3 de maio de 2012

La bande dessinée: une médiaculture. Éric Maigret e Matteo Stefanelli, dir. (Armand Colin/Ina Éditions)

Este volume é uma colecção de ensaios originais, coordenados entre si, apresentando várias perspectivas diferentes mas cujo fito é convergirem numa visão globalizante e informada do estado da arte da banda desenhada, ou melhor dizendo, da sua recepção crítica, ensaística, teórica e académica (factores esses que se podem combinar ou confundir entre si). A introdução, assinada por Éric Maigret, que não só dirige a colecção em que este livro se integra, como co-assinou o volume que a estreou (Penser les Médiacultures) e ainda parece ter fundado este conceito operativo de “médiacultura”, explica que estes ensaios procuram atingir “uma terceira posição em relação àquelas outras que podemos qualificar como ‘denunciadora’ e ‘militante’,  verdadeiras irmãs gémeas do século XX. Esta terceira posição, que poderíamos qualificar de ‘construtivista’, recusa a limitação identitária da banda desenhada e propõe uma abertura de campo dos possíveis” (pg. 9). O livro reúne então, para além dos directores do projecto, nomes tais como os de Thierry Smolderen, Xavier Guilbert, Gilles Ciment, Olivier Vanhée, Philippe Marion, Jan Baetens e Ian Gordon, quase todos familiares no campo dos Estudos de Banda Desenhada contemporâneos, abordando temas tais como a história da investigação especializada, a construção teórica, a metodologia histórica, as questões de divisão do mercado, a legitimidade e as práticas culturais, as especificidades gráficas, materiais e narrativas, as relações com a literatura e o cinema, cada qual prática e preocupação correntes dos autores indicados. Estes textos, que constituem capítulos autónomos e podem ser lidos isoladamente, cada qual com a sua bibliografia, estão organizados em três grandes partes, que correspondem por sua vez a três grandes perspectivas disciplinares sobre a banda desenhada: “Políticas e história”, “Práticas e públicos”, “Poética e transmedialidade”. M. Stefanelli teve a amabilidade de responder a um par de perguntas, que também podem servir de introdução ao livro, e encontrarão as suas respostas adiante.
Cada ensaio tenta apresentar um balanço dos estudos existentes, ainda que não de forma exaustiva, sobre os temas específicos abordados, revelando os becos sem saída a  que muitas vezes levaram, ou os impasses dos quais não se sai, muitas vezes por se partir sempre dos mesmos pressupostos, sem os colocar em questão criticamente, como é o caso do chamado domínio linguístico dos estudos da banda desenhada. Como escreve Maigret, numa espécie de conclusão, “ler uma banda desenhada não pode equivaler a ler um texto e uma página não pode ser tratada como um objecto estático em relação somente a uma teoria da narração (e qual delas?)” (57). Cada um destes ensaios apresenta em si mesmo todo um complexo edifício de referências, de argumentação, e de construção original, e seria muito difícil dar conta de todos eles (e muito mais de querer-lhes aportar algo de novo). No entanto, quer numa primeira abordagem quer no cômputo final, este volume parece-nos um contributo fundamental no estudo da área. Matteo Stefanelli, na conclusão, descreve a banda desenhada como uma “forma cultural historicamente anfíbia, mediática e pré-mediática”, libertando-a portanto de certo tipo de determinações, mas ainda assim permitindo que se englobem “certos dispositivos - tecnológicos e sociais” (263).
Tentemos algumas brevíssimas súmulas. Maigret apresenta uma sócio-história da banda desenhada muito equilibrada, que tenta ir para além dos factores essencialistas muitas vezes apontados (autores, origens ab ovo, transversalidades transhistóricas, etc.), identificando antes uma configuração ou um fluxo no cruzamento de três condições, que analisa: a secularização e emancipação da imagem, o desenvolvimento do individualismo e as transformações políticas a ele inerentes, e a “generalização das pesquisas artísticas no contexto de uma industrialização mediática, do capitalismo editorial e da imprensa” (68).
Smolderen procura não essencializar a emergência da banda desenhada mas antes discriminar formas de a identificar em diferença em relação a outras linguagens, com as quais ainda assim mantém algum tipo de relação, sempre tendo em mente que a “abordagem poligráfica” (que ele havia apresentado antes, especificamente em Naissances…) “é aberta” (88).
Guilbert utiliza instrumentos económicos e estatísticos para fazer um retrato geral, mas exacto, dos três grandes pólos de produção mundiais de banda desenhada, os Estados Unidos, a França e o Japão. A leitura destes dados poderá corrigir muitas  das ideias feitas existentes sobre cada um desses centros, ao mesmo tempo que poderão matizar as generalidades de os tornar corpos estanques em si mesmos.
Ciment faz um retrato da situação francesa face aos poderes decisórios políticos, campanhas de divulgação, estratégias mercantis, integração em estudos sociais, etc., para compreender o estado da legitimação cultural da banda desenhada no seu país (e que poderão revelar-se úteis para lançar as bases de investigações análogas noutros países, como Portugal, apesar das grandes distâncias a todos os níveis). E um dos desejos que apresenta parece ir além da mera inclusão da banda desenhada enquanto factor adicional dessas mesmas práticas culturais, para ir ao encontro do desdobramento interno e diferenciação do próprio campo: “seria bom que [esses estudos] a incluíssem sempre [à banda desenhada],  mas é melhor não sonhar que eles distingam entre os diversos géneros e categorias da banda desenhada…” (127). Mas porque não sonhar? Isso revelar-se-ia de facto mais equilibrado em vez de continuarmos a ler “o género da banda desenhada” ou “essa arte das massas” ou “como toda a cultura popular…”, etc.
Marion, estranhamente, apresenta uma algo redutora história, cujos exemplos ajudam à sua visão, mas como será de esperar atinge alguns dos pontos que permitem identificar a ultrapassar as delimitações que têm sido impostas ao pensamento sobre a banda desenhada, muitas vezes instituídas pelos próprios “entusiastas da bd”… E avança: “Nomear um meio [média], é contribuir para a sua identificação (a destacar-lhe a ‘medialidade’, a assinalar-lhe a singularidade) e é construir-lhe, solidariamente, uma identidade, o que não deixa de produzir, por vezes, efeitos teleológicos” (185). Marion refere-se aqui ao termo clássico empregue em chinês para descrever os objectos similares à nossa banda desenhada, “lian huan hua”, e vai navegando por outros termos noutras línguas, demonstrando como cada termo implica uma perspectiva, logo uma natureza do olhar e consideração, logo um objecto diferenciado. Um ciclo que se quebra pela consideração da banda desenhada enquanto “federação de séries culturais”, uma das secções deste capítulo: isto é, um feixe de uma óptica sincrónica, diacrónica e genealógica, em “novas modelizações” e o que Marion chama de uma “heterocronia” (187 e ss.).
Jan Baetens, como sempre, mostra como o estudo da banda desenhada a partir de alguns instrumentos provindos de outras áreas - neste caso a literatura - pode também informar essa outra área: “a aspiração do romance gráfico a aceder ao estatuto de texto literário ultrapassa, não obstante, o desejo simples de oferecer um equivalente visual de procedimentos textuais que, de resto, continuam a ressoar noutros locais. O verdadeiro romance gráfico [Baetens parte de The Cage para explorar especificidades expressivas que vão além das adaptações, por mais brilhantes que possam ser] vai mais longe, em primeiro lugar porque tenta impor uma forma de contar que evita a palavra, em segundo lugar porque modifica a nossa visão da própria literatura” (212).
Stefanelli e Gordon ultrapassam aquelas listas sensaboronas que se limitam a indicar onde e quando se verificaram versões de matéria narrativa ou iconográfica passadas entre o cinema e a banda desenhada, para estudarem “a questão do contexto e da experiência, abrindo a via a tomar em conta de forma aprofundada o feixe de determinações sociais no qual os dois meios têm lugar” (Stefanelli, 217). Gordon cita também Henry Jenkins para debater a “maré de práticas” da cultura de convergência.
Maigret, procurando o equilíbrio entre o estudo dos media e uma mais larga consideração pela teoria da cultura, explicita como “vivemos num mundo em que a norma distintiva [ecos de Bourdieu] é profundamente contestada, sob as múltiplas formas do multiculturalismo, sem que uma reinversão derradeira se produza, ou que se opere uma dissolução dessa norma em perpétua recomposição. (…) é provável que se tenha de falar de uma cultura pós-legítima que integre as dimensões contraditórias da emancipação de uma norma que não quer, de todo o modo, morrer” (136). A banda desenhada, portanto, seria entendida como uma dessas culturas, que em si mesma apresenta várias facetas e vertentes, entre as quais outras tantas que se multiplicam em mais variedades, como por exemplo, a da graphic novel/romance gráfico, em si mesmo “objecto polissémico e multiprático” (142). Ainda de acordo com Maigret, a emancipação deste objecto só é possível na aceitação dessa multiplicidade, que atinge um “socialismo” no sentido que Stuart Hall havia dado à palavra. Essa diversidade e esse socialismo de formas é respeitado em La bande dessinée: une médiaculture, neste feliz e equilibrado encontro entre tantas vozes díspares.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro, e a Matteo Stefanelli pela ajuda, simpatia e pelas respostas que poderão ler aqui.

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