Nimona é
uma personagem intempestiva, irreflectida, violenta, inconsequente,
com um sentido de humor duvidoso, e de oportunidade enxovalhado,
enfim, um péssimo “modelo de comportamento moral” para qualquer
criança ou adolescente. As mortes, destruição, uma certa paixão
pelo caos, as suas alianças pouco saudáveis, causadas pela
protagonista, tornam-na com efeito um péssimo exemplo se se
pretender instigar nos jovens leitores um manual de comportamento e
de civilidade. Mas esse não é, felizmente, o fito de Nimona. (Mais)
Não sendo
esta a primeira aposta da Saída de Emergência no campo da banda
desenhada, e dando continuidade, até certo ponto, a alguns dos
territórios genéricos da literatura a que mais se tem dedicado,
procurando cumprir um papel inédito (nestas últimas décadas) em
Portugal na edição de clássicos, referências contemporâneas e
gestos antológicos significativos nos campos da fantasia, ficção
científica, e outros géneros distintos, Nimona consegue
porém trabalhar para um nicho de público particularizado, o que não
o impede a uma maior universalidade. Noelle Stevenson já tivera
outro do seu trabalho publicado em Portugal, a saber, a co-criação
Lumberjanes (que vai saindo pela Devir), mas este é o seu
primeiro projecto a solo de grande fôlego. Ambos poderiam ser
descritos como “livros de banda desenhada para um público jovem
feminino”, uma vez que as personagens principais, ou motrizes da
acção, são femininas e seguem uma diversidade de personalidades e
representação que vão bem mais além do que as fantasias
sexualizadas e violentas “para rapazes” (amazonas na esteira de
Sheena, Sonja, Lara Croft, ou pior, Vampirella, escapando apenas a
Mulher Maravilha, quer por design quer pelo seu emprego narrativo).
Mas isso seria desde logo um pequeno disparate, uma vez que não se
podem fechar estes textos somente a um leitorado feminino por essa
razão, já que têm elementos suficientes e constantes de uma
universalidade, e que discordaria dessa ideia-chave de que apenas são
“universais” os textos com personagens masculinos no centro.
Nesse aspecto, Nimona é desde logo uma vitória.
Ao
contrário de Lumberjanes, em que existe uma dinâmica de
grupo de girl empowerment, Ninoma procura antes uma
outra estrutura de integração e colaboração entre as personagens.
Nimona é uma personagem misteriosa que surge para oferecer os seus
préstimos de “braço direito” ao vilão da sociedade em que
vive, o Lorde Ballister Coração Negro. O objectivo dela é que
Ballister se torne uma ameaça ainda maior para a organização que
exerce um poder oculto e opressivo sobre aquela sociedade, o
Instituto para a Aplicação da Lei e Heroísmo, mais o seu paladino,
Sir Ambrosius Virilha Dourada. Nimona, como se costuma dizer, “entra
a matar”, literalmente. E isso serve de primeiro embate moral entre
Ninoma e o aparente vilão, o qual deseja criar uma rede de
resistência ao poder do Instituto, mas sem ultrapassar certas linhas
de decoro e violência. Esse é o mecanismo que torna Ninoma
desde logo num curioso exercício metatextual sobre o próprio género
em que se insere.
À
partida, aparentemente, Nimona é um livro de high
fantasy: trata-se de um mundo
de aspecto “medievalista”, com cavaleiros, castelos, servos e
monarcas, justas e honras, combates a espada e alguma magia,
envolvendo feitiços, bruxas, dragões, poções e ervas venenosas.
Mas ao mesmo tempo, há espaço para um serviço noticioso via
televisão, um grande interesse pelas ciências exactas e
experiências laboratoriais, bases de dados computorizadas, telefones
e outros bens algo deslocados dos princípios genéricos. Noelle
Stevenson, portanto, parece estar a seguir aquele útimo estádio do
ciclo dos géneros que John Cawelti descreveu, em que após a sua
formação, repetição e consolidação se segue algum cansaço e,
finalmente, se permite a sua paródia. Também se poderia pensar na
banda desenhada de super-heróis, uma vez que Ninoma é uma
“transmutadora” (depois descobriremos o que isso significa), o
que lhe permite surgir em vários corpos e funções, recordando uma
panóplia de outras personagens clássicas.
Stevenson
não é propriamente original nesse acto em si (poderíamos fazer uma
brevíssima comparação com Castle Waiting,
de Linda Medley, ou, entre nós, por exemplo, apontar um autor como
Diogo Carvalho, que tem explorado de forma muito interessante as
paródias ao género, mantendo porém algumas das suas qualidades
esperadas), mas é-o nos contornos em que o faz, nos elementos que
introduz. E acima de tudo, a importância está de facto na maneira
como Stevenson burila as suas personagens, mais através das acções,
dos diálogos e dos espaços intersticiais dessas relações do que
através de simples exposições temáticas. Repare-se como o título
do livro e o móbil da atenção não é o “herói” Virilha
Dourada nem o “vilão” Coração Negro, mas a acólita do
segundo, a sidekick,
sendo ela quem introduz realmente um novo peso na distribuição dos
poderes e papéis.
Quando
se falam de livros “feministas”, um dos problemas é entender mal
esta última palavra, e achar-se que o que se pretende é uma espécie
de desequilíbrio de género. Apesar das naturezas múltiplas que
essa palavra abarca, fiquemo-nos pelo desejo de correcção histórico
que se pretende na crença de quem ou em que condições certos
papéis podem ser cumpridos: o de herói e o de vilão, o de monarca
e de força antagónica, etc. Quem pensar que essas distribuições
estão hoje resolvidas, vê mal ainda a questão e é nestes gestos,
aparentemente populares, inconsequentes, “infanto-juvenis”, que
se encontram as raízes de gestos verdadeiramente equilibrados e
equalitários. A distribuição de representação e agência em
Nimona não segue
papéis distintos entre “homem” e “mulher” (e fiquemo-nos
pelo binarismo), e essa é uma das suas dimensões mais
interessantes.
Nimona
não é uma pessoa perfeita, de forma alguma, mas nenhuma em todo
este universo de personagens o é, e o mais dinâmico está na forma
como todas elas vão tentando compreender não apenas as limitações
das suas acções face ao espaço dos outros, como as
responsabilidades que devem assmir perante as suas acções que com
efeito cumprem. A relação entre Ballister e Virilha Dourada é
bastante complexa e se há pelo menos uma questão que nunca fica
respondida de forma cabal, essa “falha” não é um problema, mas
antes uma responsabilização do próprio leitor em interpretar e
contribuir para a narrativa. O mesmo se poderia dizer em relação a
Nimona ela mesma, mas nesse caso há uma resolução mais clara,
ainda que aberta. Stevenson, trabalhando num género leve e de uma
forma quase ligeira, acaba por criar uma narrativa com uma estrutura
densa, uma rede emocional particularmente complexa e uma pequena
máquina que nos obriga a repensar a tal distribuição de papéis
conforme os sexos.
Em
termos visuais, Stevenson é muito devedora de estratégias da banda
desenhada japonesa. Não no que diz respeito à figuração, cuja
estilização e minimalização está mais próxima de uma
longuíssima tradição de cartoonistas norte-americanos, sobretudo
da imprensa editorial, com uma assinatura rápida, mas no que diz
respeito à forma como estrutura a relação entre as vinhetas
enquanto unidades de leitura e campos visuais. Tendo um formato de
livro, a composição de páginas bebe de uma estrutura tipificada de
grelhas irregulares de 6 vinhetas em média, com muitas variações
expressivas e consequentes, mas diminuindo os cenários a cores ou
breves traços, impelindo a leitura de uma forma contínua e marcada.
A divisão em capítulos pareceria desnecessária, mas tem tanto a
ver com a sua origem (começou como um projecto online) como ajuda a
reforçar as “elipses” entre cada momento mais alargado.
Nimona
é, enfim, um contributo significativo na francamente cada vez mais diversa
oferta de banda desenhada em Portugal, que procura demonstrar como a
qualidade não se encontra no cumprimento de géneros ou estilos mais
normativos, mas antes em experiências muitas vezes mais
especificadas em termos de instrumentos e até leitores. Uma obra
acabada e inteligente para um público mais jovem, um livro que não
tem receio de debater temas mais difíceis através de fantasias
leves, e que responsabiliza o leitor a compreender os valores em
questão, talvez não seja o livro ideal a quem quer a papa feita,
mas sê-lo-á sem dúvida a quem tenha coragem de pensar sozinho,
ainda que mais corajoso ainda de ouvir os outros. Tal qual Nimona o
faz.
Um outro
aspecto interessante seria analisar como, mais uma vez, um projecto
que começou em webcomic ganha maior “sucesso” na sua instância
material e livresca e como esse negócio “apaga” a sua vida
anterior online. Essa dimensão económica e negocial, porém, poderá
ser estudada por pessoas munidas de melhores instrumentos que os
nossos.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Imagens
colhidas na internet.
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