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