Estamos em crer que o tema de O pequeno deus cego é precisamente a dos paradoxos da sabedoria e da ignorância, e dos caminhos que quer um quer outro podem tecer à frente dos passos de um homem ou de uma mulher.
Este pequeno livro revela do conto - no seu sentido de género de modo, e respeitando, mesmo na sua especificidade de banda desenhada, a sua extensão, a sua concentração, o número reduzido de acções, um intervalo temporal restrito e um espaço circunscrito, o número fechado de personagens e até a focalização numa acção “simples”, que é a catábase do jovem Sem-Olhos, protagonista. A “simplicidade” a que aludimos, e o cuidado de a colocar em aspas, dever-se-á ao facto de ser passível de uma breve descrição dos factos. Sem-Olhos, também chamado de Papa-Moscas e Caganita pelas outras personagens com que se cruza, é uma criança do sexo masculino, numa China mistificada, que é obrigada pela mãe a ser uma menina (recordando a menos cruel mas igualmente traumática vida de Lord Fanny, dos The Invisibles) para que siga a tradição da família; um velho ancião, cujo nome só aprendemos no fim, desafia Sem-Olhos a rebelar-se contra essa imposição, permitindo-lhe que enfrente o dragão que o havia castrado e, dessa forma, poder reconquistar o seu próprio alvedrio e destino. Para esse efeito, o ancião “empresta-lhe” um panda, que serve aqui o propósito de animal totémico, familiar ou psicopompo.

A condição de Sem-Olhos - onde eles deveram existir só se encontra uma superfície suave de pele - não é uma impossibilidade genética, ainda que a sua deformação se apresente de um modo simétrico e, até se poderia dizer, belo. Em nenhum momento é demonstrado que ele possua qualquer tipo de capacidades perceptivas que ultrapassem essa condição; bem pelo contrário, e apesar de pequenos momentos que nos podem deixar em dúvida, apresenta-se como uma criança simples, normal, mas limitada quer por essa condição quer pelas imposições cruéis da mãe (e que passam pela deformação dos pés, que é algo objectificada e descontextualizada nesta narrativa, servindo antes como apontamento de condição). Essa criança, com a excepção dessa sua condição, normal, quer, como os outros humanos, sentir as paixões e as curiosidades que lhe pertencem. Chorar, por exemplo, é repetidamente desejado. O que a mãe impede, o ancião insiste para que procure. E o desafio está então em descer à caverna e enfrentar o dragão Wang, o Castrador, se bem que não haja um objectivo claro, digamos um ganho, da parte de Sem-Olhos, mas antes uma suspeita de manipulação da parte do ancião.
Não deixa de ser notável, portanto, como o dragão se entrega a um monólogo longo (oito páginas inteiras), não estabelecendo propriamente um diálogo com o protagonista, mas antes com uma ideia do que projecta ele ser. O dragão faz uma leitura de Sem-Olhos e segue-lhe as linhas. A inacção do “Papa-moscas” é precisamente o que faz afugentar o dragão da sua posição de superioridade. É como que um modo de mostrar que a heroicidade não necessita de ser expressa através dos costumeiros combates ou sequer de inteligências esgrimadas. Como diz o próprio ancião, também os que confiam podem ser vistos como seres com coragem, mesmo na cegueira que isso implica. O silêncio, a presença, a “cegueira” podem ser igualmente sendas de iluminação. E como quer o bom koan, essa iluminação, essa lição, não é passível nem de ser verbalizada nem de ser explicável de um modo dito racional.
Este livro, então, não é de forma alguma um Bildungsroman, não apenas pela sua fórmula narrativa curta, mas porque não se exploram as personalidades desdobradas das suas poucas personagens. Encontram-se soluções para criar vincos de vários momentos temporais, e criar ambientes espaciais diferenciados, mas eles são sempre palcos para o desenrolar da acção principal, que é a “travessia” do pequeno protagonista pelo seu teste, cuja emotividade é quase reduzida ao mínimo. É como se o conhecimento e a ignorância não fossem somente uma sombra uma da outra, mas duas superfícies confundíveis, conforme a perspectiva. Poderíamos mesmo dizer que a história segue aquelas estruturas modelares clássicas à la Joseph Campbell, mas Soares (e Serpa) sabem bem que a imitação dessa estrutura em nada sofre se se explorarem outras dimensões diferenciadoras, e é a “ignorância” do menino e o monólogo do dragão que tornam a acção deste pequeno livro num adágio à lição final.
Adenda: David Soares fez um comentário na sua página do Facebook, que passo a citar: "O Pedro diz que o tema central do livro é o Conhecimento e envereda por essa via para analisá-lo... Ora, o tema central de "O Pequeno Deus Cego" relaciona-se com o conhecimento, sim, mas é outro: o Crescimento - o crescimento através da Iniciação (crescer das Trevas para a Luz). Não quero desvirtuar a leitura que o Pedro fez, somente esclarecer, enquanto autor, qual é o tema central do livro - que, claro, permitirá sempre mais que uma leitura.". Uma vez que acreditamos (piamente) que não se deve jamais entrevistar o autor a propósito dos significados de um livro ("o que é que quis dizer com isto?"), é sempre saudável ainda assim entregar-nos a discussões com os mesmos. É verdade que o crescimento é patente em O pequeno deus cego, mas ainda assim ele parece-nos ser feito a preço alto. Seja como for, isto poderá ser uma demonstração de que a aparente simplicidade do livro só o é desse modo, aparente.
Sem comentários:
Enviar um comentário