1 de maio de 2012

Fragmentos. Topedro (edição de autor)

É muito sintomático que o Primeiro-Ministro Passos Coelho diga que aqueles que não parecem concordar com as políticas e direcção do Governo sejam aqueles que “não aceitam a realidade tal como ela é”. O que está em causa nessa afirmação e abisma no perigo não é existirem posicionamentos políticos diferentes: é, por existirem, caírem eles num grupo de pessoas às quais falha a visão da realidade. Isto parece demonstrar a existência de uma realidade consensual, objectiva, tangível e transcendente aos próprios mecanismos de criação que a sua descrição e percepção implicam. Por outras palavras, e corrigindo essa ideia totalitária (ou da novilíngua a que cada vez mais os políticos fazem uso?), a realidade é aquilo que com ela fazemos.
Parece ser essa a temática de Fragmentos, o novo gesto editorial de topedro, dando continuidade a uma actividade constante (se mostramos apenas a capa, é porque o leitor pode visitar esta página do Facebook onde poderão ler na íntegra este projecto). Na verdade, o título é enganador, uma vez que o que se apresenta neste curto livro é um discurso fluido, contínuo e coeso. O texto, escrito à mão, parte da voz de um narrador aparentemente externo e que se dirige a um “tu” que tanto é preenchido pelo homem que vemos a levantar-se e preparando-se para uma jornada como para o narratário: a decisão de confundir ambos ou preencher os papéis de modo diferente é uma opção aberta. Mas ao mesmo tempo, poder-se-ia imaginar, sem grandes dificuldades, que o narrador é essa mesma personagem, ora dirigindo-se ao narratário que o observa, ora a si mesmo enquanto desdobramento de introspecção.
Cada página apresenta apenas um desenho: numa primeira fase, representam-se cenas da vida quotidiana: levantar-se, tomar o pequeno-almoço, alguns afazeres caseiros de trabalho, a higiene, sair de casa. Um interregno desse ritual é interrompido por um rol de filósofos e pensadores (Schopenhauer, Derrida, Wittgenstein, Freud), com curtas frases jocosas reduzindo ad absurdum as suas respectivas Weltanschauungen. E um terceiro e último ciclo multiplica-se em cenas de um quotidiano nacional que ausculta as tensões sociais e económicas, as estratégias políticas e financeiras, e que tanto revelam de realista como de generalista.
Tal como a capa e a contracapa nos ajudam a pensar, tratam-se das reflexões de um homem que já não é modelo central do universo (de Vitrúvio), que já não consegue apelar a uma visão de uma “realidade tal como ela é”, mas, cansando, desencantado e desiludido - nos sentidos negativo e positivo da palavra -, tenta tecer algum tipo de sentido ainda na crise de valores humanos, democráticos, dialogantes, em que se encontra mergulhado. Se não conseguimos desvendar o sentido profundo de todas as afirmações - por exemplo, como devemos entender a lição, decerto importante, de “as vítimas não são moralmente superiores aos opressores” e que “sendo mais fracas [tiveram] menos oportunidades de serem cruéis” (pg. 32) estar associada a uma imagem televisiva de uma aparente agressão conjugal? Que a violência, se possível invertida, seria idêntica? Afinal existe comutabilidade na opressão? Não estamos seguros -, outras há que vão ao âmago do problema maior em causa: “Quando a superioridade moral da ordem e a superioridade material dos que a detêm se identificam, qualquer ordem se torna intrinsecamente precária; torna os seus detentores nervosos e os seus súbditos invejosos” (pg. 33). De facto, nesse exercício de inveja, os “súbditos” revelam uma “identidade moral”, mas a brecha que se instala nessa tensão é de facto perigosa.
Este breve ensaio visual interroga-se pela ausência dos “fundamentos éticos”, da “prática do bem”, da “empatia”, palavras e conceitos que parecem ter sido esvaziados com o tempo com a ideia de um relativismo que apenas tem servido não à aprendizagem de outras mundividências, nem à partilha de experiências diferentes nem à aproximação dos seres humanos, mas a uma cada vez mais entrincheirada posição das “necessidades contingentes”, da realpolitik, do desvio das ideologias (logo, até das ideias). Enfim, no tal mergulho na “realidade tal qual como ela é”. não é por acaso que o slogan “a vida tal como ela é” seja a de um programa que em muitos poucos elementos correspondia à experiência mais quotidiana, normalizada e enraizada na vida dos seus próprios telespectadores…
Fragmentos não oferece, como é de esperar, “soluções”. Mas oferece, e talvez seja esse o fragmento anunciado, uma breve oportunidade para ponderar na possibilidade de uma solução.
Nota: agradecimentos ao autor, pelo envio do livro.

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