O texto que se segue é da autoria
de Thierry Groensteen. Tendo nós publicado o nosso artigo sobre o último livro
de Renaud Chavanne, Composition de la bande dessinée, e a entrevista então feita, no mais recente número do International Journal of Comic Art, em inglês,
naturalmente, Groensteen teve acesso a ele. Nessa leitura, o teórico francês
apercebeu-se de incorrecções na discussão tida, e exerceu o seu direito à
resposta. É ela que se apresenta aqui em baixo. Traduzimo-la para inglês, para
que venha a ser publicada no próximo número do IJOCA, mas aproveitamos também para a disponibilizar junto ao nosso
público, considerando ser justo fazê-lo, ainda que não acrescentemos quaisquer
comentários, exceptuando esta nota inicial. Esperando que os mal-entendidos aqui
implicados não tenham sido suscitados ou agravados pela nossa má interpretação
ou intervenção, ficam as palavras de Groensteen.
“Na entrevista que
Renaud Chavanne deu a Pedro Moura, publicada no último número do IJOCA, o meu colega estabeleceu
paralelos entre a sua obra, Composition
de la bande dessinée (2010), e o meu estudo anterior, Système de la bande dessinée (1999).
“Uma vez que não me
reconheço totalmente na maneira como o Sr. Chavanne dá conta das minhas
propostas teóricas, desejaria providenciar aqui – sem qualquer polémica –
alguns esclarecimentos, e agradeço à redacção do IJOCA por acolhê-los.
“Para começar,
permito-me apontar o quão surpreendente é que Renaud Chavanne, no seu livro,
jamais faça referência aos conceitos propostos pelos seus predecessores que já
haviam estudado a questão da ocupação do espaço da página, em particular Benoît
Peeters e eu mesmo. Poderíamps esperar
que ele debatesse as nossas propostas, mas ele prefere reinventar o seu
aparelho teórico ex nihilo, como se
fosse a primeira pessoa a inclinar-se sobre o assunto.
“Já havia escrito
em Bande dessinée et narration (2011)
que achava lamentável que Chavanne tivesse escolhido o termo ‘composição’ para
designar aquilo que é usualmente chamado em francês de mise en page [lit. “construção da página”]. Essa escolha lexical
leva, com efeito, ao inconveniente de tornar essa palavra, composição, indisponível para designar a disposição de motivos no interior da imagem, a oposição de
massas, a organização de linhas de força, etc., que é o seu emprego usual.
“Na entrevista com
Pedro Moura, Chavanne dá a impressão de acreditar que ‘composição’ é o
equivalente daquilo que eu havia chamado de ‘espácio-topia’ [spatio-topie], e que a ‘mise en page’ é,
nos meus escrito, a transcrição concreta, para cada prancha, das escolhas que revelam
da espácio-topia. Essa apresentação, porém, não é de todo exacta. Para começo, a
espácio-topia não é, nos meus escritos, um conceito operacional. É tão-simplesmente
uma palavra composta, uma categoria abstracta que se propõe num momento
preciso, para ter em conta em conjunto
duas dimensões que são de diferente natureza: aquela do espaço (caracterizada
por um formato e uma superfície) e aquela de um lugar (que designa uma
colocação precisa na página e no livro). Como tentei demonstrar que essas duas
dimensões eram complementares, precisava de um termo que permitisse frisar essa
articulação. Daí, espácio-topia. Mas
para tudo aquilo que revela da organização da página (a que Chavanne chama de
composição), o meu conceito é realmente, desde o início, o da mise en page, o qual entra num paradigma
coerente com os outros dois conceitos que são a découpage [o “corte”] e a tressage
[o “entraçamento”].
“Eu falo do sistema
espácio-tópico quando examino, uma a uma, as unidades espaciais da linguagem da
banda desenhada: a vinheta, o balão, a página, porque com efeito estas
unidades, quando juntas, fazem um sistema.
“Em suma, na sua
apresentação das minhas propostas teóricas, Chavanne procura introduzir
confusão onde ela não existe.
“O ponto forte do
livro de Renaud Chavanne, a que me naturalmente curvo, é a magnífica
multiplicidade de exemplos de pranchas que ele convoca e analisa. É verdade que
Système de la bande dessinée tem
muitas poucas análises de caso. Mas essa é uma questão que, em primeiro lugar,
deveu-se a circunstâncias editoriais: a colecção que acolheu o meu livro não
costuma ter ilustrações nenhumas, e foi preciso batalhar para conseguir
introduzir uma dezena. (Foi o editor que escolheu colocar o meu livro nessa
série, não eu). De seguida, os objectivos dos nossos livros diferem (Chavanne
trata de uma questão precisa, ao passo que eu abordo questões bem mais
diversas). E finalmente, sobre o plano metodológico, eu acho mais interessante
regressar várias vezes sobre os mesmos exemplos para poder fazer leituras
parciais sucessivas que mostram tudo aquilo que se pode tirar de uma mesma
página de banda desenhada.
“Chavanne aponta o
facto de que eu não reciclei muito os meus próprios conceitos nos meus escritos
que se seguiram. Na verdade, faço a distinção entre obras teóricas, livros de
arte (L’Art d’Alain Saint-Ogan), e
obras de vulgarização (La bande dessinée,mode d’emploi), ou aquelas que se dedicam a um tema iconográfico preciso
(como o rosto humano no caso de Lignes de
vie). Penso que não seria muito elegante da minha parte forçar por todos
eles um arsenal teórico complexo que teria de explicar a cada passo. Mas ele
pode ficar descansado: eu sirvo-me deles quando a ocasião se proporciona ou
quando a necessidade se faz sentir. Por exemplo, no meu estudo de The Cage, de Martin Vaughn-James, eu
mostro como essa obra se constrói como nenhuma outra sobre a operação a que
havia chamado tressage, um conceito
sobre o qual, de resto, me encontro precisamente a escrever para um novo estudo
que a expandirá e explicará com maior clareza.
“Uma última
rectificação, para terminar: nunca fui director do CNBDI, mas apenas director
do Musée de la bande dessinée, que é um dos departamentos que compõem o CNBDI.”
30 de julho de 2012
Resposta de Thierry Groensteen a Renaud Chavanne.
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Pedro Moura
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2:02 p.m.
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Etiquetas: Academia, Colaborações
27 de julho de 2012
Tinta nos Nervos nos X Troféus Central Comics
Serve o presente post para indicar aos interessados que o catálogo da exposição Tinta nos Nervos se encontra a concurso na categoria "Melhor Publicação Técnica" dos últimos Troféus Central Comics (os X). Sendo público sermos um dos três membros do júri (este ano, excepcionalmente, reduzido), penso não ser grave fazer aqui alarde disso. Estão desde já convidados a participar e votarem em todas as categorias e trabalhos a concurso (boletim aqui), naquele que é o único prémio de público desta área em Portugal, com os seus desequilíbrios inevitáveis, mas que têm sido melhorados e, seja como for, é uma oportunidade única. Participem de forma livre e ponderada, com excepção da categoria indicada, na qual, enquanto leitores deste espaço, levam um "vale" obrigatório... Obrigado.
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Pedro Moura
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12:26 p.m.
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23 de julho de 2012
Quatro livros em torno de L’Association
A novela das transformações dos
últimos anos desta plataforma editorial, com saídas e entradas, regressos e
greves, coups e berraria, pública ou não, é demasiado intricada para ser
transformada num fio condutor único e inócuo. Talvez o que interesse é fazer um
balanço dos seus mais de vinte anos de existência, desta associação dedicada “à
espera de um polvo de uma banda desenhada particular e inovadora, seja por meio
da reprodutibilidade ou de qualquer outro meio (exposições, debates, etc.)”,
como rezam os estatutos (reproduzidos na íntegra em Utopie, e mitificadods
por Ayroles, cf. adiante). Aquela
expressão do “polvo” deve-se entender pelo facto de que na sua imediata
pré-história se tratava de L’Association pour L’Apologie du Neuvième Art Libre
(AANAL), fundada por Stanislas, Konture e Menu (em 1984, e associado ao fanzine
Lynx à tifs), e depois, em 1990, torna-se então L’Association à la
Pulpe. Esse nome também é notável pelo símbolo escolhido, uma hidra com tantas
cabeças quanto os seus fundadores-autores, de sete passando imediatamente para
seis, referentes a David B., Lewis Trondheim, Jean-Christophe Menu, Stanislas,
Killoffer e Mattt Konture.
Importante é a contextualização
da l’Association não enquanto gesto absoluto – inédito, irrepetível, singular,
isolado – mas como parte de um tecido de continuidades, históricas e de
afinidades editoriais e estéticas. Daí que o primeiro texto seja dedicado não à
l’Association mas à Futuropolis, que pode ser vista, a um só tempo, como primeiro
passo na direcção do que a Association cumpriria, como porto de abrigo aos
autores na sua juventude e aprendizagem, e como eixo de transformação e
plataforma de lançamento (e até de regresso, se compreendermos a aliança entre
Menu pós-Association com Robial na L’apocalypse). Mas tem que se compreender
que essa fase, de uma “contra-cultura interna” à banda desenhada nos anos 1970,
e como muito bem a caracteriza uma expressão de Björn-Olav Dozo, foi de facto
uma “autonomização inconclusa da banda desenhada” (43). Por outro lado, Erwin
Dejasse não nos deixa esquecer a relação íntima, quase confundível, com as
éditions Cornélius, com a qual dividiam espaço, distribuidora, autores e “rede
social”. Como escreve Menu no seu livro (de que falaremos a seguir), no momento
da fundação da l’Association, “há já uma História anterior, uma experiência
consequente ao nível do Colectivo, uma relativo conhecimento de técnicas de
impressão, as quais fazem com que desde o início a nova estrutura tenha os
meios de ultrapassar o terreno amador” (pg. 189 de Double, sublinhado no
original). Fala-se apenas de uma forma telegráfica de outros projectos como a
Fréon, a Amok, ego comme x, La Cinquième Couche, etc., mas sem um estudo mais
alargado, e, de resto, compreende-se esse “desequilíbrio” apenas na ideia de
que é de facto a Association que consegue conquistar um público não só mais
alargado, como também é ela quem acaba por influenciar outros projectos, quer
através de um formato como o da colecção Patte de Mouche, adaptado por tantas
outras plataformas independentes (inclusive a portuguesa Quadradinho; mas a
importância dos formatos nesta casa é de uma extrema produtividade, como quis
um artigo de Pascal Lefèvre, aqui),
à forma como uma editora mainstream como a Casterman se iria aproveitar
da fórmula formato-e-conteúdo Ciboulette/“livro literário” na sua Écritures,
etc. Já para não falar da forma concertada como a Éprouvette demonstrou
a possibilidade dos autores de banda desenhada serem capazes de coordenar e
exprimir reflexões teóricas sobre a sua própria prática como quaisquer outros
artistas.
As reflexões de Menu começam bem
cedo, pelo menos de forma semi-pública na sua tese de licenciatura em artes
plásticas, em 1988 (e que seria publicada para os associados em 2003) e são
exploradas neste volume, ainda que sem uma dedicação mais centralizada e
crítica. No entanto, não é de todo secundário que se façam as necessárias
ligações entre todos os seus projectos, desde os primeiros fanzines até à
revista Labo, a qual, publicada pela Futuropolis em 1990, contaria com a
presença dos fundadores da editora, e outros autores. De certa forma, pode-se
dizer ser esse o ponto de partida oficial, ou pelo menos o nexo oficial do
projecto (que tem outros pontos de partida e muitas metástases). Entre “Sorte d’éditorial”,
publicada na Labo, e “Sorte d’épilogue”, no volume colectivo XX/MMX
(2010, que não lemos), Menu faz um retrato simétrico, ainda que invertido, da
situação editorial francesa entre os vinte anos que são então marcados pela
própria existência da Association: se na primeira história há uma espécie de
esperança de que as novas e pequenas editoras seguissem caminhos deveras
alternativos aos dinossauros que vemos digladiarem-se (metáforas para as
grandes editoras a lutarem pelos mesmos géneros, pelos mesmos espaços de
divulgação e circulação, etc.) – a personagem/avatar de Menu tem um X na cara
para representar a colecção especial da Futuropolis, e o pequeno dinossauro
apenas nos faz imaginar o pior -, a segunda mostra como algumas dessas pequenas
plataformas acabaram por apenas mimar as grandes e, por isso, cair na mesma
desgraça e fim. Não deixa de ser curioso pensar, todavia, que parte do que se
acusa Menu de ter feito é precisamente ter transformado uma associação de
autores, não-hierárquica e com projectos livres, no seu próprio projecto
editorial (e, dizem alguns, ditatorial), com os problemas inerentes. A
transformação ou regresso a um modelo anterior (não sem uma valsa complicada)
pode significar um seu relançamento, mas apenas o tempo o dirá.
Alguns dos escolhos da argumentação do autor está no facto dele, em
termos gerais, afunilar a sua senda ao panorama francês, o que não deixa de
fortalecer aos seus próprios gestos autorais/editoriais como diferentes (o que
se diluiria, possivelmente, num outro enquadramento; e nem abordaremos a
questão de ele pessoalizar ou individualizar a vida da Association à sua
própria prática, desligada da de um colectivo); quer dizer, esta é uma opção
a-histórica e que é falha nas suas qualificações (por exemplo, pensar enquanto “excepção
da reprodução técnica/mecânica” em relação a textos que surgiram antes da
sua própria possibilidade, como os manuscritos medievais, é um
exercício apenas superficialmente interessante, sendo bem mais produtivo uma
inscrição mais correcta na história). Algumas das suas leituras de textos
alheios, como as de um manuscrito medieval de Villard de Honnecourt, são algo
essencialistas e até mitificantes em relação ao grande corpus da banda
desenhada, mas Menu deixa visíveis as razões para essas mesmas posições.
Diga-se de passagem que Menu está mesmo consciente deste estilo: “Nunca
escondi as minhas contradições e, bem pelo contrário, sempre cultivei os meus
paradoxos, que sempre me pareceram mais férteis do que definições unívocas”,
210). E essas linhas unem-se: “ultrapassando (…) essa dicotomia [do seu próprio
percurso] entre a minha tendência Spirou e a minha tendência Underground,
também integrei essas duas direcções num estádio mais consciente, e num campo
de acção mais alargado. Nesse sentido, classicismo e ruptura, bloco
de infância [associada às revistas Spirou, Pilote, Pif, Tintin, ou
Ric Hochet] e bloco da adolescência [Métal Hurlant], não são
mais do que dois registos, até mesmo duas ferramentas entre outras, no seio de
uma prática que se tornou plurívoca e polimorfa” (279, subl.
orig.).
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3:02 p.m.
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Etiquetas: Academia, França-Bélgica
20 de julho de 2012
Baba Yaga and The Wolf/Wax Cross. Tin Can Forest (Koyama Press)
Adeptos de Promethea ou de Hellboy encontrarão aqui seguramente um fio que se mantém no rumo
comum dessas outras obras: misticismo, folclore, lendas, magia, entrega às
forças ocultas, nocturnas, oníricas, telúricas, ctónicas, lunares, estelares,
sobrenaturais que navegam ainda nos interstícios do saber humano. Como usar a
banda desenhada numa função mágica, ou como usar elementos encantatórios para
conjurar um acto poético. (Mais)
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Pedro Moura
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2:19 p.m.
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Etiquetas: Canadá
19 de julho de 2012
All-Girlz Banzai/Zona Nippon. AAVV (Arga Warga/Zona)
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3:53 p.m.
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18 de julho de 2012
The Art of Daniel Clowes, Modern Cartoonist. Alvin Buenaventura, ed. (Abrams)
Não se tratando propriamente de um catálogo da exposição dedicada ao artista no Oakland Museum of California, não obstante trata-se de um projecto editorial com ela relacionada, partilhando o título, a pessoa da comissária (Susan Miller), e, como é de esperar, muito dos materiais apresentados, com a diferença fundamental da forma diferente em que ambos são apresentados num espaço físico, tridimensional, que se atravessa com o corpo, e num livro, folheado pelos leitores.
O livro é acompanhado por alguns textos, mais ou menos ensaísticos, mas a esmagadora maioria deles são algo impressionistas, tais como o encómio (mas ainda assim iluminador) de Chris Ware e as considerações algo superficiais de Chipp Kidd; uma entrevista por Kristine McKenna apresenta-se como atravessando toda a carreira e vida, e misturando ambas as dimensões, mas parece-nos algo confusa, e sem grande possibilidade de fazer deslocar novos sentidos, novas informações ou novos posicionamentos de Clowes. Há outro texto sobre David Boring e as relações de Clowes com o cinema, por Ray Pride, mas não nos parece que também chegue a ideias muito claras. Susan Miller tem um texto sobre a capacidade de Clowes enquanto retratista/caricaturista, que demonstra como os instrumentos da História de Arte podem ser bem empregues no seu diálogo com a banda desenhada e ilustração. Ou seja, como se espera neste tipo de gestos editoriais (mas que enfraqueceria se pretendessem seguir os mesmos passos estruturais e críticos de um catálogo de arte), não encontraremos aqui materiais maciços. Com uma excepção. Exemplar, todavia, é o texto mais alongado de Ken Parille, um conceituado crítico de banda desenhada. Concentrando-se nas quatro obras de maior fôlego de Clowes desde os anos 2000 – e nas suas versões em livro, não a serialização, a saber, Ice Haven (2005), Wilson (2010), The Death-Ray e Mister Wonderful (ambas de 2011) – Parille faz uma close-reading de alguns dos aspectos de cada um destes livros, obrigando os leitores a redescobrir as razões pelas quais Clowes é, com efeito, um autor determinante da contemporaneidade e, espera-se, influente. É impossível dar conta de todos os passos de Parille, sem se incorrer na repetição de todo o texto. Começando pela ideia mais geral (aparentada à de Thierry Groensteen) da “heterogeneidade gráfica”, o crítico fala do “fim do estilo”, precisamente para analisar, até mesmo comparativamente, as formas como Clowes multiplica a sua linguagem gráfica no interior de uma mesma narrativa, para chegar a uma definição de “afecto” como “o nosso estilo emocional do momento” (168), seguindo depois análises dos narradores duplos (da imagem e do texto), a grafia dos textos, as formas dos balões e legendas, a gestão das cores e texturas dos desenhos, das cenas de fantasia e de memória das personagens, das relações com os tempos diegéticos e da narrativa, passando por questões de representação, caricatura, fisionomia e empatia, a formatos das vinhetas e gestão dos silêncios. “As escolhas formais dão corpo [embody] à psicologia das personagens” (162) é corolário e epítome desta fabulosa lição.
Não deixa de ser inesperada, e algo contraditória, a forma como este crítico goza com a figura do crítico de banda desenhada no interior de Ice Haven, Harry Naybors, falando do jargão deste, ou das formas como lança as redes de interpretação, quando o próprio Parille, sem entrar nos abusos – sobretudo na esfera do patético e do pessoal – de Naybors, demonstra a capacidade que o crítico tem de iluminar um texto, para o elevar ao estatuto de obra de arte, como escrevera Benjamin.
Se bem que não apreciemos a utilização do vocábulo “evolução” para falar das torções internas e pesquisas cambiantes que presidem à obra de um qualquer artista, é visível a diferença entre os trabalhos de meados dos anos 1990 (Lloyd Llewellyn e etc.), devedores de uma inscrição retro e pós-underground, que recorda a um só tempo Jim Flora, Robert Williams, Beatnik jazz e hot rod, e aquela maior acalmia e cada vez mais profunda investigação pela natureza humana que começou, discutivelmente, com Ghost World (1994-1997). Mas este livro concentra-se sobretudo na última produção, quiçá secundarizando o humor corrosivo, mais adolescente do primeiro Clowes (perfeitamente irmanável com Peter Bagge, Joe Matt, John Ryan, Ivan Brunetti, etc.), e sublimando as obras que o colocariam mais próximo de toda uma produção de “graphic novels” mais “literárias” – pelas quais ganhar um reconhecimento crítico e académico determinado, aproxima-o de um cânone contemporâneo da banda desenhada norte-americana, e angaria prémios prestigiados (Pen Center) – e as suas dimensões de estilos variados – que o colocam ao lado de outros reinventores da linguagem em questão, como Ware.Como possível cartografia da sua obra, ou balanço crítico, ou plataforma de descoberta dos vários níveis de produção, criação e pensamento, este livro não deixa de ser uma ferramenta oportuna, invejável de existir em relação a muitos outros autores.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
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Pedro Moura
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9:32 a.m.
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17 de julho de 2012
The Future of Text and Image. Ofra Amihay e Lauren Walsh, eds. (Cambridge Scholars Publishing)
A relação entre o texto e as imagens é algo que tem fomentado, desde o seu surgimento no mundo ocidental, pelo menos, discussões profundas que tanto se referirão restritamente à grafia (palavra que deve compreender as marcas em ambos os casos), aos seus actos e elementos, e relações, como às implicações que têm sobre a visão ideológica do mundo, ou até mesmo sobre o aparelho cognitivo humano. De Platão a W.J.T. Mitchell, as discussões têm sido profícuas mas – como é próprio do pensamento humano – infindas, inconclusivas e sempre relançando-se. O nome de Mitchell não surge naquela frase como último ponto, nec plus ultra da discussão, mas sendo dele o texto curto de introdução a este livro, é justo que se o cite, pela forma decisiva e constante como tem contribuído para a mesma. Apesar de curto, este é desde logo um texto importante, já que o autor vai mais longe naquele conceito por ele cunhado de “imagemtexto”, aqui para marcar a indecibilidade das relações potenciais (ou virtuais, no sentido de Deleuze-Guattari) entre texto e imagem. O autor, nos seus vários livros, foi expondo como poderão existir relações de ruptura, de síntese e de relacionamento entre um e outra, à qual ele dava nome, tirando partido do significado dos traços gráficos que as unem, da seguinte forma: “imagem/texto”, “imagemtexto” e “imagem-texto”. Neste breve texto, Mitchell vai mais longe, como dizíamos, propondo o termo “imagemXtexto” ou “imagem X texto”, discutindo todo os cismas, abismos e cruzamentos possíveis, ao mesmo tempo que aponta para a necessidade da correcção dos termos empregues quando da sua discussão.
Por exemplo, apesar do subtítulo do livro, “visual” não pode operar na mesma categoria conceptual de que “literário”, já que o primeiro termo apela à esfera dos sentidos e o segundo a uma particular codificação de signos, sendo a literatura também capturável pelos sentidos – para ler é preciso ver – e sendo muita da matéria visual, para mais a “artística”, subsumida a códigos sociais e de significação. No estudo deste “campo mais alargado e reflexão sobre estética, semiótica e todo o próprio conceito de representação”, que constitui um “tecido articulado multiplamente”, versam-se, e vogam-se por, “canais sensoriais (o olho e o ouvido)”, “funções semióticas (semelhanças icónicas e símbolos arbitrários)”, “modalidades cognitivas (tempo e espaço)” e “códigos operacionais (o análogo e o digital)” (pg. 4). Citando Aristóteles, Hume, Saussure, Peirce, Lacan, Barthes, Goodman, Foucault e Kittler, o autor compõe um quadro que não pretende ser nem síntese nem tabela de correspondências, mas palco de impressão conceptual, por assim dizer, de como estas tensões relacionais têm sido pensadas. Como escreve Marianne Hirsch no texto final, espécie de breve balanço do volume, estas relações “de implicação mútua, interrelação e tradução” levam a que, “no limiar do verbal, a linguagem se torna material, visual, multisensorial” (346), processo que obriga quase todos os autores dos ensaios aqui presentes a formularem novos termos, neologismos, palavras compósitas, que permitam dar à estampa verbal, ao discurso académico, à argumentação escrita, as noções relacionais (por exemplo, “memórias fototextuais”, “imigrescrita”, “heterocrónica”, “heteroposicional”, etc.). Isto é de uma grande importância para nós, recordando aquela forma que desejávamos ter utilizado para baptizar este espaço, mesclando os verbos portugueses “ler” e “ver” na sua primeira letra, procurando uma terceira grafia possível (“verler”?). Os ensaios coleccionados neste volume abordam o espectro previsto por Mitchell. Fala-se do uso da fotografia em textos literários, quer romances, poemas ou autobiografias (J. R. Ackerley, Sebald, etc.), fala-se das inflexões materiais e construtivas que o digital permite à visualização de imagens, a escrita da poesia e à participação dos leitores, fala-se de atomização e unidade em relação à poesia visual (futurista, no caso) e de articulações entre obras literárias e pictóricas; envolvem-se os conceitos de descrição, de metaforização, de sinestesia, de orientação, em relação aos textos literários, e de memória, trauma, afecto, em relação a obras visuais. E falam-se dos postais – na verdade, uma magnífica “close reading” (Tanya K. Rodrigue) de um só exemplo - da PostSecret, como uma forma de imagemtexto particularmente apta para providenciar um quadro expressivo e interpretativo individual que contorna e evita discursos dominantes, como a autobiografia, por exemplo, que criam necessariamente rotinas simbólicas e, logo, “criam identidades essencialistas” (55-56).
É algo surpreendente, na leitura de determinados autores que se dedicam a temas próximos, como Didi-Huberman, Deleuze, Rancière, entre outros, que apesar de vasculharem “high and low” em busca de exemplos pertinentes para as interpretações e conceptualizações que fazem destas relações texto-imagem ou de imagenstextos, a banda desenhada nunca faça parte da equação de exempla, por maior que seja o seu escopo. É possível que parte disso se deva à falta de conquista cultural, intelectual e conceptual de que esta arte padece há décadas (ou será “estruturalmente”, “essencialmente”?). Todavia, dada a oferta imensa contemporânea, essa distracção é hoje insustentável. Mitchell considera a banda desenhada como uma “forma de arte compósita”, na qual nem “texto” nem “imagem” seriam descritivos suficientes mas tampouco uma adição, suplementação, ou simbiose entre os dois. Dá a entender que há uma especificidade, ou especificidades, neste meio, que a tornam, não necessariamente um palco privilegiado (i.e., superior) para a discussão, mas pelo menos determinante. Algo positivo naquele “x”.
O livro tem dois ensaios que abordam a banda desenhada, e sem surpresa são ambas autobiografias contemporâneas, de grande sucesso crítico. O primeiro é por Molly Pulda, um estudo comparativo entre Fun Home, de Bechdel, e uma autobiografia de Ackerley, sob a perspectiva de como ambos – escritores homossexuais que sondam as sexualidades respectivas dos pais, depois destes morrerem – tentam deslocar “segredos” a partir de interpretações subjectivas e pós-memoriais (cf.o conceito de M. Hirsch) dos arquivos imagísticos deixados pelos progenitores. O segundo, por Dale Jacobs e Jay Dolmage, estuda o livro Stitches, do ilustrador David Small, para sublinhar como “a banda desenhada representa um meio rico mas ansioso [fraught] na cartografia das formas como os corpos são moldados por deficiências e pelo trauma” (70), de maneira, portanto, a criar uma diferenciação reivindicativa da “voz própria” (e no caso da autobiografia de Small, isto tem um significado literal) em relação a uma cultura normativa. Em ambos os casos, porém, e pelas afinidades disciplinares entre os dois ensaios, a banda desenhada surge como uma possível forma de arte capaz de contribuir para a construção de individuações - “[um] sentido envolvente do Si torna-se gráfica e retoricamente demonstrado na página” (81) - à margem ou para além dos discursos homogeneizantes de géneros literários e artísticos, assim como um meio cujas especificidades na estruturação relacional entre texto e imagem obriga a uma “leitura” implicada, intricada, empática e produtiva.Apesar da inegável qualidade de ambas estas obras citadas, e a forma como as duas abrem o campo da banda desenhada para temas mais humanamente profundos do que mais desabrida fantasia, ou com repercussões filosóficas e políticas mais imediatas em relação à polis contemporânea do que os géneros mais clássicos do humor, da aventura, etc., a verdade é que não deixa de ser sintomático que os tratamentos interdisciplinares e intelectuais – para além de questões de representação - sejam muitas vezes feitos sobre este tipo de obras. É um caminho possível, e é aquele que tem sido trilhado sobretudo. Poderá levar a uma ideia algo desequilibrada da pertinência dos objectos a estudar – por exemplo, a multimodalidade é analisável em toda a banda desenhada, independentemente de género, e até de qualidade (diga-se que Jacobs, noutros ensaios, aborda outras tipologias, mais mainstream inclusive) – ou até a um afunilamento do corpus – na verdade, trata-se do processo de canonização. Contudo, o mais importante de assinalar talvez seja mesmo o seu entrosamento com estes discursos. Regressando ao ensaio de Jacobs e Dolmage, entende-se a banda desenhada não somente como um encontro entre uma camada visual e uma camada textual, mas um locus onde “o visual, o alfabético, o espacial, e o gestual se combinam entre si para criarem uma sequência multimodal complexa” (80). Com futuro, certamente.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
Publicada por
Pedro Moura
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10:45 a.m.
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Etiquetas: Academia
16 de julho de 2012
Breves notas sobre bravos fanzines. AAVV
Publicada por
Pedro Moura
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11:15 a.m.
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