Na lição influente de G. Spivak, a noção de representação desdobra-se em “re-apresentar”, “expor”, “descrever” (a autora cita os termos em alemão, aqui darstellen), e num outro sentido, literalmente político, de “representação” (neste caso, vertreten), como diremos de um deputado da Assembleia. Esse segundo sentido é levado a cabo nessas narrativas na medida em que as representações que surgiam nesses livros - de todos os povos que não “gauleses” contactados pelos protagonistas - assumiam um papel nocivo de uma quase absoluta substituição política, isto é, um “falar em nome de” alguém. É assim que emergem as narrativas normativas, que obliteram as mais das vezes sequer a possibilidade de outra narrativa (que passa a ser vista como contra-narrativa, ou narrativa de resistência).
Sem querer reduzir tudo a uma mera descrição superficial e categórica, poderíamos dizer que existem uma espécie de graus conforme a maneira das vozes se expressarem no interior de uma narrativa. Esse eixo de Alix-Astérix seria descritível como um “falo eu por ti na minha banda desenhada” senão mesmo um “falo eu por um tu que invento na minha banda desenhada” (quase toda a história da banda desenhada “clássica”). Por outro lado, projectos de reportagem e entrevistas (como os casos de Sacco, Squarzoni, Davodeau, Baudoin-Troub’s) criam a possibilidade de um palco de expressão para as perspectivas dos outros, não se procurando naturalizá-lo através do modo discursivo - seria, portanto, um “tu falas por ti na minha banda desenhada”. Há, claro está, processos em que se criam no interior da “naturalidade” do modo discursivo da banda desenhada a presença do outro que é ele-mesmo, uma espécie de escavar no interior de uma arte, espaço social privilegiado e exponencial, espaço para a reivindicação de uma voz própria em nome daqueles que haviam até à data sido subalternizados (são os casos de muitos autores das diásporas pós-coloniais vivendo nas antigas metrópoles, como Farid Boudjellal, Kamel Khélif, Yvan Alagbé, ou então Marjane Satrapi) - verificando-se então um “eu falo por mim na minha banda desenhada”. (Estas considerações foram alvo de dois trabalhos que desenvolvemos em contextos académicos e que atempadamente divulgaremos).
Contemporaneamente, os géneros da banda desenhada têm-se multiplicado e diversificado, o que é um sinal positivo e que pode ainda polinizar-se mais. Mas ao mesmo tempo isso pode levar a certos casos ambíguos e que, se aparentemente parecem revestir-se de um gesto político e cultural informado, por vezes poderão fazer resvalar as coisas em direcções menos desejáveis numa sociedade tolerante, aberta e inteligente. Daquelas categorias apontadas - que não servem qualquer propósito senão o heurístico destas considerações -, como identificar aquela em que Faire le Mur se integraria melhor? Ou como compreender a figura do jovem escravo do recente livro de Sfar, Les Lumières de la France (de que falaremos em breve)? Ou o polémico Habibi, de Craig Thompson (sobre o qual batalhamos para escrever há meses)?
Ou, finalmente, este Soraïa?
Soraïa é um livro de ficção, mas cresce no quadro de observações, estudos e preocupações do autor, como se vê. É impossível determinar se a história é decalcada sobre um caso singular real, ou vários concatenados, ou se construído; o resultado é uma ficção e é assim que o leremos, com todos os problemas que isso acarreta. Diegeticamente, é um livro sem grande complexidade narrativa, pois o que importa aqui não é a pirotecnia e a capacidade do autor tecer uma teia convoluta, mas antes a devolução de uma visão sobre uma sociedade precisa, a do Marrocos moderno. É sempre fácil dizer uma “sociedade de contrastes” ou “em transição”, mas se a primeira é um cliché totalmente esvaziado e aplicado/aplicável a praticamente todas as sociedades humanas (basta que existam duas pessoas, ou se calhar até uma) - dependendo somente que elementos eleger para depois mostrá-los como contrastes ou mesmo antagónicos -, a segunda é usualmente preferida a partir de uma posição na qual se julga que o estádio para o qual se transita é melhor, e as mais das vezes idêntico a à de quem a profere.
Na verdade, não compreendemos muito bem em que categoria deveríamos entender este gesto do autor. Por um lado, há uma claríssima vontade em explorar a vivência diária, realista, nítida, dos marroquinos contemporâneos que, nas suas diferenças culturais internas, habitam os dias de hoje, mas por outro há escolhas narrativas e representacionais que as tornam problemáticas, mostrando então os escolhos, antes dizendo, de falar em nome de outrem.
Não existindo qualquer tipo de narração externa, mas havendo estratégias de focalização que apontam para um narrador omnisciente e com a capacidade de gerir vários momentos, perspectivas e até humores, o leitor terá de se concentrar nos diálogos, e entender a partir deles as formas como as relações entre as personagens se constroem. “O que é um muçulmano?” é uma espécie de baixo contínuo que atravessa o livro, e vai sendo respondido de várias maneiras, ao ponto do “bom muçulmano” ganhar corpo precisamente em Mehdi e no passador.
A missão do jovem Mehdi é movida por uma razão profundamente emotiva, dedicada, que em tudo contrasta com todas as outras personagens, o que impede a Soraïa de se tornar uma obra com matizes tão realistas quanto a sua matéria plástica. Apesar das preocupações claríssimas do autor, de nos devolver uma imagem real deste Marrocos, este desequilíbrio actancial e representacional cria dúvidas dos seus contornos. Há um limite para a pureza, a candura e a inocência num mundo tão negro como este. É essa a razão que leva a que o livro apresente na contra-capa a cena da queda de Mehdi, uma queda literal mas que também poderá ser interpretada figurativamente, e é um contraponto ao olhar de escrutínio, procura e esperançoso que vemos na capa.
Não podemos preferir, e muito menos exigir, que o autor tivesse optado por outras formas. Todavia, onde o género da reportagem traz quase sempre a inscrição do próprio autor no contexto e processo de trabalho, colocando-o numa posição privilegiada mas contextualizada, a ficção opera numa ilusão de perspectiva mais acabada, e por isso mais conducente a surgir como “verdade” (corroborado pela omnisciência de focalização). Encontra-se assim complicada a tarefa crítica da compreensão deste livro, se se trata de um retrato desequilibrado de uma realidade que é vivida na pele por pessoas reais num mundo real (e, logo, um “conto eu a tua história”), mas se encontra aqui reduzido a um melodrama com um número eventualmente menor dos matizes que poderiam ser mostrados, ou um exercício justo de ficcionalização de uma realidade que deve ser delatada e combatida.
Notas: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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