2 de agosto de 2017

Punk Comix/Corta-e-Cola. Marcos Farrajota/Afonso Cortez (Chili Com Carne/Thisco)


Parafraseando Frank Zappa a propósito do jazz, o “punk não está morto, mas já cheira um bocado mal”. Ou talvez não. Este projecto já estaria anunciado há algum tempo, com alguns sinais aqui e ali, por blogs, conversas e encontros de cariz de vária natureza, do mais académico ao mais descontraído, e com associações metastásicas por linhas paralelas que apenas o tempo dirá se se complementam, se se opõem ou simplesmente se atropelam. Seja como for, os esforços gémeos de Marcos Farrajota e de Afonso Cortez encontram aqui um caminho que se sustenta mutuamente num split-book, em que o primeiro ausculta as relações da noção cultural do “punk” com a banda desenhada em Portugal, e o segundo faz uma história variada do movimento musical entre nós, nos vinte anos que distam de 1978 a 1998. Por razões que têm a ver com a nossa própria especialidade e conhecimentos, falaremos apenas da “metade” de Farrajota, estando em crer que o livro de Cortez esteja na excelente linha de produções a que a editora tem presidido com o conjunto de ensaios sócio-culturais em torno de fenómenos musicais de Rui Eduardo Paes. (Aborrece-nos apenas recordar que o único vinil que tínhamos desta colheita, e que aparece citado, foi quebrado contra o chão por razões sem qualquer importância...) (Mais)

Não nos atreveremos a apresentar aqui uma ideia de que o punk seria possível de definir. Enquanto sub-cultura, no preciso sentido que Dick Hebdige propôs, ela não está somente na sequência das várias culturas específicas aos adolescentes das sociedades mais ricas materialmente do mundo ocidental (Reino Unido, Estados Unidos, etc.), como depois se acaba por desdobrar em várias sub-sub-expressões, e muitos dos seus elementos acabaram por sobreviver ou mutar-se, de maneira a que possamos compreender que tenham alterado radicalmente os próprios processos de organizar os movimentos, modas, ou práticas das culturas jovens e subversivas. E se as primeiras formas de expressão passavam sobretudo pela música teriam repercussões imediatas sobre o vestuário, os tipos de dança, de formas de lazer, de cultura visual, de modos de comunicação e até em modos de violência, já para não falar de inscrições políticas e respostas às hegemonias sociais de cada tempo em particular. Stuart Hall havia definido a cultura como sendo “aquele nível no qual grupos sociais desenvolvem padrões de vida distintos e dão forma expressiva à sua experiência social e material”. Assim, as sub-culturas seriam uma classe de fenómenos que se traduzem por estilhaçamentos dos discursos dominantes e consensuais das sociedades em que emergem. E quanto mais espectaculares, melhor. Para Hebdige, nenhuma outra cultura suscitou tanta oposição da parte das visões normativas, nem outro movimento, se assim se quiser chamar, foi tão oposicional a essas mesmas perspectivas do que o punk.

Portanto, o que deveria ser importante de sublinhar do punk não seria tanto identificar os autores como sendo ou não punks (que Farrajota consideraria, com razão, algo tão patético como pidesco), no sentido em se usam ou não sabão para esticar a crista ou alfinetes nos blusões de ganga rasgados, mas antes perceber se existem elementos advindos desse movimento que possam ser lidos como tal. Apesar de haver sinais de domesticação, co-opting, comodificação e apropriação do punk, através de mecanismos de apropriação discursiva da parte do mundo académico (a Intellect, editora da Studies in Comics, tem mesmo uma publicação com peritagem intitulada Punk & Post-Punk!), re-utilização e mercantilismo do vestuário por várias marcas de roupa, ou até o inevitável rehashing do capitalismo cultural (custa falar dos Green Day ou Offspring no mesmo fôlego que os Bad Brains ou os Dead Kennedys), o que Farrajota tenta sobretudo identificar são os elementos atomizados que se podem considerar como sendo fruto do punk propriamente dito (digamos, londrino e californiano), mesmo que reempregues em contextos diferentes (nacionais, para começar, mas depois ganhando contornos distintos). E em relação à banda desenhada.

Se se policiasse, de facto, a cultura punk de uma maneira muito específica, seria possível reduzir o discurso a pouco. Mas o editor e criador de banda desenhada emprega o seu conhecimento feito de experiência própria e de leituras para investigar o tema num processo mais lato. A organização do livro é estruturada de uma maneira bastante clássica e organizada. Inicia-se pela identificação das raízes internacionais e depois organiza cronologicamente a edição portuguesa de material passível de ser visto sob este ângulo ou foco. Esta organização temporal não o impede de recuar a um passado, dando início à tal identificação lateral dos elementos, que depois se reflecte na inclusão de projectos já posteriores às datas que se imaginariam afectas de maneira directa ao punk.

Daí há toda uma série de desdobramentos que permitem colocar as questões mais prementes e certas. Começa-se pela representação estreita de personagens ou da cena musical punk, e é muito curioso que, com efeito, a esmagadora maioria dela se reduza a caricaturas e mobiliário urbano, o que leva a questões de integração da diversidade possível e da emergência de verdadeiras personagens, colocando, talvez sem surpresas, Fernando Relvas como figura inédita e irrepetida. Depois, temos a interrogação da realidade, a emergência da autobiografia, a inclusão e atenção para com assuntos tais como as drogas, o sexo, a ocupação de edifícios, e finalmente questões estilísticas, desde o desenho, composição ou utilização de estratégias gráficas como a colagem. Neste último ponto, a rememoração do magnífico “Avé-Marias Rap”, de Diniz Conefrey, confirma que houve tempos em que se verificava uma maior investigação expressiva nesta disciplina, que não se tem repetido nos tempos mais actuais, apesar do aumento da visibilidade e produtividade.

Apesar desta organização, que se vai desenrolando como resposta a perguntas de um hipotético interlocutor, o autor vai associando a sua história a episódios pessoais, entrevistas e conversas com muitos dos autores, pequenas notas bio- e bibliográficas importantes, contextualizações de testemunha e uma maciça e saudável dose de humor e opinião que torna o discurso rico e divertido, mas sobretudo vivo. É muitas vezes nos apartes que Farrajota, na verdade, revela a sua verve, humor, capacidade de análise e muitas vezes virulência (mas afinal, se nos metemos na boca do punk...). A ideia de compromisso não faria sentido, mas a auto-crítica, até certo ponto, não está ausente.

Mesmo que se possa crer que uma perspectiva diferente, ancorada noutra experiência pessoal, pudesse ter providenciado uma imagem distinta, não estamos em crer que fosse, porém, mais clara e tão abrangente. Farrajota concede muitas vezes que as coisas poderiam ser vistas de modos diferentes, sendo ele também um atento e conhecedor crítico musical com uma assombrosa competência para identificar géneros e sub-géneros e matizes musicais [e que se expressa nas suas breves reportagens de concertos], a qual, quanto a nós, nem sequer saberíamos como começar a responder. De resto, e aliás, as sonoridades presentes no CD que acompanha este projecto, com temas inéditos dedicados a várias figuras da banda desenhada ou territórios afins por diversos nomes que se encaixam no tal descritivo elástico, atravessam pelos vistos as várias temperaturas ou matizes musicais que a palavra punk parece poder suscitar, desde o oi! dos Grito! ao groove dos Putan Club, do spoken whatever do Presidente Drógado ao estranhamente melódico-suave dos Estilhaços Cinematográficos (se não tivermos atenção à letra).

Acima de tudo, fica a ideia de que a maior herança do punk é a cultura do do-it-yourself, aliando-se então uma das tendências mais marcantes da banda desenhada moderna portuguesa, a da emergência e formidável produção de fanzines, a essa prática particular que ocorreu de forma tão dramática e especial no punk.


O próprio arranjo gráfico do livro tira algum partido do “mau-comportamento” herdado do movimento punk (e talvez devamos incluir aí as inúmeras gralhas?), e que procura trazer alguma fluidez e heterodoxia na organização entre imagens e palavras. De leitura rápida, Punk Comix não deixará de ser um instrumento de leitura obrigatória para compreender alguma da história da banda desenhada moderna e contemporânea em Portugal.  

1 comentário:

MMMNNNRRRG disse...

obrigado pela resenha crítica!
ficou para discussão se "todos os autores de BD portugueses são punks" devido a eterna falta de sentido dos monopólios editoriais (meribéricas e afins) e a necessidade de "mostrar trabalho" que os autores tiveram através de zines e auto-edição... que a herança do punk seja os DIY isso já se sabe...
boas férias se for caso disso!
M