Fará algum sentido falar de “mangá feita em português”? Uma vez que essa é uma pergunta repetida em tantos outros fóruns e nós próprios já a mencionámos, repetiremos esquematicamente algumas dessas considerações. Fazer sentido, faz, na medida em que há todo um grupo de autores e autoras que criam bandas desenhadas que obedecem a um conjunto mais ou menos restrito, mais ou menos imitável, de códigos de representação e figuração, estruturação e composição de página, e até mesmo de géneros e linguagem, que se encontram no cadinho da mangá - sobretudo aquela mais comercial e de maior circulação - propriamente dita. É como se esses autores, em vez de responderem às suas tradições mais próximas (portuguesa, europeia, ocidental, etc.), estabelecessem um diálogo, de recepção e transformação criativa, com uma outra mole cultural, sobretudo japonesa, mas que é já porosa também a outros palcos nacionais (Coreia, China, acima de tudo). (Mais)
Porém, por essa mesma obediência a um conjunto fechado de características formais e conceptuais, é raro que encontremos nessa produção a emergência de uma voz verdadeiramente autónoma e individual. Isto é, a ideia de “competência” surge pelo cumprimento dessas regras, e não devido a uma capacidade de expressão pessoal, de marca autoral, de desvio específico, etc. No entanto, essa também poderá ser vista como uma perspectiva errónea em relação a (esta) mangá, já que tendo em conta os princípios estéticos sino-japoneses, é mais importante a plena inscrição num tecido de continuidade do que a suposta superior “originalidade” e “diferença”, prezadas pelo Ocidente (por vezes, de forma fetichista).
Porém, por essa mesma obediência a um conjunto fechado de características formais e conceptuais, é raro que encontremos nessa produção a emergência de uma voz verdadeiramente autónoma e individual. Isto é, a ideia de “competência” surge pelo cumprimento dessas regras, e não devido a uma capacidade de expressão pessoal, de marca autoral, de desvio específico, etc. No entanto, essa também poderá ser vista como uma perspectiva errónea em relação a (esta) mangá, já que tendo em conta os princípios estéticos sino-japoneses, é mais importante a plena inscrição num tecido de continuidade do que a suposta superior “originalidade” e “diferença”, prezadas pelo Ocidente (por vezes, de forma fetichista).
Mas encontraremos nestas páginas, de dois fanzines dedicados a este campeonato artístico, algo que nos faça desviar de certas expectativas? Como não pode deixar de ser, a natureza dos próprios objectos é largamente diferente.
All-Girlz Banzai é a continuação de um fanzine exclusivamente dedicado a jovens autoras de banda desenhada nacionais, estando este número sob os auspícios da mangá. Com apenas três histórias de duas autoras, Joana Lafuente e Selma Pimentel, não haverá muita oferta. Independentemente do grau de proficuidade e de profissionalismo que ambas possam ter noutros territórios (Lafuente como colorista de The Transformers), não se pode alegar essa mesma actividade para valorizar o que se encontra nesta publicação. A história de Lafuente, episódio de uma saga maior, segue infelizmente aquela abordagem despojada das vinhetas, com apenas a(s) personagem(ns) delineadas nos seus contornos e objectos mínimos, e alguns outros elementos para criar a ideia de espaço (uma torneira para “casa de banho”, uma fechadura no vazio para “porta”, etc.), acabando por estar mais próximo de uma colecção de imagens em clip art do que de uma banda desenhada propriamente dita. O mesmo não se diria de um John Porcellino, uma vez que a emergência do minimalismo (o termo não é muito correcto, mas circula) na banda desenhada obedece a questões que não têm somente que ver com o desenho. A separação absoluta do seu contexto diegético - quem são as personagens?, quais são as suas preocupações?, que missão seguiremos? - impede ainda um maior grau de entrega emocional - e por isso interesse - da parte dos leitores.
As duas histórias de Selma Pimentel mostram desde logo uma grande capacidade na construção de ritmo, ambiente e personagens diferenciadas (mesmo no interior da economia de representação algo limitada desta família da banda desenhada), e, apesar de se poderem ler ambas as histórias - “Green is Dead” e “Samira” - como teasers, a construção do que se promete está toda presente. Esperemos é que existam rápidas plataformas para que esta matéria continue a ser exposta e possa medrar, ou incorrer-se-á naquele cliché de termos dezenas de revistas com “promessas”, “teasers” e “apresentações de projectos”, mas jamais algo continuado, consolidado e deveras desenvolvido. Se “Green is Dead” é suficientemente linear e claro - uma variação de Power Rangers/Monster High/Winx numa Coimbra infestada por dragões - para prometer aventuras tipificadas mas com algum humor circunstancial, “Samira” arrasta-se porém com toda uma série de elementos retirados de uma miríade de fontes mas sem nunca construir um centro preciso. Uma trama que nunca se enfatiza, personagens que não cessam de ser construídas, e até mesmo alguns pormenores textuais estranhos. Há uma vontade em lançar aqui uma concatenação complexa de pistas, que adensariam e tornariam o mistério de Samira vago mas para que fosse perseguido, mas nunca se forma uma linha decisiva, fazendo imaginar que a confusão não estará apenas ao nível do texto.
Já o projecto “Nippon” da plataforma Zona procura, nalguns casos, uma mimese bem diferente. Quer dizer, a imitação pura e dura dos códigos da mangá poderão ser absurdos no sentido em que jamais haverá espaço no Japão para a edição destes autores, a menos que haja uma deslocação e procura por caminhos particulares (não é inédito autores estrangeiros terem trabalho, com maior ou menos sucesso, no Japão, mas não é tão comum como a circulação no mundo ocidental). Logo, o que se verifica aqui é um aproveitamento de temas, de ambientes, de clichés até, mas para criar textos próprios. O mesmo sucede com muitos projectos europeus, seja a nível do “estilo gráfico/narrativo”, como no caso de Sky Doll, como nalguns aspectos temáticos e literários, como o recente livro de Hughes Micol, Le Chien dans la vallée de Chambara, de que falaremos em breve.
Ainda assim, continuamos no território da breve anedota ou do teaser, o que não abona a favor da capacidade dos autores em conseguirem reger uma história curta. André Oliveira apresenta um argumento curioso que se passará no Japão feudal, mas cujos actores - desenhados de uma forma abonecada à la Philip Bond por Pedro Carvalho - falam como “tugas”, fazendo imaginar um curioso cruzamento de referências. Também Carlos Páscoa aproveita mais a matéria imaginativa e expressiva deste tipo de banda desenhada para criar uma ficção, curta, em torno da ideia da esperança e da felicidade, e de como para ela podem contribuir as leituras da banda desenhada da infância e adolescência.
Paula Almeida é uma jovem artista, cuja história apresenta um estilo bem contemporâneo, de uma mangá mais descontraída, manual, e intimista. Estas meras quatro páginas podem ser lidas quase como um simples poema sobre as relações humanas, e apesar da “história” não se consolidar enquanto tal, obedece a um ritmo interno muito próprio, que é conseguido.
Gabriel Martins e Fil mostram um samurai a decepar o seu senhor, numa espécie de conto moral, demonstrando mais uma vez como o fascínio por certas figuras, totalmente descontextualizadas e fora dos seus tecidos históricos, é maior para a criação de mitos do que de uma compreensão transcultural. Quer dizer, mais uma vez temos aqui aquelas ideias feitas em torno das “honras” e “códigos de guerreiro”, que supostamente seriam superiores, moralmente, a um rol de interesses, como se esses mesmos guerreiros não fossem parte desses mesmos problemas (a obra citada de Micol por exemplo desmonta esses mitos). Mas estamos na ficção de género, afinal… Bruno Bispo e Victor Freundt seguem as mesmas pisadas, mas uma vez que fogem para um universo de referências fantásticas e até mágicas, acabam por criar uma peça mais consolidada e que não deixa de poder ser vista como símbolo geral de todo um imaginário (ainda que, mais uma vez, socialmente mesclado, agregando a filosofia metafísica do Tao a monstros). Também Filipe Duarte se inscreveria neste conjunto - talvez seja essa a razão pela edição seguida destas histórias -, mas encontra-se nele um outro grau adicional de afastamento pela fantasia, e pela forma como aproveita um ambiente geral retirado aquele fundo cultural para criar “a sua própria coisa”.
Quanto às histórias de Bruno Ma, Ana Nunes com Rui Alex, seguem aqueles elementos expectáveis a que temos feito referência: meninos guerreiros, poderes extraordinários, grupos de personagens “diferentes” (dentro da medida do possível que se imagina, num universo diegético em que não temos acesso a saber como são as outras personagens), missões e destinos, e coisas quejandas. Há sempre uma sensação que temos toda uma série de autores fãs de séries como Naruto, Bleach e Fairy Tail, que desejam perseguir as mesmas ideias, conceitos e situação, mas sem compreender a necessidade de passos básicos como a de construção das personagens, exposição da premissa e até o mais básico dos establishing shots. Apesar de se poderem apreciar as lentas construções vagas e ambíguas à la Tsutomu Nihei, a gestão dessa lentidão é feita pelo autor japonês de uma forma dominada, equilibrada, e é difícil imitar-lhe os passos.
A pièce de résistance deste pequeno livro - aliás, tankobon - é a história (ou melhor, episódio de algo que se imagina bem maior) de André Lima Araújo , “Nómada”. Esta consegue respeitar todos aqueles elementos indicados antes - establishing shot, ambiente, personagens, etc. -, criando uma premissa que, não revelando tudo (para que se crie suspense e interesse) abre suficientes pistas para que se percebam que perguntas se devem formular na cabeça dos leitores (para que se crie esse suspense e interesse). Ainda que siga alguns lugares-comuns - cenário pós-apocalíptico, a existência de vários grupos rivais e violentos, emergência de sub-culturas Mother Sarah/Mad Max/Grendel, etc., uma missão sob a forma de uma “ilha” que se tem de descobrir, e um protagonista aparentado a Deadpool, mas mais próximo do strong, silent type do que do “merc with a mouth” -, a forma como esses lugares-comuns são apresentados seguem regras sólidas e perfeitamente encaixadas em plataformas internacionais. Apesar da edição da Zona ser a preto-e-branco, há uma indicação explícita de que este é um trabalho a cores, e aliado ao próprio desenho perfeitamente acabado, de muitos pormenores de objectos e espaços, variedade na composição e focalização (talvez até em excesso nas cenas de diálogo), texturas, e no interior daquele realismo dos comic books norte-americanos (mas que tanto lembra Otomo como uma fase de Ricardo Cabral), não será difícil imaginar a possibilidade de edição deste material em antologias desse mesmo mundo editorial.
Nota: agradecimentos a Daniel Maia, pela oferta do Banzai, e a André Oliveira, pelo transporte do Zona Nippon. Imagens retiradas dos blogs dos projectos respectivos.
5 comentários:
Obrigado nós, Pedro. Grande abraço.
Já existe uma presença editorial nesta área do Manga de autores portugueses. Chama-se BANZAI e é editada desde 2011.
Pena que ao falar do "Manga em Portugal" não se fale da unica revista periodica de manga no nosso pais de autires portugueses. Sou leitor assíduo (está quase a sair a #3, tanto quanto sei).
Se tiver curiosidade, e vontade em fazer um trabalho completo veja http://banzai.ncreatures.com
André, abraço de volta. Quero ver a continuação ds histórias e off-spins da Zona. O "Nómada" sobretudo, mas outras coisas também...
Caro João Marques, o site que me indica não funciona por alguma razão, mas conheço o projecto (aliás, algumas das artistas foram minhas alunas no Ar.Co e vi alguns projectos a nascer lá). Do que conheço dele, não viria a inflectir de forma algumas as generalizações que fiz neste meu breve texto e até me arriscava a dizer que esse projecto apenas confirma as minhas palavras.
Este texto é um breve apontamento, e uma leitura destas duas publicações, pelo que em momento algum estava a prometer um "trabalho completo", quase depreendendo das suas palavras que o deveria fazer. Porém, para um projecto como esse, nem eu me pretenderia qualificar, conhecendo muitos outros projectos com mais anos do que a "Banzai", nem penso que seria particularmente interessante à luz dos meus interesses particulares.
No entanto, agradeço a sua nota e fica a notícia.
Obrigado,
Pedro Moura
Fora da sazonal época pateta -por motivos muito egoístas- tenho tendência a ler o Pedro Moura mais na diagonal.
Por um lado, os parágrafos fazem-me falta (como gostava que o convencessem a investir na formatação do texto quando o transfere para os posts - para um estudioso de cruzamentos entre palavra e imagem, parece-me estranho que nunca lhe tenha ocorrido que estas manchas imensas de caracteres não convidem à leitura...) Por outro, não acompanho - como em "não partilho" - do seu interesse sobre determinada BD, não por uma questão de gostos mas por uma questão de intenções: os seus textos exploram a banda desenhada de uma perspectiva da qual sou cada vez menos fã quanto mais ela ganha aderência. Como na música, gosto da BD enquanto pedra de arremesso, não como sebenta de belas artes.
Obviamente não nego o valor do seu trabalho, aliás, muito o prezo. I-shit-u-not. Apenas tenho tendência a saltar as partes chatas três quartos do ano.
No entanto, cada vez que tagga um post com "zine" dedico-lhe alguma atenção mais cuidada. E diria que (se estou errado, conferir parágrafos anteriores: "I have not really been paying attention") este seu texto poderá marcar uma estreia: é a primeira vez que lhe leio uma crítica com elementos negativos sem um amparo a amortecer o tom. Não me entendam mal: ele já apontou falhas diversas em variadas peças, mas (e outro ponto a favor da canonização do Pedro) sempre o fez de um modo tão construtivo que somos levados a acreditar que este homem está sempre bem com o que lê.
Na Ave Rara, Mário Freitas dizia de certo blog "tem essa grande virtude que é não ter medo de emitir opiniões, mesmo que tais possam não agradar a todos. Confesso que me irritam os blogs ou os sites que até cheiram a água oxigenada, de tão anódinos que são." Tenho a impressão que ele não se referiria ao Ler BD, mas às vezes gostávamos de ler aqui uma crítica mais maldosa só para o ter como humano...
E, é impressão minha, ou posso retirar deste post um ligeiro "não gostei"...?
Olá, V.,
Obrigado pela tua provocação, na melhor das tradições de pensamento. Vou tentar responder a tudo. Em primeiro lugar, aceito as críticas sobre formatação, que não saberei corrigir, mas estou aberto a sugestões: parágrafos menores? Frases mais curtas? Números em parágrafos? Seja como for, já foi premiado pela ANÍBAL (Associação Nacional de Insomnes Bedéfilos Associados e Livres) pela resolução de certas crises. Na verdade., não sei se os meus tres leitores se importam assim tanto...
Não sei a quem se referiria o Mário Freitas, nem é minha função adivinhar, mas eu não me veria nessa frase de "emitir opiniões". O que tento fazer - mal ou bem, inconsequentemente ou com algumapertinência, não me cabe a mim dizer - é construir um qualquer discurso crítico sobre os objectos de banda desenhada que me suscitam algum grau de atenção. De uma forma que se tem alterado ao longo dos anos, dada a minha aprendizagem, influências disciplinares, e, esperemos, alguma maturação no pensamento, tenho mudado a forma de construir esse mesmo discurso, mas jamais ele é reduzido a "opiniões", como ocorre muitas vezes apesar de se passarem por "críticas" (e sobre esse assunto, já escrevi noutros locais para me repetir, e peço desculpa por esta saída airosa).
Já no que diz respeito a uma certa atitude que te leva a dizer "este homem está sempre bem com o que lê", não deixa de ter a sua razão de ser. Uma regra que sigo é quando sou intrpelado por um livro qualquer que apenas me surja como negativo, péssimo, ou contra-producente de pensar, não digo nada. Não há nada a dizer sobre coisas demasiado medíocres, de facto (o que não significa, DE TODO, que "aquilo que não surja no lerbd não é digno, etc.", já que há coisas para as quais não tenho tempo, não conheço, passou-me ao lado, etc.). De facto, ao ler seja o que for, tento procurar o que é que essa obra tem de particularmente interessante e produtivo. Por isso não interessam as estrelinhas ou coisas quejandas. Como comparar obras completamente distintas em todos os seus elementos, por hipótese, o "Death Note" e um livro do Ilan Manouach? E cada um deles terá as suas virtudes e é isso o que me importa salientar. Não significa que não tenha feito leituras "negativas", como se poderia dizer, sobretudo em relação a obras que parecem angariar os consensos do costume, esses sim, acríticos, e opinativos encomiásticos só porque parece ser necessário fazê-lo (exs: "Wanya", "Rei", "Habibi").
Finalmente, no que diz respeito a estes fanzines em particular: não disse "não gostei" dessa forma; simplesmente levanto algumas questões, encontro potencialidades mas também encontro os típicos becos sem saída de muitos projectos que envolvem gente muito jovem mas que não quer de forma alguma compreender que é possível aprender a fazer as coisas. Ao contrário do que dizes, a banda desenhada não precisa de ser pedra de arremesso (aliás, já tentei partir janelas com revistas, e raramente funciona, só mesmo com os caixotes da EC), e sim pode ser uma plataforma variadíssima com espaço para tudo (apesar de falares de "determinada bd" que me interessa, espero que este espaço tenha alguma variedade, e não seja demasiado afunilado; seja como for, dá-me a sensação que, no espaço nacional pelo menos, dou alguma atenção a coisas que usualmente ficam fora dos radares habituais).
Repara que tento dar atenção suficiente - se bem que mais curtamente que os tratados habituais - aos vários elementos de todos os autores, e destaco aquilo que me parece mais conseguido; mas tratando-se de uma colecção de objectos "incompletos", é cedo para imaginar que contornos podem ganhar.
Parece-me que falta dizer mais qualquer coisa, mas lá está, estico-me.
Abraços!
Pedro
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