Em alguns parâmetros, poderia repetir algumas das palavras que usei sobre a edição completa de Peanuts, de Schulz, para estoutra programada edição integral. Por razões como não ter sido nunca compilada e apenas surgir de vez em quando como referência em livros de verdadeiros historiadores da banda desenhada, mas nem sempre da maior acessibilidade (teórica e monetária), Gasoline Alley, uma série iniciada em 1919 por Frank King e ainda hoje continuada pelos seus seguidores, não é famosa hoje como, por exemplo, Hogan’s Alley (ou Yellow Kid, de Outcault), Little Nemo in Slumberland (de McKay), Krazy Kat (de Herriman), ou Peanuts. (Mais)
Apesar de 11 Sundays e 1 tira diária terem sido editadas entre nós nos circuitos de fanzines, num dos The Nemo Booklets of Classic Comics de Manuel Caldas e M. Nöel Hantonio, não me parece ser esta uma referência imediata aos circuitos de leitura deste modo de expressão.
O que começou como um mero complemento sobre carros (literalmente uma “alley”, “beco”, numa página com outros gags), passou – no dia de S. Valentim de 1921 - a uma dimensão inovadora. Se bem que já existissem outras séries versando os mais quotidianos dos acontecimentos de famílias – o que se tornaria Polly and Her Pals de Cliff Sterrett, Bringing Up Father, de George McManus, ou de artistas bem mais próximos de King, como Clare Briggs e Sidney Smith (dos The Gumps), entre outros -, Gasoline Alley introduziria um aparentemente simples ponto de inovação, mas que espoletaria de imediato uma rede complexa de consequências a nível de desenvolvimento diegético e ético da série: as personagens envelhecem ao ritmo cronológico do seu surgimento nas páginas do jornal. Ora isto era inédito, e seria muito pouco repetido – excepções que conheça, a série (Post-)Dykes to Watch Out For, de Alison Bechdel, ou as séries mainstream The Books of Magic e Hellblazer (ambos os protagonistas, respectivamente Timothy Hunter e John Constantine, envelheceram).
Esta série acompanha o roliço e bonacheirão Walt e os seus comparsas, amantes e amadores de mecânica automóvel. Após o surgimento do bebé deixado à sua porta, passamos às suas aventuras descobrindo como se trata de uma criança - a mistura do vocabulário mecânico nas actividades de tratar de um bebé é material alongadamente utilizado, e aos poucos vamos descobrindo a faceta "babada", emocional de Walt. A partir daí, seguem-se as complexificações das relações, a construção de "plots" (a viagem a Yellowstone, o suspense até à fatídica Sexta-feira, dia 15 de Dezembro de 1922, a preocupação da adopção legal de Skeezix e um sempre possível retorno dos pais), e o aprofundamento das personagens. Por exemplo, mesmo a ama negra, Rachel, não obstante o tratamento algo racista - próprio do tempo?, e apontado por Ware -, surge-nos enquanto pessoa completa, e até tratada com respeito, como se entenderá pela leitura mais superficial: o amor que tem por Skeezix, os sacrifícios que faz, a atitude frontal para com Walt, as leituras que faz (Poe!), o que lhe garantem contornos e um valor idênticos aos das restantes personagens.
Promessas formavam-se na editora Drawn & Quarterly, cuja revista homónima editara páginas de Domingo nos seus números 3 (2000, com uma incrível homenagem gráfica de Chris Ware, editor desta antologia) e 4 (2001). Mais, nesta edição que aqui comento promete-se uma edição paralela dessas magníficas páginas de Domingo, em que King se dedicava a uma maior inventabilidade gráfica, onírica (não surrealista, por favor), poética, bem diversa do que se fazia no seu tempo e com um impacto algo diferente de trabalhos anteriores, mesmo Nemo de McKay (já que era premissa dessa série sobre sonhos a espectacularidade plástica das pranchas) ou a Polly de Sterrett (que empregava uma espécie de destempero e vertigem visual para explicitar o ritmo dos desvarios de Paw Perkins).
O que importa sempre sublinhar é a naturalidade das pessoas. Vejam-se por exemplo as diferenças entre as personagens principais, estilizadas cada uma a seu modo (três, quatro linhas para a popa de Walt, os óculos escondendo as pupilas de Doc, as desproporções dos corpos em relação às cabeças), e as belas mulheres que parecem recortadas de um catálogo da Sear’s do seu tempo. Apesar de saber que esta afirmação dever ser temperada pelo mesmo recurso técnico em séries anteriores, como a já citada de McManus, e a personagem de Blossom ser uma clara excepção do uso dessas figurações estilizadas, já que reveste uma personagem bem mais redonda e com mais importantes consequências.
Se bem que não seja esse o território principal de King, há algumas inovações na composição visual (como as perspectivas cónicas, aéreas e a três quartos, elevadas a novas belezas - a primeira tira é a de 29 de Outubro de 1921 e depois seguem-se algumas das Sundays), no cruzamento de fontes de cultura visual (atravessando escolas artísticas, estilos da História, técnicas, etc.), mas sempre empregues para fins menos sensacionais e mais introspectivos sobre as belezas em movimento, pois “todo o mundo é composto de mudança”.
Pois esse é o mote de toda a série, como que uma aquiescência, não resignada, antes profundamente sentida, de que a vida segue um lento, inexorável e marcante ritmo. Não há furores de maior, só sulcos que se vão notando na pele a envelhecer. E que uma contínua felicidade está em abraçar esse movimento. E este é um ponto muito diferente em King, que se reflecte mesmo na sua vida (amplamente documentada e discutida neste primeiro volume) – pois creio que um artista ressente mais na sua vida a sua arte do que “influencia” a sua arte com a sua vida -, levada sem hubris alguma, que transformara o fascínio e loucura pelos novíssimos “automobiles” e as suas permitidas velocidades num ritmo mais pausado, ao contrário de Sidney Smith, morto pelas razões materiais do seu sucesso e soberba. Mais uma vez, esta promete ser uma aventura fabulosa no campo da leitura, da descoberta retrospectiva de um artista e de um marco nesta arte, e seguramente que a ele voltaremos, se o Tempo e as Mudanças o permitirem.
7 de julho de 2005
Walt and Skeezix. Frank King (Drawn & Quarterly)
Publicada por Pedro Moura à(s) 4:41 da tarde
Etiquetas: EUA
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário