9 de maio de 2012

Hokusai. Shotaro Ishinomori (Sensei)

A vida de Hokusai foi cheia e longa, não apenas no que diz respeito à vida pessoal, mas à sua produção artística, extremamente variada, e algo diferente do que era prática comum do seu tempo (em parte por Hokusai viver precisamente num momento em que o tecido social e político do Japão se alterava em nome da modernidade). Ele começou como aprendiz de gravura em madeira, mas tornar-se-ia rapidamente estudante de desenho, e viria a experimentar toda a espécie de técnicas e materiais, estilos e escolas, assim como de canais de divulgação e expressão, tendo trabalhado em estampas baratas impressas a uma cor, calendários (egoyomi), impressões “privadas” (surimono), manuais (no qual os volumes de Hokusai Manga se podem inscrever), e, onde viria a granjear grande parte da fama em vida, livros ilustrados da literatura popular, e então mais tarde, já nos seus setenta anos de idade, as suas duas séries, as obras-primas dedicadas ao Monte Fuji. Como já havíamos debatido a propósito de uma colectânea do seu Manga, para Hokusai a ideia de série era fulcral, não só a da repetição do gesto ritual como também a instituição de uma cadeia de associação entre as imagens, o que poderia ser entendido como uma descrição possível da banda desenhada. Por essa e outras razões ainda, não é de surpreender que ele seja alvo de uma biografia em banda desenhada.
Shotaro Ishinomori, ou Shinomori, como é também conhecido, é um dos nomes maiores da banda desenhada no Japão, sobretudo da shonen e de género (de ficção científica, de acção, de heróis, com o que mais próximo há de super-heróis no Japão, e que iria desembocar nos Power Rangers, por exemplo), tendo começado a trabalhar nos meados dos anos 1950, e criado títulos tão famosos e influentes como Kamen Rider, ou Cyborg 009, entre outros títulos, os quais, alvo das costumeiras adaptações pelas séries de animação, lhe também granjearam a sua própria fama & fortuna. Além do mais, sempre presente em algumas das revistas mais famosas, como a Big Comic (onde foi também publicada Golgo 13, de Takao Saito, por exemplo), foi fundando alguns géneros novos, experimentando técnicas e estilos diversos, procurando novos públicos. Mas a sua tarefa também foi hercúlea no que diz respeito à associação de autores, defesas legais e até o combate contra a censura ou regulação (um pouco à la Comics Code) e leis desproporcionais em relação à produção de banda desenhada.
No entanto, Shinomori, apesar de ter começado como quase um epígono de Tezuka e depois ter procurado trabalhos de maior “maturidade”, não chegou a inflectir por obras realistas como os autores gekigá, dedicando-se antes a alguns títulos didácticos, como aquele dedicado à economia nacional, alvo de tradução em inglês e francês (Japan, Inc./Les secrets de l‘économie japonaise en bandes dessinées) ou à história do Japão. Mas ele é uma referência maior no seu país, muito profícuo e variado. Hokusai não é uma mera biografia passível de uso escolar, mas tampouco é uma pesquisa profunda da época ou do homem, parece-nos. No entanto, é possível que seja algo ainda mais complexo.
De acordo com Thierry Groensteen (L’Univers des Mangas) e Frederik L. Schodt, Shinomori terá sido um dos primeiros autores a fazer uso regular e expressivo da dupla prancha na banda desenhada moderna. No interior deste mesmo livro, o autor demonstra como é Hokusai o inventor da dupla página na tradição dos livros de prosa ilustrados no Japão. Mais: o nome do mangaka é Ishinomori, mas durante algum tempo ele mudou de nome, utilizando o de Shinomori (e outros, se não estamos em erro, se bem que não pudéssemos confirmar com exactidão). Isso em si nada tem de especial, tratando-se de um nom de plume (sendo quase de rigueur nos autores europeus). Mas a alteração do nome, no Japão, mesmo que para efeitos de assinatura de uma obra, implica ao mesmo tempo uma vontade de influir um novo ritmo, direcção ou filosofia à vida e obra. Hokusai, como é sabido, também foi mudando de nome e direcção ao longo de toda a sua vida: nasceu como Tokitarô, mudaria depois de nome para Tetsuzô, como estudante do retratista Shunshô passaria a assinar como Katsukawa Shunrô, e já depois de se chamar Hokusai e ser tornar um artista muito solicitado e admirado, adoptaria os nomes de Iitsu, e o famoso “Velho louco por desenho”. Além disso, os próprios episódios que são escolhidos neste livro - as relações com os colaboradores, os mentores, professores e discípulos, os editores, os clientes, os “leitores”, etc. -, fazem imaginar que há uma procura pela acentuação de todas as experiências da vida profissional de Hokusai que mais próximas estariam da carreira de um mangaka moderno. São algumas dessas ideias que nos fazem pensar que é como se Shinomori se “enluvasse” (procuramos aqui o efeito da palavra francesa) ao trajecto do próprio Hokusai.
A narrativa em si, que voga como as ondas do mar de Kanagawa, ao saber dos encontros de Hokusai e das suas memórias ou relatos do passado, prima por uma manipulação dos factos que se conhecem da sua vida, algumas anedotas apócrifas e mesmo hagiográficas, e possivelmente uma parte substancial de suposições e projecções. Por exemplo, um contraste com o filme Hokusai Manga, de Kaneto Shindô (1981, e tristemente traduzido para inglês como Edo Porn) será suficiente para encontrar discrepâncias em algumas informações, acontecimentos e relações. Os pais de Hokusai são desconhecidos, mas neste livro aponta-se a uma intricada novela de amor, traição e política, fazendo do pintor um descendente de um samurai “maldito”. Não conhecendo a data original deste projecto, nem tampouco as implicações destas escolhas na sociedade e na história do Japão, só poderemos imaginar que o objectivo de Shinomori é não tanto o de criar uma biografia completa e precisa, mas antes a exploração da vida do artista, do seu espírito e, por conseguinte, do que pode ser aproveitado enquanto “lição” e “modelo” para o próprio criador moderno de mangá, e para os leitores. Acima de tudo, o que está sempre na linha da frente deste livro é o modo como Hokusai se vai reinventando a si mesmo, não só alterando o seu nome - e, logo, o seu posicionamento social, na hierarquia das escolas artísticas e até no mercado - mas na sua vontade indómita de se relançar na aprendizagem. Algo que parece ter pautado a vida de Shinomori também.
Compreende-se, todavia, a mistificação do papel e obra de Hokusai. Não apenas pela camada ficcional que vai aliando as várias anedotas biográficas que repetidamente se citam sobre a vida do artista, mas sobretudo por explorar as origens das suas obsessões, assim como pela exposição da relações de causa-consequência que o autor desta mangá acentua, e sobretudo, sendo isso também alvo da mistificação da própria mangá, a ligação quase directa entre a obra de Hokusai e a banda desenhada moderna japonesa. De facto, parte do nacionalismo japonês tenta enfatizar, com a máxima das forças, a ininterrupta continuidade entre as várias tradições de pintura narrativa, ilustração de mitos e de textos literários, e outras tradições imagéticas desse país (giga, emakimono, ehon, kibyoshi) e o advento desta forma moderna da banda desenhada. Quase sempre o papel da directa e sentida influência do Ocidente é secundarizada, apesar do período em que as ponchi-e alteraram de facto modos de produção, de estética e temática, e o papel de Kitazawa Rakuten não poderia ter-se firmado como se firmou sem a sua reformulação de estratégias dos trabalhos ocidentais que estudara.
Independentemente dessa mistificação, são muitos os pormenores desta obra em que se aprendem subtilezas sobre o pensamento de Shinomori (e, eventualmente, do próprio Hokusai) sobre a sua própria arte. Um desses momentos é quando Hokusai, na companhia do escritor de literatura (muito) popular Takizawa Bakin, se preparam para o fabrico de um novo projecto: de acordo com o artista, as imagens teriam uma importância ainda mais forte do que o texto no trânsito do sentido, e ele diz “quando a obra estiver terminada, ela encontrará sempre o seu leitor!” (301). É um voto de desejo que todo o criador deseja, e de certa forma um ensejo justo: trabalhar no interior da sua própria vontade, na exigência que emerge do próprio criador ou criadora no momento do cumprimento da obra, e na segurança que existirá um público acertado. Todavia, e reforçando a nossa perspectiva, não podemos deixar de encontrar nessas palavras como que uma recriação retrospectiva de um mito: o da fundação de um tipo de livro por Hokusai, que desembocaria na mangá moderna. As discussões entre estas personagens -  que atinge um histrionismo cómico nalguns passos - são muito reveladoras. Bakin insiste que “o desenho deve servir o texto”, contrastando com a opinião de Hokusai que “sem desenhos, ninguém leria o texto”. Este é um tema muito complexo e que mereceria um estudo adequado. Não bastaria dizer que o nome de Hokusai é mais famoso do que o de Bakin, pois isso só é verdadeiro em relação ao mundo ocidental, e pela falta de traduções (e interesse, fora de um saber especializado?). Importaria antes fazer a comparação com casos ocidentais, e pensar em relações tais como Verne/Neuville-Riou, Dickens/Phiz, Karr et al./Grandville, Énault/Doré, por exemplo… Quando é que o texto se tornou mais famoso que os desenhos, e quando o contrário? Quais as razões sociais e económicas desse desequilíbrio? O facto dessas serem questões abordadas em Hokusai não são inocentes em relação às preocupações do seu autor, seguramente.
Shotaro Ishinomori, pelo menos neste livro, emprega um estilo “clássico” da banda desenhada japonesa: as figuras são redondas e fechadas, procurando cada personagem um número de atributos visíveis que as torna distintas, mesmo na presença de um Hokusai que é representado desde o nascimento à sua provecta idade. Utilizam-se silhuetas aqui e ali, assim como o contraste entre personagens simplificadas e os cenários ultra-detalhados e texturados realisticamente (padrões da madeira, dos tatami, dos tecidos). São muitos os momentos em que os efeitos de humor gráfico são procurados através dos chibi, ou de gestos histriónicos, ou de emanata convencionais. Construções dramáticas através do isolamento das personagens em fundos brancos ou negros, onde se sobrepõem igualmente as suas memórias ou medos, são correntes. Oscila-se entre momentos cómicos e outros de uma emotividade mais vincada, quer utilizando grandes planos de conjunto quer dramáticos planos aproximados dos rostos. Duplas páginas, pranchas duplas separáveis mas atravessadas por uma vinheta de lado a lado, sequências mudas e establishing shots fazem com que o leitor tenha um momento de introdução ao ambiente em questão. E, como não poderia deixar de ser, a integração de alguns dos desenhos de Hokusai (em versões simplificadas) traz à superfície do próprio livro a matéria pela qual o grande artista é conhecido - em alguns momentos até próximas da materialidade da tinta sobre papel, como na cena famosa da gigantesca pintura de Bodhidharma que Hokusai fez no templo de Gokokuji (cena também fulcral no filme citado acima); não se fazendo qualquer comentário em torno de cada um dessas imagens (salvo num ou outro episódio), elas são o próprio comentário em relação ao episódio em que se integram, corolário, consequência ou motivo de compreensão.
A arte de Ishinomori, tendo contribuído sobremaneira para a consolidação de um estilo e metodologias gráficas que são hoje vistas como “clássicas” ou mesmo “normalizadas” na banda desenhada japonesa, poderá ser diluída na oferta gigantesca da mesmidade dessa produção comercial, mas a atenção para com pequenos pormenores de composição das pranchas, o próprio tratamento das personagens, a rede de relações estabelecida, a forma como a estrutura narrativa vai criando um círculo preciso em torno da vida de Hokusai, será recompensada. Como explica o próprio Hokusai aos seus pouco inteligentes discípulos quando se encontra em viagem em torno do Fuji, para o seu famoso ciclo de estampas, desenhá-lo não é repetir sempre a mesma forma, mas descobrir como, “dando um passo ao lado, ele surge com uma outra forma completamente diferente!” ou “aspecto” (410). E acrescenta, “eu não desenho o Fuji./ Mas o homem! // É o tempo o que desenho.//(…) Quando fazemos [uma paisagem] passar pelo olhar das pessoas…/é como se não pertencesse mais ao mundo e se tornasse eterna…/Pinto o tempo que deixa a sua marca em cada instante deste mundo.” (411). De certa forma como as parábolas de Cristo, os discípulos não o entendem (mesmo com repetições), mas essa é uma estratégia para que o ouvinte ou leitor da história se sinta acima deles mesmos, e vá ao encontro da lição do mestre de forma imediata. Noutro momento, associando á representação da “grande onda”, famosíssima, Hokusai diz querer-lhe pintar “todos os rostos”… Shinomori procura ir ofertando ao seu próprio leitor todos os “aspectos” possíveis sobre Hokusai, todos os seus “rostos” (mesmo que haja escolhas judiciosas e omissões), feitos apenas de fragmentos e instantes, mas esperando que possa assim emergir uma vida, a qual, tendo passado, se pode tornar eterna.
É isso o que significa criar uma marca (grafia) a partir de uma vida (bio). 

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