A banda desenhada não é alheia à pornografia, mas a sua introdução em produções visíveis, comercializadas legalmente e até mesmo celebradas publicamente é algo de muito recente, podendo apontar-se, no Ocidente, para os primeiros movimentos do underground comix na década de 1960 - com autores como S. Clay Wilson e Crumb e que rapidamente atingiriam explorações histéricas com títulos tais como Bizarre Sex, Young Lust, entre tantos outros - e no eixo transformador das publicações afectas a Eric Losfeld no final dessa mesma década em França, e que permitiria a introdução de um erotismo (ou pura e simplesmente cenas de “fan service”) mais directo na banda desenhada mainstream, por um lado, e, por outro, o surgimento de pornografia no meio com distribuição comercial e “visível”, desde autores inovadores em mais do que um factor, como Guido Crepax, a outros que ainda procuram uma torção interna qualquer, como Roberto “Magnus” Raviola, àquelas mediocridades de grande sucesso, como Milo Manara ou Paolo Serpieri… Compreender-se-á igualmente que, apesar de tudo, estes autores profícuos no desenho só poderiam surgir num ambiente que lhes permitisse desenvolver os instrumentos, e a Itália parece ter sido um território perfeito, ao contrário de Portugal ou Espanha, que preferiam a “porno-chanchada”, com histórias derivativas e desenhos verdadeiramente medíocres, salvo raríssimas excepções. Em França, poder-se-ia falar de Varenne, de Pichard, de Forest. A aliança entre a pornografia e o humor é vetusta, das Tijuana Bibles a projectos como os de Wallace Wood, Firkin de Hunt Emerson e Tim Manley, ou os volumes Dirty Stories, a alguns dos títulos da Eros Comix. E a procura por nichos de mercado especializados (e por vezes na corda bamba da legalidade) não está ausente desta equação tampouco, desde as Bondage Fairies à Softpaw Magazine.
Porém, qualquer tentativa em criar pornografia na banda desenhada mais interessante, quer do ponto de vista narrativo, político, gráfico ou até meramente sexual - quer dizer, que explore a sexualidade ou as relações sexuais de uma forma mais cabal, integrada, variada e subtil - é não só rara como difícil de ocorrer. Existirão alguns casos e algumas das histórias de True Porn ou da XXX Strip Burger que poderão estar próximos desse fim, ou a obra de Alex Barbier, mas a “universalidade” sexual é uma contradição de termos, desde logo… E se envolver questões de ética, por exemplo, a discussão torna-se ainda mais complexa, apaixonada e difícil, sobretudo com trabalhos como Elles de Frédéric Boilet ou Paying For It de Chester Brown. Celluloid, ainda assim, é uma dessas tentativas, em que Dave McKean parece reunir todas as suas forças e metodologias criativas para nos ofertar uma experiência de leitura que seja, a um só tempo, titilante, apelativa, aberta e subtil.


Se esta descrição é longa demais, e revela em demasia a história, a verdade é que a sua leitura analítica exige um cuidado particular, precisamente para entender que forças estão patentes nesta obra de McKean.
Esses aspectos estruturais da história fazem recordar narratemas comuns, e que encontraremos desde Alice no País das Maravilhas a, mais óbvio neste campo, o filme Behind the Green Door: A passagem para um outro mundo, aparentemente paralelo ao real, serve para dar a ver a protagonista e entrar numa esfera que tanto pode ser vista como sendo a das fantasias, dos sonhos, e ao mesmo tempo servirá de uma “defesa” do real. No entanto, uma vez que as passagens propriamente ditas são ora “horizontais”, dando a sensação de simplesmente se atravessar para um local à frente - como nos casos em que a protagonista atravessa - ou “de nível”, em que parece entrar numa esfera espacial ou existencial interior à de que parte - como no caso das projecções nas paredes - essa ideia de viagem torna-se complexa e impossível de cartografar. Assim, deveremos apreciar cada “episódio” como se fosse um bloco específico de sensações, a ser apreciado em si mesmo. A ausência de texto apenas confirma a ideia da pulsão escópica contínua. Afinal, um livro que não tem palavras parece convidar apenas ao olhar (é claro que a leitura ocorre, pois cognitivamente fazemos associações e gestão dos acontecimentos que se desenrolam com as personagens, mas ela é, pelo menos aparentemente, suspensa; dir-se-ia, comummente, “não tem história”, é “muda”, etc.), podendo mesmo tornar-se mais “rápida” de ler, ou, por outras palavras, convidar ao frenesim de Tom Gunning, citado por Linda Williams no título indicado.

Uma vez que a esmagadora maioria da pornografia é produzida por agentes e dedicada a um público heteronormativo, e sobretudo masculino, é mais raro encontrar produções pornográficas fora do âmbito das sexualidades minoritárias que seja capaz de criar discursos não apenas inovadores como para além da mera defesa do próprio género (se o quisermos chamar assim, se bem que não seja a palavra apropriada). Seria expectável encontrar algum tipo de “crescimento” ou complexificação ao longo da diegese, mas não nos parece que isso ocorra. A mulher não ganha um papel cada vez mais activo, nem a sua posição - mesmo no interior da variedade sexual - aumenta em relação aos seus parceiros sexuais. Seria interessante encontrar nas dimensões materiais de cada método gráfico uma espécie de avanço, e até certo ponto isso pode ser argumentado, mas mesmo tendo em conta que a cena final mostra a protagonista na sua forma real (em relação à nossa realidade) e fotográfica, ela não ganha mais “volume”, uma vez que se apresenta como uma actriz, surpresa em descobrir um público a aplaudi-la. Quer dizer, se ela é sujeito observador no princípio, passa a parte activa nalguns episódios mas acaba novamente observada (e observando?). O facto de usar máscaras e o público também, aliada a um porta-chaves que remete a Paris, faz apenas recordar clubes reservados e festas particulares BDSM nessa cidade, cuja secretividade e jogos eróticos fazem aumentar a disponibilidade, a liberdade de gestos, a ultrapassagem de barreiras sociais, mas ao mesmo tempo poderá acarretar a impossibilidade da comunicação entre personalidades totalmente alertas ao outro. Por outras palavras, as relações sexuais desprovidas da palavra, da personalidade, e por um total e abandonado contacto físico que tipo de vantagens e problemas acarreta? Celluloid não responde a essas e outras questões, mas contribui para a sua formulação.

Não podemos operar uma separação brutal entre as técnicas artísticas empregadas por McKean do que elas mostram, mas é isso o que faremos, por necessidade analítica. Como é de esperar deste artista pluridisciplinar, ele emprega todas as ferramentas que tem ao seu dispor, desde o desenho de linha, que tanto atravessa a sua famosa abordagem estilizada-expressionista (por vezes recordando Egon Schiele na figuração esquálida, feita de linhas finas, e tons cálidos, mas numa outra fase fazendo pensar num Fernand Léger diluído), empregando pincel, caneta ou grafite, à fotografia, sempre trabalhada de algum modo, digitalmente ou não, em sequências ou isoladas, a cores e nitidez absoluta ou a preto-e-branco e com um alto grau de grão (imitando o filme de 8 ou 16 mm que dá início à diluição do mundo), à manipulação digital de imagens, passando pela colagem, utilização de objectos (que regressam ou se tornam em símbolos recorrentes, ou então ganham uma presença destacada no plano de composição), passando por o que parece ser pintura. Cromaticamente, Celluloid também é variado: existem imagens a preto-e-branco e cinzentos, segundas cores (vermelho) sobre composições a negros densos, sépias, ilustrações coloridas que tiram partido de uma escolha limitada de cores mas explorando os seus tons, a outras que manipulam texturas e cores reais (fotografia e digitalização) para criar composições ou estruturas impactantes. A associação entre certos frutos e o sexo da protagonista é, nalguns casos, um cliché bastas vezes repetido - maracujás, papaias, figos abertos a meio, expondo ou espalhando as sementes e os sucos, uma pêra cortada em quartos e mal-ajustada - mas ainda que sem a exuberância e a efectiva eroticização do não-humano de Nobuyoshi Araki, por exemplo, serve o propósito narrativo, episódico, das várias “alianças” da personagem principal.


Não deixa de ser de uma extrema significância que o autor faça um livro de banda desenhada intitulado “Celulóide” e empregue a fotografia para transmitir esse outro meio. Acabamos por ter aqui um exercício multidisciplinar que usa o corpo, objecto visual de contemplação e de manipulação erótica, e mais especificamente a pessoa e o prazer de uma mulher, para repensar todas estas questões. Ou seja, McKean cria não apenas uma “máquina de desejo”, como querem Deleuze e Guattari, que se reformula sem cessar, que procura várias intensidades e personalidades nele mesmo (expressos pelos vários “estilos” e pelos vários “parceiros”, mas também pelos “corpos sem órgãos” e os “órgãos sem corpo” que se vão formando na sua passagem), mas ainda uma “máquina pensante”, fazendo com que Celluloid possa dirigir-se igualmente ao mais importante órgão sexual do ser humano: o cérebro.
2 comentários:
Muita parra e pouca uva!
Ao contrário do caro Anónimo, cuja argumentação é concisa, directa e claríssima!
Obrigado,
Pedro Moura
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