Jorge Varanda foi aquilo que se pode chamar um polimata. Tirando partido de qualquer material, por mais “baixo” que parecesse, que tivesse à mão para dar corpo à arte que criou, as disciplinas atravessadas e os objectos criados são múltiplos: a exposição contempla pintura sobre papel e madeira, desenhos, biombos recortados e pintados, e aquilo a que se poderia dar o nome de instalações, assim como de filmes de animação (que importa ver com tempo, atenção e instrumentos específicos que ultrapassem as notórias limitações técnicas e lhes perscrutem o “espírito”). A banda desenhada - Varanda participou numa série de projectos e publicações, como o jornal Se7e e a revista Lx Comics - era um dos outros ingredientes, e ela não é tratada como suplemento nesta exposição, mas, bem pelo contrário, parte integrante. Mais, ela é tratada respeitando a sua especificidade expressiva: sendo o catálogo uma espécie de caixa com vários fascículos, cada um deles apresentando uma série de trabalhos mais ou menos unificados por um princípio material ou configurador, revelando desde logo a noção de série, narrativa, unidade, do autor, um deles é um fac-símile preciso desse mesmo fanzine.
Há, pensamos nós, uma sensação de que as personagens que habitam todas estas imagens se passeiam entre elas, se cruzam, dialogam. Tal como Varanda parece ter sido adepto da respingadura, do reaproveitamento, da recondicionação (hoje falar-se-ia de “reciclagem”, o que não era de todo a despropósito), da reformulação dos objectos, também as suas figuras parecem ter ganho uma espécie de autonomia ideal que lhe permite reaproveitá-los em situações diversas. Personagens com volume, com história, portanto. Talvez esta seja, porém, o nosso próprio olhar “contaminado”, formado a partir da banda desenhada, sobre todo o corpus apresentado.
O nosso texto é tão-simplesmente uma close reading d’As Quatro Gémeas (aqui usamos imagens do zine original). Uma peça teatral de um outro autor, também de banda desenhada, Copi, através de uma tradução e de “actores de papel”. O objecto circulou num grupo reduzido de amigos, em dois formatos diferentes (A3 e A4), e tentamos estudar o que significa esse “gesto caseiro”, como escrevemos, em termos de linguagem estética, materialidade, e veículo expressivo, que relação estabelece com as temáticas, as figurações e a sexualidade do texto de Copi, e outros trânsitos específicos à banda desenhada. Este pequeno melodrama acelerado e celerado de um acto, que envolve quatro mulheres cujas interrelações são desde logo problemáticas em termos de interpretação, tiram partido de uma violência tragicómica que ganha uma força inesperada nos desenhos a preto-e-branco e Varanda, devedor em alguns aspectos a Crepax, neste trabalho em particular (a nível da figuração, mas sobretudo na composição de página, pequenos pormenores técnicos, no uso da matéria verbal, etc.), mas encontrando uma voz muito própria.
Apesar de menções esparsas a este livro em livros de referência, As Quatro Gémeas não faz parte de um imaginário vivo na historiografia da banda desenhada portuguesa - já de si circunscrita em muitos aspectos e com obstáculos ainda a ultrapassar. Como perguntamos no nosso texto: “O que é tem lugar quando vemos pela primeira vez publicamente uma obra com décadas de idade? Poderá ela integrar-se numa tradição histórica retrospectivamente se não se havia inscrito nela a tempo?” Esta é uma obra dessassossegada e irrequieta que importa recuperar e integrar de pleno direito na história contemporânea da banda desenhada portuguesa, até pela dimensão de abertura e transversalidade que ela apresenta - isto é, expandindo a própria ideia e campo social da banda desenhada. É possível que a exposição de todas estas obras torne o nome de Varanda novamente num factor a ter em conta no pensamento da arte do seu tempo, e esperemos que pelo menos este seu título passe a ser igualmente redivivo.Nota: agradecimentos a Lígia Afonso, pelo convite que nos estendeu, e ao CAM/CG, por tudo o resto; a Alice Geirinhas, pela oferta do História da Digestão.

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